domingo, 23 de setembro de 2018

O PAPA NÃO ESTÁ SÓ! Frei Bento Domingues, O.P.


1. No mês de Agosto, não pude responder às muitas solicitações telefónicas para comentar os acontecimentos em torno do comportamento do Papa Francisco perante a pedofilia clerical e nos começos de Setembro, também não. Ao agradecer a acolhedora hospitalidade deste Jornal, talvez fosse oportuno esboçar um balanço das campanhas para difamar o Papa, desacreditar os seus objectivos e os seus caminhos de reforma da Igreja. Era urgente criar um clima que desse a impressão de que Bergoglio não era o remédio, mas o veneno. Tinha chegado a hora de o desmascarar.

O cálculo das oposições organizadas para derrotar o projecto reformador do Papa Francisco não estava mal concebido. Impunha-se aproveitar os seus encontros com as Igrejas onde os clérigos pedófilos, padres, bispos e cardeais, fizeram mais vítimas. Era indispensável mobilizar os meios de comunicação para mostrar as dimensões não só da tragédia, mas a incapacidade do Papa em responder, com actos, à indignação das vítimas. O importante era encontrar algumas pistas para dizer que o responsável de tudo era o próprio Papa. Não tinha sentido que ele andasse a pedir perdão, quando, de facto, ele era conivente. Já tinha tido tempo para erradicar essa abominação eclesiástica e veio, afinal, a encobri-la, enchendo a boca contra o carreirismo de seminaristas, padres, bispos e cardeais. Como quem diz: anda a querer reformar a sociedade, a política, a economia que mata, a Igreja a todos os níveis, quando o mais urgente é reformá-lo a ele. Ou se demite ou deve ser demitido, pois é um herético e anda a levar a Igreja para a catástrofe.

Foi tal o entusiasmo com a sua eleição, com os seus insólitos gestos e atitudes, que muitos julgaram que o caminho aberto era irreversível. Esse acolhimento, que parecia universal, distraiu muitos dos seus seguidores: acreditavam, de forma ingénua, que as reformas propostas tinham apenas a oposição dos instalados na cúria romana e nas cúrias episcopais.

Puro engano. Falava-se de alguns movimentos e organizações que não viam com bons olhos os atrevimentos de Bergoglio, mas como a idade era muita e a saúde era pouca, a natureza encargar-se-ia de resolver o problema. Falava-se sempre do próximo Papa. Este já tinha os dias contados. Os dias e os anos passaram e ele, apesar de tudo, resistia e estava sempre a anunciar e a lançar coisas novas.

Por outro lado, os que tinham muita pressa e julgavam que o Papa devia fazer as reformas todas por decreto, sem estar a olhar aos seus deveres de respeito para com os direitos de todas as pessoas, tornaram-se aliados funcionais daqueles que se organizavam para vencer as reformas de Bergoglio. 

2. Em Portugal, mas não só, era estranha a atitude de distância de padres e bispos em relação ao Papa caluniado. Era o cisma do silêncio, de surdos e mudos. De repente, a partir do comunicado exemplar do bispo de Aveiro, António Manuel Moiteiro Ramos, incentivando toda a diocese a um apoio explícito ao Papa Francisco, assim como várias cartas de leigos à própria Conferência Episcopal, esta sentiu que não podia continuar alheia à calúnia. Tarde, mas lá cumpriu o seu dever.

Ao dizer isto, ainda não saí do mundo clerical: Papa, cardeais, bispos e padres. Santo Agostinho[1], no início de um sermão sobre os pastores, já tinha tocado na raiz do clericalismo que envenenou as relações no seio da Igreja, ao dizer: «somos cristãos e somos bispos. Somos cristãos para nosso proveito, somos bispos para vosso proveito. Pelo facto de sermos cristãos, devemos pensar na nossa salvação; pelo facto de sermos bispos, devemos preocupar-nos com a vossa. (…) devemos dar contas a Deus pela nossa própria vida, como cristãos; mas, além disso, devemos dar contas a Deus do exercício do nosso ministério, como pastores.» Inverteu a pirâmide. Antes de ser bispo, é um cristão, mas aqui começam também os equívocos. Cristão parece pouca coisa e padre e bispo, uma promoção na carreira. O importante é chegar a padre e, melhor, chegar a bispo e, se for bispo de Roma, é o Papa de toda a Igreja. Chegou ao topo da carreira. Pura asneira! Ser cristão, isto é, seguidor de Jesus, é a aspiração maior de quem fizer a descoberta do Nazareno. No Baptismo, pela graça do Espírito Santo, o ser humano torna-se membro de um povo sacerdotal, porque participa no sacerdócio de Jesus Cristo. Quando lhe chamam o sacerdócio comum dos fiéis querem dar a ideia de que é um sacerdócio banal, comum a todos. O Novo Testamento (NT) só conhece este sacerdócio. A graça do Espírito Santo significada e acolhida no Baptismo é o que há de mais essencial na lei nova do Evangelho, como lembrou Tomás de Aquino.

Tudo o resto, todas as mediações, sacramentais ou não, são ajudas para o desenvolvimento dessa vida cristã. Nunca será demais repetir. Os padres e os bispos não mandam na Igreja, servem a Igreja. Estão ao serviço das comunidades para que estas percorram na sociedade o caminho aberto por Jesus, que não veio para ser servido, mas para dar a vida. Como sublinha Santo Agostinho, essa é a sua glória. O clericalismo vê tudo ao contrário: o clero é considerado, erradamente, como o mais fundamental na Igreja.

3. Contra esta perspectiva surge uma objecção de peso: se é para servir, não quero ser padre nem bispo e cai por terra a pastoral das, falsamente, chamadas vocações sacerdotais. Não é uma dificuldade desconhecida nas relações entre Jesus e os seus discípulos. Diz S. Marcos que os discípulos não entendiam nada do que o Mestre lhes exigia. Um dia, resolveu tirar a limpo a discussão que ocupava as vocações que arranjara. Perguntou-lhes: o que discutíeis no caminho? Ficaram em silêncio, porque pelo caminho tinham vindo a discutir qual deles era o mais importante. Tiago e João romperam o silêncio: queremos que nos concedas o primeiro e o segundo lugares do grupo. Este sincero atrevimento obrigou o Mestre a uma reunião de emergência, pois os outros dez ficaram indignados por não terem tido a coragem de se anteciparem. Reacção de Jesus: posso perder todas estas vocações, mas não vou alimentar um equívoco. Quem de entre vós quiser ser o primeiro, que seja o servo de todos e fica o problema resolvido. Aconselho a leitura directa e íntegra dos capítulos nove e dez deste evangelista[2].

É normal que certas pessoas, grupos e movimentos desejem que o Papa se cale. Ele não parece disposto a fazer-lhes a vontade. Veremos porquê.

16.09.2018



[1] Séc. V, início do Sermão sobre os Pastores
[2] Mc 9 e 10

Sem comentários:

Enviar um comentário