1. Da
religião da tristeza resvalou-se para a tristeza da religião. Os primeiros
gestos, palavras e atitudes do Papa Francisco mostraram que era possível virar
essa página: a da Igreja e a da sociedade. Não queria fazer nada sem Deus e sem
os irmãos. Mas o Deus de que fala e vive não é o da tristeza e da ameaça. Os
irmãos convocados não são, apenas, os praticantes dos rituais católicos.
É bem conhecido que, em
muito pouco tempo, enviou ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e a todos
os fiéis leigos uma convocatória para levarem o Evangelho da Alegria ao mundo actual. Inscreveu-se, deste modo, no
caminho aberto por Jesus de Nazaré, assumido por João XXIII e esboçado no
Vaticano II. Entretanto, o mundo mudou e está a mudar com uma velocidade
estonteante.
Para Klaus Schwab, entre
os muitos e diversificados desafios fascinantes que enfrentamos, o mais intenso
e importante é como compreender e definir a nova revolução tecnológica, que
implica nada menos do que a transformação de toda a humanidade. Estamos no
início de uma revolução que alterará radicalmente a maneira como vivemos,
trabalhamos e nos relacionamos. Na sua escala, amplitude e complexidade, o que considera
ser a Quarta Revolução Industrial é
diferente de tudo o que a humanidade viveu antes[1].
Se não estamos no paraíso
– o mundo é de muito poucos e o sofrimento é de muitos – os impactos positivos
desta revolução não podem fazer esquecer os negativos e os desconhecidos. É, no
entanto, uma alegria contar com um Papa que, em vez de paralisar as energias
dos católicos, lança uma esperança de que, todos juntos, poderemos fazer face
aos desafios das loucuras da dominação económica, política, social e religiosa.
O poder do Papa é o de acordar o que há de melhor nas pessoas, sejam elas quais
forem, e de convocar, crentes e não crentes, para uma mudança radical que, na
linguagem da caminhada da Igreja, se chama Quaresma e Ressurreição[2].
2.
Está a difundir-se a ideia de que Bergoglio anda a minar as bases da própria
sociedade e da história humana, isto é, a destruir a Família. O currículo deste
argentino, quando foi eleito Papa, era o de um pastor que conhecia os percursos
mais aceites e os mais mal vistos, segundo os critérios de um Direito Canónico
pouco especializado no primado do amor e da alegria das pessoas. Por vezes, não
se percebia se a instituição matrimonial era para a felicidade das pessoas ou
para manter inalterável uma instituição especializada em normas de exclusão.
Estava longe da palavra libertadora de Cristo: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado.
Francisco, consciente das
transformações que atingem todas as sociedades e culturas, não se fixou,
apenas, na sua longa experiência. Depois de consultar muitos casais, padres,
bispos e cardeais, publicou um documento aberto para que todos procurem, a
partir do concreto, - e mesmo sabendo a fragilidade de tudo o que é humano - os
caminhos que fazem do encontro do homem e da mulher, com toda a família, a
experiência da Alegria do Amor[3].
Chamar-lhe um texto da
destruição é, simplesmente, ridículo. É, pelo contrário, uma luz à procura de
mais luz. Importa encontrar os caminhos que erradiquem as tristezas e as
opressões que transformaram a sexualidade – uma bênção divina do amor humano e
das suas expressões sexuais – numa solicitação ao pecado. O próprio sacramento
do matrimónio foi entendido como um modo de tornar lícita uma união de natureza
impura: a união sexual do homem e da mulher[4].
As dificuldades em concretizar e prosseguir a
pastoral aberta pelo Papa Francisco, sobre o acesso dos divorciados recasados
aos sacramentos, radica, precisamente, na recusa de aceitar a união sexual como
bênção. É evidente que toda a actividade humana, enquanto exercício da
liberdade, pode desviar-se e atraiçoar-se. A sexualidade pode ser um exercício
de opressão, de violência, de exploração, pecado gravíssimo. Mas propor a um
casal a abstinência sexual não é a forma de reconhecer a sexualidade como
bênção. No mundo católico, o pecado dos pecados era o que estava ligado ao
sexo. O pecado económico, ecológico, racial – veja-se o tráfico humano, a
destruição do planeta, a privação de casa, de trabalho, de saúde primária, etc.
– nem pecado era!
Por causa de se entender mal
um grande sacramento, acabou-se por esquecer a primordial bênção divina da
família.
3. É
como tal que aparece no Génesis. Nascer numa família é normal desde há muito
tempo. Através de uma análise de ADN, pesquisadores coordenados por Wolfgang
Haak, da Universidade de Adelaide (Austrália), identificaram quatro corpos como
sendo uma mãe, um pai e os seus dois filhos, um de 8 ou 9 anos e outro de 4 ou
5 anos. É uma família com uma idade de 4.600 anos que não casou pela Igreja.
Segundo o registro genético molecular
já identificado, esta é considerada a família mais antiga no mundo. Seria puro
milagre que uma realidade humana com vários modelos, segundo a história dos
povos e culturas, fosse uma instituição sem problemas, um casamento de anjos.
A história do cristianismo
é marcada por lutas periódicas contra as tentações dualistas: a dos gnósticos, dos
maniqueus, dos cátaros. É difícil acreditar num Deus humanado. Que o corpo de
Jesus de Nazaré seja corpo de Deus. O corpo é um dom, não uma maldição[5].
Dizem que na Pastoral da
Família o tempo de namoro é fundamental. Mas não se pode concluir que os
problemas ficam todos resolvidos, de uma vez para sempre, com a celebração do
sacramento. Como fazer do casamento um processo de toda a vida?
Creio que nenhum padre,
bispo, cardeal ou papa dispõe de uma solução pronta a servir. O melhor é
escutar e escutar sempre. Mas sobretudo dar-se conta de que os sacerdotes do
casamento são os casais e são eles os mais responsáveis pela Pastoral da
Família, presente e futura. Vai ser longo o caminho para vencer o clericalismo.
O humor não faz mal ao
amor à família. Em Granada, encontrei um pequeno azulejo com estes dizeres:
família só a Sagrada e, mesmo esta, na parede pendurada.
18. 02. 2018
[1] Klaus
SChwab, A Quarta Revolução Industrial,
LEVOIR em parceria com o PÚBLICO, 2017.
[2] Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma
de 2018.
[3] Amoris laetitia, Paulus,2016
[4] VV.AA., O enigma da sexualidade, Cadernos ISTA,
nº 16, 2003; Francolino Gonçalves, As
Mulheres na Bíblia, in Cadernos ISTA, nº 21, 2008, pp.109-159; VV.AA., A Família tem Futuro?, Cadernos ISTA, nº
31, 2015; Matrimónio, in Enciclopedia
del Cristianesimo, pp. 455-457.
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