1.
Recebi,
recentemente, três obras de três consagrados autores portugueses. Uma é de
António Lobo Antunes, outra de Frederico Lourenço e a terceira de António Damásio.
Uma pertence à criação literária, outra ao alargamento do nosso mundo bíblico e
a terceira à investigação científica. Ninguém escreve como Lobo Antunes,
ninguém pode ousar o que Frederico Lourenço consegue, a antropologia científica,
filosófica e sapiencial de António Damásio é o guião e o mapa que nos faltavam
para a fascinante viagem às raízes da vida, dos sentimentos e das culturas
humanas. Mostra-nos como e porquê “os seres humanos acabam sempre por depender
da maquinaria dos afectos e das suas ligações com a razão. Não há maneira de
fugir a tal condição”.
Conhecer essa maquinaria ajuda a não sermos
cegos a conduzir outros cegos para o desastre pessoal e colectivo. As investigações
destinadas a saber quem somos, como somos, quem podemos e devemos ser, requerem
a cooperação de todas as ciências e sabedorias. A cultura da cooperação é um
caminho luminoso para nos irmos libertando do egoísmo, o inimigo público e
privado do presente e do futuro da humanidade.
Repete-se que a ciência e a tecnologia podem
ser usadas para melhorar o nosso futuro – o seu potencial continua a ser
extraordinário – ou podem representar a nossa perdição. Pode-se continuar, por
outro lado, a desenvolver a ideia de que o ser humano é uma paixão inútil que importa
substituir por outra coisa mais limpa, mais inteligente e mais rentável. Essa
coisa pós-humana já está configurada, mas continuo a não saber para quem.
Destaquei o novo
livro deste investigador português, radicado nos EUA, porque, em primeiro
lugar, preciso dele – talvez não seja o único – para perceber “a estranha ordem
das coisas” na evidente desordem do mundo. Ao chegar ao fim, exprime uma
atitude que é essencial à libertação da teologia. Permito-me transcrever: “Em
primeiro lugar, e tendo em conta as imensas novas e poderosas descobertas
científicas, é fácil ceder à tentação de acreditar em certezas e interpretações
prematuras que o tempo se encarregará de rejeitar impiedosamente. Estou
preparado para defender a minha actual visão sobre a biologia dos sentimentos,
da consciência e das raízes da mente cultural, mas não tenho ilusões sobre a
durabilidade dessa visão. Em segundo lugar, embora seja possível falar com
alguma confiança das características e das operações dos organismos vivos e da
sua evolução, e embora seja possível situar o início do respectivo universo há
cerca de 13 mil milhões de anos, não temos qualquer relato científico
satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos
uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os
nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar a abertos e
atentos quando decidimos abordar o desconhecido”[i].
2. Se as lideranças da Igreja, os
teólogos, os padres e os catequistas tivessem estes cuidados de puro bom senso teriam
evitado, às comunidades cristãs, muitos falsos problemas no campo da criação
cultural, das ciências, da acção pastoral e da ética. Não tomariam atitudes e decisões
que pudessem impedir uma virtuosa abertura ao futuro, ao imprevisto e imprevisível.
Nota-se isto em muitos âmbitos, mas
tornou-se uma tragédia que se aprofunda e alarga, dia a dia, em relação aos “ministérios
ordenados” de solteiros e casados, sobretudo à declaração de que as mulheres
nunca poderão receber o sacramento da Ordem. Poder-se-ia perguntar como é que
se sabe tanto acerca do futuro e tão pouco acerca do presente?
Configuraram-se as instituições
funcionais da Igreja para determinados contextos sociais e culturais que não podem
ter garantias de eternidade. Não tendo isso em conta, acabam por deixar a vida
pastoral em becos sem saída, paralisada. Abandonaram-se os avisos de Cristo:
“para vinho novo, odres novos”; “o sábado é para o ser humano e não o ser
humano para o sábado”. S. Paulo não se esqueceu: foi para a liberdade que Cristo
vos libertou.
É muito importante a questão e a
história da teologia da libertação, mas volto a dizer que é ainda mais decisivo
libertar a teologia da ideologia, da visão distorcida da fidelidade confundida
com a repetição do pré-definido, do pré-sabido e do sempre rezado, assim como
era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos[ii].
Um dos modelos medievais da prática
teológica, que sempre me deliciaram, estava ligado à interrogação sistemática,
isto é, às questões disputadas (quaestiones
disputatae). Tomás de Aquino, além disso, estava profundamente marcado pela
teologia negativa, que nada tinha de
niilista. Qualquer afirmação tinha de ser acompanhada de negação. Depois de
descrever a sua teoria do conhecimento teológico e de mostrar a razoabilidade
da afirmação da existência de Deus, diz que seria normal que se procurasse
saber como é Deus, mas não podia ir
por aí, pois só podemos saber como Ele não é. Esta é uma teologia da libertação
da idolatria dos nossos conceitos da divindade[iii].
Era o tempo da combinação do
atrevimento, na teologia, com a virtude da modéstia na sua prática. Tomás de
Aquino sabia unir o que outros separavam: procurar entender para crer e crer
para entender.
3. Quando me perguntam qual foi o papel
da teologia da libertação em Portugal, tenho de ter em conta vários aspectos
para poder responder. A teologia académica, entre 1911 e 1968, esteve em
perfeito jejum, como já referi. Não é uma interpretação. É um facto. Na maioria
dos casos, a teologia dos seminários era de importação, de justificação do que
estava mandado crer e pensar, preparava párocos. O padre Joaquim Alves Correia
era um teólogo por conta própria. Testemunhava a Largueza do Reino de Deus, que lhe saiu caro, dada a estreiteza da
ideologia dominante.
Existe uma produção histórica abundante sobre
a relação da Igreja com o Estado Novo e o mundo dos católicos que a
questionavam. Nessa produção não se fala de teologia da libertação nem da
libertação da teologia, mas existiram ambas com os limites que as circunstâncias
eclesiais e políticas impunham, mas o conhecimento dos seus percursos tem de
ficar para outra crónica.
Hoje, não posso esquecer que o Papa
Francisco, o praticante e resistente da teologia da libertação e da libertação
da teologia, instituiu o Dia Mundial do Pobre. Acontece neste Domingo. Se os
pobres não estiverem na missa, é porque lha roubaram.
19. 11. 2017
[i] António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, Círculo de
Leitores, 2017, pp. 331-332.
[ii] Quem desejar conhecer o que era a prisão da
teologia nos anos 50 do séc. passado, leia o impressionante Journal d’un
théologien (1946-1956), de Yves Congar, Cerf, 2000
[iii] Summa Theologiae,
q. III, Prólogo
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