domingo, 7 de dezembro de 2025

Advento: o que significa e como viver esse tempo? - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Advento: o que significa e como viver esse tempo?

O Advento é um tempo de preparação para o natal do Senhor Jesus, por isso ele é cheio de esperança.
E essa virtude não nos decepciona, porque, como diz São Paulo, ela foi derramada em nossos
corações pelo Espírito Santo! (Cf. Rm 5,1-6).
Então, temos a certeza de que alcançaremos dias melhores, mais alegria, ânimo e um ano sob a
bênção de Deus, uma vez que o Advento nos proporciona tudo isso por causa da celebração do
nascimento de Cristo.
Mas é preciso uma boa preparação! Não se participa de uma grande festa de qualquer jeito e o
Advento nos traz novas vestes para o coração. Por isso, preparamos este post para relembrar a
importância desse tempo e como vivê-lo bem. Confira!
Advento - tempo de uma espera feliz!
A palavra “advento” vem do latim adventus e significa: chegada, aproximação, vinda. Para a vida
cristã, o Advento é um tempo antes do Natal. Logo, nos prepara para o natal do Filho de Deus, a
segunda maior festa cristã e com isso inicia um novo ano litúrgico na Igreja.
A Tradição da Igreja diz que a vivência do Advento entre os cristãos começou entre os séculos IV e
VII em vários lugares do mundo. No final do século IV na Gália (atual França) e na Espanha, tinha
caráter penitencial, e durava 6 semanas, como na Quaresma (quaresma de São Martinho).
No entanto, esse caráter penitencial se devia à preparação dos candidatos para o batismo na festa da
Epifania. Apenas no final do século VII, em Roma, é acrescentado o aspecto escatológico do Advento,
recordando a segunda vinda do Senhor.
Após a reforma da liturgia, o Advento passou a ser celebrado nos seus dois aspectos: a vinda
definitiva do Senhor e a preparação para o Natal, mantendo a tradição das 4 semanas. A Igreja
sabiamente preservou a dimensão escatológica deste tempo.
Características do Advento
Como vimos a pouco, o Advento nos prepara para celebrar duas verdades de nossa fé: a primeira é o
nascimento de Jesus em Belém; e a segunda é a esperança de Sua vinda definitiva como nos
prometem as Escrituras e a Igreja.
Para isso, o Advento possui quatro domingos. Os dois primeiros nos preparam para a segunda vinda
de Cristo; o terceiro é o domingo da alegria - gaudete, em latim; e o quarto antecede a solenidade do
nascimento de Cristo.
A solenidade do nascimento de Jesus marca o início da vida cristã na história e, no calendário
litúrgico, começa um novo ano para a Igreja e todos os cristãos. Logo, o Advento vem revestido de
alegria, esperança, expectativa e pobreza evangélica que nos faz irmãos.
Mas a Igreja nos ajuda a viver este tempo através dos sinais, das cores, das vestes, dos símbolos. Tudo
com um significado próprio e cheio de sentido para nos ajudar a rezar e preparar o coração para
iniciar um novo ano litúrgico.
Sinais importantes do Advento
Assim como uma grande festa pede uma grande preparação, da mesma forma acontece com o
Advento, porque ele nos prepara para o Natal. Logo, tudo muda e a transformação é visual, vemos
pelos sinais que a Igreja nos apresenta. Vamos a eles:
https://comboni2000.org 1
Mudança das cores: o roxo é a cor do Advento e da Quaresma. Significa penitência, mas não
tristeza, porque temos a certeza de que a alegria virá ao nosso encontro. Então, a veste do
padre (Casula e estola) e alguns paramentos litúrgicos são roxos.
Pouco uso de flores: se na Quaresma não usamos nenhuma flor, no Advento usamos um
pouco menos. Não é proibido, mas diminuído, uma vez que ainda aguardamos o natal do
Senhor.
Não cantamos o glória na Missa. Esse louvor acontecerá na noite do Natal junto com os
sinos da Igreja, lembrando o canto dos anjos aos pastores na gruta de Belém
O presépio é outro sinal deste tempo. Ele é montado no primeiro domingo do Advento e fica
até a Epifania em janeiro. São Francisco de Assis é quem fez o primeiro presépio do mundo e
até hoje essa tradição nos acompanha.
Também a árvore é um símbolo do Natal. De acordo com a Igreja Católica, ela representa a vida, já
que, durante o inverno do Hemisfério Norte, época em que ocorre o Natal por lá, o pinheiro é a única
árvore que não perde suas folhas.
Então, ornamentamos a árvore para simbolizar que a vida que nasce nunca morrerá, ainda que haja
inverno, escuridão ou qualquer dificuldade que esconda a luz, Cristo é a nossa luz e ilumina nossa
