1. Os dominicanos
franceses, A. Couturier e P. Régamey, directores da famosa revista L’ Art Sacré (dos anos 50 do século
passado), impuseram a si próprios, como critério nas escolhas dos artistas
a convidar para as encomendas de novas igrejas, o de apostar no génio! Este critério deveria ser anterior às
considerações de ordem confessional. Partiam da convicção de que, numa grande
obra de arte, está inscrita uma abertura à transcendência. Os resultados da
aplicação concreta deste critério foram admiráveis e inspiradores. O Movimento
de Renovação da Arte Religiosa (MRAR) em Portugal, no século XX, foi
profundamente influenciado por essas exigências[1]. A bela exposição no
Convento de S. Domingos (Alto dos Moinhos) para celebrar os oitocentos anos da
presença dominicana em Portugal (1216-2016) testemunha a importância dessa
lucidez religiosa[2].
Alegra-me que o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do
Conselho Pontifício da Cultura, tenha assumido as preocupações inscritas na
metáfora do padre Alain Coutourier: apostar
no génio. Já deu muitas provas dessa esclarecida
visão. Agora, marcou a presença do Vaticano na Bienal de Arquitectura de Veneza,
na ilha San Giorgio Maggiori, um bosque com vista para o mar, com a construção
de 10 capelas de dez arquitectos de vários países e continentes. Entre eles
está o arquitecto português Eduardo Souto Moura. A encomenda da Santa Sé não lhes
exigia um templo cristão. Tinha apenas de ter uma mesa para pousar um livro.
Isabel Salema apresentou, neste Jornal, a história da encomenda das capelas e,
especialmente, a realização e as convicções de Souto Moura[3].
2. Quando se
aborda a relação da Igreja com estes temas, é indispensável saber de que se
fala ao usar a palavra igreja. Se
pensamos apenas nas hierarquias, ficamos sem saber quais são os critérios
democráticos da sua representatividade. Em princípio, todos os seus membros devem
poder dizer: a igreja somos todos nós.
A igreja são os seus membros e só, indirectamente, designa os templos mais ou
menos belos, com ou sem paredes.
No plano da cidadania e da política, não basta dizer que a igreja
é plural e cada um decide como quiser. Esta afirmação alimenta alguns equívocos.
Confunde a igreja com a hierarquia e não deixa ver o que é a liberdade eclesial
na construção da sociedade, seja a nível económico, político ou cultural. Em
nome da liberdade cristã, não vale tudo. Esquece-se, principalmente, o
confronto com a prática histórica de Jesus e com os seus equivalentes no mundo
actual. Sem este confronto, vingam as respostas sempre prontas a servir, pela
hierarquia, e deixa de ser o Evangelho a questionar os próprios cristãos. O
cristianismo e os seus valores passam a ser, apenas, uma etiqueta para quando
dá jeito.
Importa sublinhar que Jesus questionou, durante toda a sua vida
pública, a religião em que foi educado e que legitimava tudo – o certo e o
errado – em nome da vontade de Deus inscrita na Lei e nas Tradições ancestrais.
Jesus tinha antepassados no profetismo de Israel. Os profetas
não eram adivinhos. Eram pessoas clarividentes, lúcidas, acerca do que estava a
acontecer e das decisões que abriam ou fechavam o futuro. A preocupação e a
ocupação deles era o presente, para tornar a população consciente do que estava
a arriscar, segundo as opções que tomava. É interessante saber que essas vozes
incómodas foram rareando e os escribas e doutores da lei entretinham-se em
subtilezas que deixavam os que já estavam mal ainda pior, fosse em que domínio
fosse, religioso ou profano. Nesse mundo, Deus era antigo, a Lei era antiga, os
seus intérpretes constituíam uma antiga casta de legitimação de interesses ou
de conquista de posições. João Baptista lutava por uma mudança moral, mas não alterava
as antigas representações nem de Deus nem das suas leis.
Jesus foi educado num mundo em que a própria religião se
tinha tornado a cadeia dos que não tinham defesa. Ele era um leigo. Não tinha frequentado
nenhuma das escolas famosas da época, mas a sua experiência de Deus mostrou-lhe
que nem da religião nem das leis sociais vigentes se podia esperar o Reino da
alegria.
A sua intervenção libertadora, muito concreta na história de
há 2 mil anos, foi interpretada pela poética do Apocalipse, no horizonte de uma
renovação total do mundo, sem data marcada: «Vi, então, um céu novo e uma nova
terra… Eis que faço novas todas as coisas… Eu sou o Alfa e o Omega, o Princípio
e o Fim e a quem tem sede darei gratuitamente da fonte de água viva. O vencedor
receberá esta herança e eu serei o seu Deus e ele será o meu filho»[4].
Jesus de Nazaré desfatalizou
a história. Nada tem de ser como está. A juventude de Deus é a força da
renovação do mundo.
3. O Papa
Francisco, numa conversa com Thomas Leoncini, afirma que Deus é jovem[5].
Um amigo disse-me: é um título oportunista adaptado à publicidade, sabendo que,
desde há muito tempo, se repete que Deus não é velho nem novo. Morreu, acabou e
acabou também a cultura que se baseava nessa referência. É certo que a Igreja
Católica tem feito um certo esforço de renovação em muitas áreas. Chegou mesmo
a reunir um Concílio, em meados do século XX, para falar, de forma simpática,
da Igreja no Mundo contemporâneo, Mundo esse que o Vaticano, do século XIX,
tinha condenado de todas as formas e feitios.
Parece-me que esse amigo está completamente enganado pela
catequese que recebeu e pelas missas que frequentou até ao dia do desengano em
que tudo, na religião, lhe cheira a passado e a mofo. As imagens do Inimaginável, com que foi intoxicado
pelas beatices bem-intencionadas, resultaram na sua alergia actual. Precisa de apostar no génio que é o Papa Francisco
e no Deus que renova a sua juventude.
[1]
João Alves da Cunha, UC Editora, 2015
[2]
Os Dominicanos em Portugal
(1216-2016), Coord: António Camões Gouveia, José Nunes, O.p., Paulo F. de
Oliveira Fontes, UCP Lisboa, 2018
[3]
Público, 26.05.2018, pp. 32-33. Não
foi por essa magnífica Capela que este arquitecto recebeu o Leão de Ouro, a distinção máxima da
Bienal de Arquitectura de Veneza, mas pelo complexo
turístico de São Lourenço do Barrocal, recuperação de um monte
alentejano e a sua adaptação a hotel.
[4]
Ap 21
[5]
Planeta, 2018.
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