1. Igreja
sem conflitos? Nem hoje nem ontem nem amanhã. A própria evocação dos seus mortos
mais célebres serve, muitas vezes, para levantar conflitos entre os vivos.
Ninguém dispõe da fórmula exacta para realizar o mundo
de novos céus e nova terra, sem
lágrimas de dor ou de luto[1].
Ao sair da Missa onde foi anunciado esse sonho antigo, dizia-me um amigo: nos
anos 50 do século passado, o P. Lombardi e o P. Vieira Pinto, contentavam-se
com modestas propostas para um “mundo melhor” e nem aí chegamos! A própria União
Europeia perdeu a pouca alma que tinha, desistiu da ousadia e caiu na burocracia.
Sem condições para comentar a significação do
papel dos sonhos de uma “terra sem males”, comum a várias culturas arcaicas – com
frutos amargos quando se tentou convertê-los em “programas científicos” de
ordem social e política –, observei apenas que também a opção pelos “paraísos
fiscais” talvez não seja a festa da ascensão
aos céus da população mundial. Por aí ficamos.
No Domingo
passado, transcrevi uma breve passagem da extraordinária Exortação, A Alegria
do Amor, na qual o Papa Francisco se referia a duas lógicas que percorrem
toda a história da Igreja, desde o concílio de Jerusalém[2]
até hoje: marginalizar e reintegrar. Jesus, morto por uma coligação táctica, foi
excluído de Israel e do Império romano[3].
A lógica que Bergoglio deseja adoptar é, sem dúvida,
a da reintegração. Quando é possível. Perante situações escandalosas que envenenaram
o serviço que a Cúria vaticana deve prestar à Igreja – os escândalos bancários,
a vida faustosa de alguns cardeais e a situação de eclesiásticos pedófilos –
impõem-lhe a destruição dessa falsa paz alimentada por corruptos. A justiça que
é devida às vítimas desse nojo não é matéria de negociação. As manobras dos lobistas, desde há muito estabelecidas,
não são fáceis de neutralizar, embora o Papa afirme que não desiste da linha de
actuação anunciada, desde o começo. Ele não é omnipotente. Uma verdadeira
reforma não se decreta nem se consegue apenas com a mudança de alguns nomes. Por
vezes, quando se pensa que se conseguiu um bom colaborador encontrou-se um
judas.
2. O
desígnio pastoral de Bergoglio continua o de um verdadeiro pontífice: fazer
pontes onde outros levantam muros, voltar os nossos olhos para a vergonha de um
mundo sem os mínimos éticos e tornar a Igreja um exemplo de democracia
participativa. Isto exige um clima eclesial onde a união se realize na
diversidade criadora. Mas, para ser autenticamente pastoral, precisa de se
deslocar para as periferias existenciais, o centro esquecido das comunidades
cristãs.
Os obstáculos à sua lógica de reintegração
revestem-se, muitas vezes, de razões pseudo dogmáticas e de doutrinas ditas
irreformáveis, sobretudo no tocante aos ministérios ordenados, à moral sexual,
à situação da Mulher na Igreja e às chamadas situações familiares irregulares.
O Papa abriu um debate que, por ele, teria sido muito
mais fecundo se a consulta às dioceses tivesse sido mais ampla, mais
aprofundada e com menos boicotes. Mesmo assim, não se deixou intimidar pelas
manobras que ameaçavam rupturas irreparáveis. Pelo contrário, geriu, com muita
firmeza, os conflitos, mantendo aberto o diálogo entre todas as tendências, para
que todos pudessem aprender com todos. Fez do diálogo e da firmeza o seu
comportamento.
3. As
origens do cristianismo não foram um mar de rosas. Estão semeadas de conflitos
e dois mil anos de história das igrejas também não são o deslisar de um rio
pacífico, muito pelo contrário.
O livro admirável dos Actos dos Apóstolos – uma obra sem epílogo, abrindo apenas o futuro
– oscila entre uma imagem idílica da comunidade cristã dos começos[4]
e a do conflito entre hebreus e helenistas[5],
apresentando, depois, uma suave abertura aos gentios[6],
muito diferente da relatada por Paulo[7].
O seu projecto não esconde a lógica das tentativas de marginalização, mas a
opção do seu projecto literário é marcar a vitória da lógica da integração,
mostrando os resultados da boa gestão dos conflitos.
Hoje, celebra-se a festa da Ascensão do Senhor. S.
Lucas já tinha, no primeiro volume da sua obra, tocado nesta metáfora de fim de
carreira[8].
Agora, nos Actos dos Apóstolos,
desenvolve o cenário com mais cuidado. Tem de resolver duas situações. A
primeira é a da ânsia de poder que continua a dominar os discípulos de Jesus: o
único poder que vos garanto é o do Espírito Santo que vos vai meter em
trabalhos até aos confins da terra. A
segunda é a do medo: preparai-vos para acolher essa divina energia e não
fiqueis pasmados a olhar para o céu. Há muito que fazer[9].
Igrejas sem conflitos? Nem ontem nem hoje nem amanhã.
A grande sabedoria consiste em não os negar nem os acirrar. As comunidades
católicas não deveriam dispensar bons gestores de conflitos.
08.05.2016
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