1. Vamo-nos enganando e já não é pouco! Foi o comentário de um
amigo à minha homilia de apresentação da Mensagem do Papa para o II Dia Mundial
dos Pobres, no passado Domingo. Procurou
fazer-me uma breve catequese de bom senso, pois ninguém tem uma receita eficaz
para curar a história da nossa desumanidade. Mergulhados no mistério do tempo,
cada um de nós vive, apenas, o pequeno intervalo entre o nascimento e a morte. Tanto
vale acreditar que o mundo vai mudar para melhor como repetir que irá sempre de
mal a pior. Os anúncios do avanço das ciências e das técnicas deixaram, há
muito, de o entusiasmar. A quem vão eles servir? Oferecem, aos donos dos
grandes negócios, novos instrumentos e condições para desenvolverem a
concentração da riqueza e do poder económico, bélico e político. O mundo de
todos em mãos de poucos.
Insistiu comigo: aquilo que o Papa diz e tenta fazer não resolve nada. O
próprio Cristo, num momento de grande lucidez, arrumou com todas essas veleidades:
pobres sempre os tereis entre vós! Estava escrito na Bíblia o que ele bem
conhecia: não “haja pobres entre vós” e, no entanto, Jerusalém, a cidade santa tinha-se
tornado um grande centro de mendicidade.
Sei que as atitudes, os gestos e
as palavras de Bergoglio não resolvem nada, mas também sei que ajudam muitas
pessoas a resolverem-se a abandonar o cepticismo estéril e a interrogar-se: que posso eu fazer? Impede-nos de tapar
os olhos e os ouvidos e de dizermos que não sabemos bem o que se passa.
Recusando ou aceitando somos cúmplices, aliados ou indiferentes. O Papa não consente
que forjemos um Deus que nos substitua e, por isso, há crianças, adolescentes,
jovens e adultos que para serem felizes optam por hierarquizar as suas
necessidades e desenvolver os seus talentos para vencerem a solidão e as
situações difíceis de outras pessoas. Descobriram que havia estilos de vida
mais divertidos e entusiasmantes do que o culto da estupidez consumista. Um estilo
sóbrio de vida pode e deve ser mais divertido do que a peregrinação obrigatória
a todos os restaurantes do Guia Michelin.
Jesus Cristo e o Papa Francisco
passaram e passam por situações muito difíceis, mas são profundamente felizes
ao terem libertado as suas pulsões e desejos tornando-se disponíveis para verem
o mundo como a Casa Comum de toda a
família humana, nossa família!
Bergoglio já tinha mostrado na Laudato SI que não podemos separar o
clamor da devastação do planeta e o dos pobres. A escuta da terra e a dos pobres
andam sempre juntas. Pertence, precisamente, à ecologia política mostrar que a
crise ambiental e a crise social andam juntas.
A pobreza e a austeridade de S.
Francisco não eram um ascetismo puramente exterior. Eram algo de mais radical:
a renúncia a converter a realidade em mero objecto de uso e domínio, matando o
encanto e a beleza do mundo. Mercantilizar todos os âmbitos da vida é
instrumentalizar as relações humanas e a relação com a natureza. Nem tudo na
vida humana se pode ou deve comprar e vender.
2. O
Papa não inventou os factos. Em Setembro
de 2015, os países reunidos na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU)
comprometeram-se com uma agenda de desenvolvimento até 2030. Nessa agenda havia
um compromisso: acabar com a pobreza em
todas as suas formas, em todos os lugares. Ou seja, os esforços devem
apontar para o objectivo de fazer com que o rendimento mínimo diário de cada
pessoa supere 1,25 dólares, índice que designa, actualmente, a linha da pobreza
extrema.
Como estancar a reprodução das grandes
desigualdades e da pobreza? Quando se diz que é o produto de escolhas políticas
injustas que reflectem a desigual distribuição do poder na sociedade, não se abordam,
de forma clara, as possibilidades concretas de alterar essas escolhas. Se não é
possível erradicar a pobreza no mundo sem reduzir drasticamente os níveis de
desigualdade, como conseguir esse objectivo? Diz-se que os níveis extremos de
desigualdades interferem na capacidade do Estado e da sociedade redistribuírem o
rendimento. Erguem barreiras à mobilidade social e mantêm parcelas da população
à margem da economia.
Que fazer? Quem sabe não pode e quem pode não quer.
3.
Estaremos, então, condenados ao imobilismo e deixar livre o caminho para o
abismo?
O relatório da ONU para o Desenvolvimento 2017,
afirma que 6,5% da população global continuará na pobreza extrema até 2030, se
a actual taxa de crescimento e políticas para o sector permanecerem
inalteradas.
Segundo a ONU são necessários novos esforços
multilaterais para tirar 550 milhões de pessoas da situação de pobreza. Se
isso não acontecer, os esforços para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento
Sustentável serão fortemente prejudicados. Não se vence a pobreza até 2030 e os
países menos desenvolvidos vão ficar muito abaixo das metas estabelecidas.
O secretário-geral da ONU, António Guterres,
pediu acção imediata dos países para enfrentar o problema: “apesar dos grandes
esforços na luta contra a pobreza, a desigualdade cresceu em todo o mundo. Os
conflitos estão a aumentar. Outros problemas como as alterações climáticas, a insegurança
alimentar e a escassez de água estão a colocar em risco os progressos
alcançados nas últimas décadas”.
Os
cépticos continuarão a dizer que, com ONU ou sem ONU, com o Papa Francisco ou
sem o Papa Francisco, a situação dos pobres e dos remendos para a minorar é
muito antiga e desencorajante. Os pobres, ao morrerem, continuarão a deixar,
como herança aos seus descendentes, apenas a sua pobreza.
A
condição humana é histórica, está a caminho, não está irremediavelmente
condenada ou salva. Esquecemos que a desigualdade entre os seres humanos começa
cedo. Uns nascem em berços de ouro, outros debaixo das pontes. O que lhe é
próprio é não se render ao infortúnio, nem a nível individual, nem a nível social.
Quando alguém não pode, precisa de quem o ajude e, para se realizar como
humano, precisa de ajudar. Mas, sem uma dimensão política em que seja possível
procurar uma vida de qualidade, em instituições justas, a nível individual e
global, não há manta que chegue para todos.
É
verdade que ninguém dispõe de soluções prontas a servir a dignidade humana de
todos. Mas ninguém devia dispensar a pergunta: eu não posso mesmo fazer nada?
O
Papa Francisco faz o que pode, mas não nos pode substituir.
25.11.2018
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