vida para sempre.
Coroa do Advento
Além dos sinais citados, há outro bem próprio desse tempo que é a coroa do Advento. Ela é simples,
feita de ramos verdes, em círculo, com quatro velas de cores diferentes: branca, verde, vermelha e
roxa, que são acesas em cada domingo nos conduzindo a Cristo.
O formato da coroa do Advento em círculo significa a eternidade de Deus, sem início e sem fim, e as
velas coloridas trazem um significado especial nesta ordem:
A primeira vela significa a Encarnação, Jesus Histórico; a segunda, Jesus nos pobres e necessitados; a
terceira, Jesus nos Sacramentos; a quarta, Parusia: segunda vinda de Jesus. Cada cor é acesa em um
domingo diferente até que cheguemos à celebração do Natal de Jesus.
As velas nos remetem à luz maior que é Cristo e ao mistério de sua encarnação. Agora a preparação
da casa acompanha a do coração. Logo, vamos abraçar a espiritualidade do Advento, começando pela
Palavra de Deus.
Personagens bíblicos neste tempo de espera
A Igreja, como uma boa mãe, se preocupa com a fé de seus filhos(as) e por isso organiza as leituras
das Escrituras com três personagens que nos ajudam a acolher e viver bem a espiritualidade da espera.
Vamos conhecê-los:
O profeta Isaías é um dos personagens bíblicos que nos acompanha. Ele é visto como o profeta da
esperança, pois alimenta a fé do povo de Deus e anuncia a vinda do Messias através de um virgem (cf.
Is 7,14), assim nossa fé também é renovada por ele.
Outro personagem do Advento é João Batista (cf. Jo 1,29). Ele é o modelo de uma vida que sabe
esperar as promessas de Deus e anunciar a chegada do Salvador. Sua fé, assim como a nossa, é
fundamentada no Messias e na esperança de Seu Reino de paz e de alegria.
A terceira e importante figura do Advento é a Virgem Maria (cf. Lc 1,26). Ela é a escolhida para ser
a mãe do Salvador; o grande modelo de coração que acolheu a Palavra e gerou Jesus para o mundo até
que Ele chegasse em cada um de nós e nossas famílias.
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Espiritualidade desse tempo de esperança
Agora que sabemos mais sobre o Advento, vamos preparar nossa vida para o Natal do Senhor. A
primeira atitude é a de esperança, de alegria serena e uma fé confiante. A segunda, é de vigilância,
porque estamos à espera do Senhor que vem ao nosso encontro.
Assim, a espiritualidade do Advento é marcada por algumas atitudes essenciais que são frutos da vida
de Cristo entre nós; e que fazem do coração humano uma manjedoura cheia de amor para acolher a
Sagrada Família na noite de Natal.
1. A oração sem a qual não há transformação do coração. E nesse tempo, a liturgia diária é o
melhor roteiro para esse encontro pessoal com Deus;
2. A penitência e o jejum são duas atitudes que provam nosso desejo de mudança. Por isso,
escolha algo para oferecer a Deus durante as quatro semanas do Advento;
3. A novena de Natal junto com a família. É fundamental rezar em família já que o Natal
favorece a aproximação e a reconciliação entre nós.
4. O exercício do perdão pela confissão e pelo perdão àqueles que nos ofenderam, é
fundamental a fim de começar um novo ano sem dívidas emocionais e com Jesus no centro de
tudo.
Tempo de solidariedade fraterna
É comprovado que o mês de dezembro é reservado para as confraternizações, festas, troca de
presentes; é um mês que marca o fim de um tempo e o início de outro. Tudo isso faz parte da vida
humana, circula na sociedade e movimenta o comércio.
Mas, para o cristão, o Natal não é apenas isso. Esta celebração é carregada de sentido, nos preenche
de um amor diferente, de um espírito de paz e alegria que não se explica com palavras humanas, mas
nos envia para praticarmos o bem ao próximo.
Se o Advento nos envia para o Senhor, nos atrai também para o próximo, porque no irmão carente -
em todos os sentidos - encontramos o Cristo, que precisou de um estábulo para nascer, mas teve o
conforto e a presença de seus pais.
Por isso, que não há Natal sem solidariedade, principalmente com os mais vulneráveis, aqueles que
não têm como retribuir, como nos ensina o Senhor. Logo, lembramos dos migrantes e refugiados,
nossos irmãos que esperam dias melhores, em uma nova pátria.
Portanto, que a chegada do Natal nos faça missionários do grande amor de Deus através de gestos
concretos de solidariedade e ajuda aos irmãos migrantes e refugiados que encontramos no caminho.
https://scalabrinianos.com - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

