1. A fraternidade de horizonte universalista é de origem cristã. Basta
abrir o Novo Testamento. O Evangelho de S. Marcos atribui a loucura de fazer
família com quem não era da família, ao próprio Jesus de Nazaré. S. Lucas vê no
Espírito do Pentecostes, o começo da autêntica união na diferença. Para S.
Paulo, os que foram banhados no Espírito
de Cristo devem testemunhar que o mundo de separações e privilégios acabou: não
há nem judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Mais ainda, a
humanidade inteira é um só corpo de muitos membros, uma comunidade de muitos
carismas. Foi o tema paulino de Domingo passado e é, também, o deste Domingo.
As metáforas usadas convergem num ponto: as pessoas precisam todas umas das
outras para afirmarem a própria identidade, pois esta é uma identidade de
relação e não de isolamento.
Cristo, o Homem Novo, derrubou os muros de separação, estabelecendo a
paz e a amizade. Judeus e gentios são concidadãos na família de Deus. Esta
afirmação da carta aos Efésios é de alcance universal, para todos os tempos e
para todos os povos.
Dir-se-á: são metáforas, artes de
falar e não de realizar. De facto, não são receitas, mas não são inócuas. São
caminhos, são pontes e devem constituir testemunhos de que outro mundo é
possível.
O Papa Francisco ao insistir, com
ênfase, na reabilitação da política, toca numa urgência. Quando alguém diz não quero nada com a política, está a
tornar-se sua vítima. O melhor talvez seja trabalhar na sua modificação.
No discurso aos participantes do
segundo Encontro Mundial dos Movimentos Populares, o Papa observa[1]: queremos uma mudança
positiva em benefício de todos os nossos irmãos e irmãs – disto estamos certos!
Queremos uma mudança que se enriqueça com o trabalho conjunto entre governos,
movimentos populares e outras forças sociais. Também sabemos isto! Mas não é
assim tão fácil definir o conteúdo da mudança, ou seja, o programa social que
reflicta este projecto de fraternidade e justiça que desejamos; não é fácil de
o definir. Neste sentido, não esperem uma receita deste Papa. Nem o Papa nem a
Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade social e da proposta de
soluções para problemas contemporâneos. Atrever-me-ia a dizer que não existe
uma receita. A História é construída pelas gerações que se vão sucedendo no
horizonte de povos que avançam, fazendo o próprio caminho e respeitando os
valores que Deus lhes pôs no coração.
Se não sabe e não recorre à
infalibilidade ou ao magistério da Igreja, porque não se cala?
Não só não se cala, como ousa
dizer coisas atrevidas. Os seres humanos e a Natureza não devem estar ao
serviço do dinheiro. Digamos NÃO a uma economia de exclusão e de desigualdade,
em que o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata! Esta economia
exclui. Esta economia destrói a mãe Terra.
A economia, continuou o Papa, não
deveria ser um mecanismo de acumulação, mas a condigna administração da casa
comum. Isto implica cuidar zelosamente da casa e distribuir, de forma adequada,
os bens de todos. A sua finalidade não é apenas garantir alimento ou um decoroso sustento. Não é sequer, embora
fosse já um grande passo, garantir o acesso aos 3T pelos quais combateis. Uma economia verdadeiramente comunitária
– poder-se-ia dizer, uma economia de inspiração cristã – deve garantir aos
povos dignidade, prosperidade e civilização nos seus múltiplos aspectos.
Implica acesso à educação, à saúde, à inovação, às manifestações artísticas e
culturais, à comunicação, ao desporto e à recriação.
2. É uma posição que se
prende com a crença no destino universal dos bens. Que o ser humano não tem
preço, mas valor, já Kant o disse. Por outro lado, uma sabedoria ética muito antiga
propunha: não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti, ou
até, em sentido positivo, faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti,
em idênticas circunstâncias.
Há muita queixa contra Deus por
ter o mundo nesta situação. Não poderia Ele com um golpe de vontade resolver
todos os problemas e mandar-nos a todos para férias? Não me cabe a mim defender
Deus. Parece que não está disposto a substituir os seres humanos.
Acontece que na Bíblia há
passagens nas quais é Deus que interroga. No Genesis é Ele que pergunta a Caim:
o que fizeste do teu irmão? Na
simbólica do juízo final, o senhor da história julga os seres humanos não pelo
que fizeram a Deus, mas pelo que fizeram, ou não fizeram, aos outros em
situações de precaridade. Deus identifica-se com estes. Tomás de Aquino dirá:
ninguém ofende Deus directamente, mas os seus filhos, os nossos irmãos.
A ética cristã é de marca
samaritana, não sacerdotal. O sacerdote e o levita não podiam socorrer o
próximo para não estarem impuros no divino culto do templo!
3. Em nome da identidade nacional, está a desenvolver-se um
espírito de exclusão do outro, como
uma ameaça à nossa segurança e bem-estar. Perdeu-se a fraternidade que se
começou a ganhar no início do cristianismo, o esforço para não contrapor
unidade e diversidade. Tanto a unidade como a diversidade são uma realidade de
irmãos, o que não significa que se vão dar sempre como Deus e os Anjos. Mas não há alternativa feliz à união na diferença.
Fora desta, só podem existir dominadores e dominados. É a alternativa perversa.
Para o aparente bem-estar de uns tem de se fazer a desgraça dos outros.
A proposta cristã de fraternidade
exige a conversão do cristianismo. As cruzadas e a inquisição, em nome de
Cristo, revelam que o melhor se pode transformar no pior. A conversão das
religiões que vivem o mesmo vício: o êxito de uma é a desgraça das outras. A
fraternidade exige também a conversão da política, dos seus objectivos e dos
seus métodos.
Se a proposta de um mundo
fraterno, como já referimos, é de origem cristã, significa que não é
propriedade de ninguém, mas um apelo universal. Muitas vezes as “fraternidades”,
religiosas ou não, comportam-se como tribos de exclusão: quem é e quem não é da
nossa fraternidade.
Na trilogia da revolução francesa Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a última
parece também a irmã mais esquecida. A Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948) afirma que os seres humanos devem agir uns em relação com os
outros, num espírito de fraternidade. Só esta os pode salvar.
A febre de construção de muros é
um atentado contra a civilização.
27. 01. 2019
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