1. Li, não sei
onde, que o Vaticano anda preocupado com a falta de exorcistas em Portugal. Ao
comentar essa notícia com um amigo, ele acrescentou logo que, onde faltam, de
certeza, é no próprio Vaticano.
Não desejo voltar à conversa dos pseudo-preocupados com o Papa:
está velho para poder realizar as reformas em que se meteu e a revolução que tentou
desencadear não é tão irreversível como alguns supõem e desejam. Os que se
julgam mais realistas e radicais acrescentam: não basta a Bergoglio ter encontrado
um refúgio fora dos antigos aposentos dos Papas; ou fecha o Vaticano para longas obras ou continuará a espantar-se
com surpresas de onde menos seriam de esperar.
Há, de facto, rumores de poucas vergonhas, que estão a passar
para a imprensa, de que os infiltrados, velhos e novos, são como as baratas:
quando se abrem as gavetas, desaparecem rapidamente, mas não morrem. Esperam
sempre uma nova oportunidade. Haverá alguma empresa capaz de eliminar, de forma
eficaz, esses parasitas da chamada Santa Sé? Ou será que os diabos do Vaticano
já se riem da fábrica de ritos dos seus exorcistas?
Tudo isso pode ter sentido, mas não vai além do anedotário
romano. Como diz o Papa, os cristãos de parlatório, que conversam sobre como
andam as coisas na Igreja e no mundo, sem paixão por transformar as suas vidas,
continuam a flutuar nas suas espreguiçadeiras enquanto debitam sentenças sem
consequências.
Ele próprio, ainda no mês passado, lembrou aos novos cardeais
que o caminho é seguir Jesus que os chama a olhar para a realidade,
não se deixando distrair por outros interesses, por outras perspectivas: não vos chamou para vos tornardes
«príncipes» na Igreja e para vos «sentardes à sua direita ou à sua
esquerda». Chama-vos para servir como Ele e com Ele[1].
Quem seguir de perto as intervenções do Papa Francisco –
homilias, discursos, cartas pastorais, etc. – fica espantado com o grande livro de reclamações, onde vai
escrevendo, em nome do Evangelho, o que exige dos padres, dos bispos e dos cardeais.
Luta por um clero não
clerical, confessando-se membro de um povo consagrado a Deus e ao serviço
de toda a humanidade pelo sacerdócio
comum a todos os baptizados. A função do clero não é a de mandar na Igreja
de todos, mas a de ajudar a desenvolver a vocação de todos à santidade. Os padres,
os bispos, os cardeais, o papa, centrados em si mesmos e nos seus títulos de
carreira eclesiástica, tornam-se traidores da Igreja.
Bergoglio, no dia em que deixasse de lhes pedir contas tornar-se-ia
conivente dessa traição. Não é por acaso que ele, em vez de se proclamar infalível e Santo Padre, se confessa pecador e pede a oração dos fiéis.
2. Para quem se
reconhece na liderança deste Papa, mas perde o sentido da sua própria responsabilidade
na reforma actual e concreta de dioceses, paróquias, movimentos, congregações
religiosas, a pretexto de que o governo da Igreja, ao mais alto nível, está bem
entregue, ainda não percebeu nada do desígnio de Bergoglio.
Quando invoco um livro
de reclamações nas Igrejas, não é para registar o descontentamento com o
funcionamento da cúria diocesana, das secretarias, dos cartórios e dos conselhos
paroquiais, da celebração dos mandamentos e da organização da catequese. Por
mais importante que seja essa burocracia e o seu bom funcionamento, estaríamos,
apenas, no âmbito do que se deve exigir a qualquer outra organização e que a
Igreja não pode dispensar. Se assim fosse, a vida eclesial só precisaria de
recorrer às escolas de gestão.
O que pretendo sugerir com o livro de reclamações é uma forma de responsabilização de toda a
comunidade. Não é o registo da má-língua. Quem reclama deve estar empenhado na
mudança, na reforma da paróquia ou do movimento. Deve reclamar, pois todos os
fiéis têm direito à celebração da Palavra, da Eucaristia e dos outros
Sacramentos, a não confundir com a leitura escalonada dos livros litúrgicos e
de homilias intragáveis ou apenas sofríveis.
Não se pode esquecer que, hoje, em Portugal, as assembleias
litúrgicas são compostas por pessoas com muitas competências profissionais e
culturais que nunca tiveram oportunidade de oferecer os seus préstimos para a
festa dominical. Outras foram-se afastando. Não conseguem suportar a falta de
qualidade das celebrações, a começar pelas homilias e acabar nos cânticos: não tenho nada a ver com aquilo nem aquilo
tem nada a ver comigo. Repete-se a cena evangélica: porque estais aí o dia todo sem fazer nada? Porque ninguém nos convocou.
O livro de reclamações deve registar que há muitas pessoas que podem,
querem e devem contribuir para que as celebrações recolham as alegrias, as
esperanças, as preocupações, as frustrações e os desejos da assembleia
celebrante, mergulhando-a na Palavra, na Eucaristia, no canto, na oração
transfiguradoras do passado. O primeiro dia da semana é o Domingo, o renascer
da esperança.
3. O livro das reclamações não regista apenas
o que falta. Reclama, de cada um, o que pode dar à comunidade para que ela
forme pessoas responsáveis pela sociedade, vendo o mundo a partir dos excluídos
e não dos instalados. A celebração tem de formar uma Igreja de saída e não um
concentrado de beatos e beatas, preocupados em reconduzir as celebrações e as
devoções ao estilo pré-Vaticano II. Não passam de sabotadores do movimento
desencadeado pelo Bispo de Roma.
Pelo que foi dito, não devia existir nenhum grupo, movimento
ou paróquia, sem um livro de reclamações
para manter o bom desassossego, a não
confundir com o registo dos azedumes, das invejas e, sobretudo, das lutas pelo
poder, em nome do serviço, terra de oportunistas.
As comunidades cristãs devem ser um exemplo de perdão e de
misericórdia, o que parece incompatível com um livro de reclamações, caderno de
encargos, exigências e avaliações.
Não esqueçamos, porém, o que escreveu Tomás de Aquino: Iustitia sine misericordia crudelis est,
misericordia sine iustitia mater est dissolutionis. A justiça sem misericórdia é cruel, a
misericórdia sem justiça é a mãe da degradação[2].
Talvez haja quem pergunte: como realizar esse livro de
reclamações?
A imaginação humana e cristã tem sempre alguns recursos.
16.07.2017
[2]
Cf. S.Tomas Aquinas, Expositio in Matthaeum S.Thomas Aquinatis Catena Aurea in
quatttuor Evangelia. Roma-Taurini,vol. I, 5, 7
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