1. O mal resulta da ausência de um bem que deveria existir, seja na
natureza, seja no agir humano. A serenidade desta lucidez metafísica tem um
inconveniente: ou é linguagem de robot para robots ou um insulto a quem sofre. As
ciências estudam as causas desses disfuncionamentos, os processos de os evitar
e os remédios da sua cura. Dizem-me que a imortalidade está no horizonte lógico
da ciência. A promessa da longevidade e da juventude ilimitadas vai de encontro
ao nosso desejo de viver bem, com saúde e sem envelhecimento. Esta conjectura
agradável não pode evitar interrogações de carácter social, político, económico,
cultural e ético. Os pós-humanistas julgam que essa hora chegará mais depressa
do que se imagina. Até lá, mais vale encarar o facto de uma existência limitada
que privilegia os laços da amizade e da solidariedade efectiva. A história do
sofrimento dos inocentes deita para o caixote do lixo qualquer especulação
sobre o mal.
Repete-se, desde Epicuro (séc. III
a. C), dos modos mais diversos, que Deus e o mal não podem coabitar. O mal é um
escândalo e um problema para qualquer ser humano, mas especialmente para quem é
religioso. Um mundo com mal e sem Deus talvez fosse menos problemático, pois ou
Deus quer eliminar o mal e não pode, ou pode e não quer. Se quer e não pode, é
impotente; se pode e não quer é mau.
Nunca me impressionou muito essa conversa
centrada num Deus encurralado pela lógica totalitária, sem espaço para a responsabilidade
humana.
O
que mais me espanta é a nossa falta de juízo e de bondade. Somos testemunhas de
guerras horrorosas. Sabemos que, na maioria dos casos, foram e são, a todos os
níveis, frutos do desejo de pessoas e grupos possessos da vontade de dominação
económica, política, cultural e religiosa. Em última análise, a resposta à
graça da livre conversão à boa e imaginativa hierarquização dos nossos desejos
pode ajudar a diminuir a loucura mundana. Encarar a vida como o desenvolvimento
de todos os talentos para ajudar, de modo competente, as capacidades dos que
não tiveram oportunidades, é talvez um bom caminho para a nova civilização
proposta pelo Papa Francisco. Para ele, o mal não é um problema teórico, mas um
desafio a enfrentar mediante a praxis humana solidária, cristã. Daí nasce a
fonte divina e humana dos verdadeiros milagres.
2. Diz-se que não há
testemunhos do riso de Jesus, mas abundam as referências ao seu requintado
humor. O texto escolhido para a liturgia do Domingo passado[1] e o proposto para hoje[2], colocam a questão dos milagres de forma tão pouco
convencional que importa analisar.
No primeiro, numa única narrativa,
entre o trágico e o cómico, acontecem dois “milagres” muito improváveis. Segundo
o Novo Testamento, o grupo dos fariseus – sobretudo os chefes das sinagogas – não
via com bons olhos as inovações do Nazareno. Ora, nesse texto, é precisamente
um chefe de sinagoga, chamado Jairo, a pedir, com insistência, a intervenção de
Jesus para salvar a sua filha que estava a morrer: vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva. Jesus não se fez
rogado e acompanhou o pai da criança, seguido de grande multidão que o apertava
por todos os lados. Entretanto, uma mulher extremamente doente que, há doze
anos, sofria muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens sem
ter obtido qualquer resultado, antes
piorava cada vez mais, tendo ouvido falar de Jesus, veio por entre a
multidão e tocou-lhe no manto, dizendo consigo: se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada. E ficou.
Não foi um gesto supersticioso,
foi um puro acto de fé, isto é, de confiança absoluta.
É verdade que a narrativa é cómica:
quando Jesus pergunta quem me tocou, apertado
pela multidão, os discípulos acham a pergunta descabida. De facto, Jesus sentiu
que algo aconteceu no seu próprio corpo e a mulher, assustada e a tremer pelo
que lhe tinha acontecido, disse a verdade. Jesus nem sequer diz que a curou: minha filha a tua fé te salvou. Ao dizer
isto, Jesus exprimiu o mais íntimo da relação entre Deus e o ser humano. A coincidência
de dois movimentos: o desejo de Jesus de curar – era a sua maneira de viver – e
o desejo da mulher de ser curada. A salvação realiza-se no encontro desses dois
movimentos. A fé salva porque é a entrega confiante ao amor que a precede. É o
abraço de dois desejos: de Deus e da criatura. É, por isso, um exercício de
liberdade. Deus deseja, mas não obriga ninguém a reconhecê-lo nos seus sinais.
Quando Jesus diz à mulher foi a tua fé que te salvou, até parece
que ele não fez nada. Não é verdade. Como diz o narrador, do corpo de Jesus
saiu uma energia real que ele próprio estranhou. Essa graça encontrou-se com um
desejo ardente e desesperado. Sem este desejo da mulher Jesus não podia nada.
3. No meio da confusão, vem a notícia da casa de Jairo: a tua filha morreu, não incomodes mais o
Mestre.
Jesus ao chefe da sinagoga: Não temas, basta que tenhas fé. Seguido
de Pedro, Tiago e João, vendo grande alvoroço com gente que chorava e gritava,
atreve-se a uma provocação que até parecia de mau gosto: a menina não morreu, está a dormir. Riram-se dele. Levando consigo
o pai e os referidos discípulos, entrou no local onde ela jazia. Pegou-lhe na
mão e disse: Menina, eu te ordeno,
levanta-te. Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar, pois já tinha
doze anos. Ficaram todos muito maravilhados. Jesus recomendou-lhes,
insistentemente, que ninguém soubesse do caso e mandou dar-lhe de comer.
Noutros casos, as pessoas que
reconheciam em Jesus uma energia estranha atribuíam-na a uma possessão diabólica
porque ele não era um observante de convenções religiosas[3].
É essa a questão deste Domingo. Jesus
foi à sua terra acompanhado dos discípulos. Chegado o sábado, começou a ensinar
na sinagoga. Os numerosos ouvintes interrogavam-se acerca da origem das suas
palavras e acções prodigiosas, mas ficavam de fora. Porque seria? O
conhecimento do estatuto modesto deste carpinteiro e da sua numerosa família secava
qualquer interrogação de fundo. O conhecimento que tinham de Jesus era uma
ignorância acerca da significação inovadora do que Ele andava a fazer e a
dizer. Ao preferirem continuar num ram-ram
sem surpresas e sem novos horizontes, ficaram onde sempre estiveram. O ritual
foi cumprido e nada aconteceu. Ao contrário do Domingo passado, Jesus ficou
espantado com a falta de fé daquela gente.
Nas celebrações actuais da
Eucaristia, para que algo aconteça de inovador, é preciso deixar-se convocar
para a participação na reforma pessoal, da Igreja e da sociedade. Sem esse
desejo activo, Cristo nada pode fazer. Os rituais são cumpridos, mas se as instituições
da Igreja continuarem no seu ram-ram e
a ignorar os desafios do Papa Francisco, que se pode esperar?
Alguns julgam-se heróis da mudança
pelo regresso ao que julgam ser a Santa
Missa de Sempre, que nunca existiu como missa de sempre. Andam para trás
para se realizarem como estátuas de sal, fruto de uma incurável miopia[4].
08.07.2018
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