A Imaculada e a nossa concepção - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 A Imaculada e a nossa concepção

Ano A – Advento – Imaculada Conceição de Maria

Lucas 1,26-38: “Eis a serva do Senhor”

No dia 8 de dezembro celebramos a Solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa

Maria. Maria foi concebida sem o pecado original, em previsão da missão que teria como

Mãe do Salvador. Não se trata da concepção virginal de Jesus, mas do fato de que Maria foi

preservada do pecado desde o primeiro momento da sua existência. Esta celebração insere-se

harmoniosamente no contexto do Advento, convidando-nos a viver este tempo litúrgico sob o

olhar de Maria, mãe de Jesus e nossa mãe.

O dogma da Imaculada Conceição de Maria foi solenemente proclamado pelo Papa Pio IX

no dia 8 de dezembro de 1854, após ampla consulta ao episcopado de todo o mundo. Na

declaração papal, lemos: “A Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua conceição,

por singular graça e privilégio de Deus Todo-Poderoso, em vista dos méritos de Jesus Cristo,

Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha do pecado original” (bula

Ineffabilis Deus).

Quatro anos depois, a 25 de março de 1858, em Lourdes, a Virgem Maria apresentou-se à

adolescente Bernadette Soubirous (1844-1879) com estas palavras: “Eu sou a Imaculada

Conceição”, pronunciadas no dialeto local: “Que soy era Immaculada Councepciou”.

A proclamação do dogma é recente, mas a festa da Imaculada Conceição tem raízes

profundas na tradição cristã. É fruto de séculos de reflexão teológica, celebração litúrgica e

devoção popular. Podemos dizer que o dogma foi antecipado pelo sensus fidei, a intuição do

povo cristão. Com efeito, desde a época patrística, Maria era vista como “a nova Eva” (Santo

Ireneu). Nesta visão estava o primeiro presságio do dogma da Imaculada Conceição. Eva,

como primeira mulher, foi criada por Deus sem mancha de pecado; Maria, a nova Eva,

chamada a ser a Mãe de Deus, foi concebida também imaculada.

Contemplar esta singular graça e beleza de Maria, contudo, não deveria levar-nos a

colocá-la acima da terra e da nossa humanidade, como uma estrela inatingível. Olhar para

Maria apenas como uma mulher agraciada por privilégios e dons celestes arriscaria afastá-la

de nós. Para descobrir a figura da Virgem Maria, é necessário voltar à simplicidade dos

Evangelhos. Uma vez que o anjo a deixou, Maria retornou à vida quotidiana de alegrias e

sofrimentos, de preocupações e ansiedades, de dúvidas e incertezas... Uma de nós, que

caminha conosco, que vive de fé!

Dizia Santa Teresa de Lisieux: “Para que uma pregação sobre a Santa Virgem me agrade e

me faça bem, é preciso que mostre a sua vida real, e não a sua vida suposta; estou segura de

que a sua vida foi absolutamente simples. Mostram-na inacessível; seria preciso, ao contrário,

mostrá-la imitável, revelar as suas virtudes, dizer que viveu de fé como nós, citando o

Evangelho. [...] Caso contrário, se ouvimos uma pregação em que somos obrigados a ficar

espantados do princípio ao fim, e exclamar: ‘Ah! ah!’, ficamos saturados!” (21/8/1897).

Pontos de reflexão

1. Concebidos no mistério

Cada concepção é envolvida no mistério. Concebida pelos seus pais – Joaquim e Ana, segundo

a tradição – ignorando o desígnio divino, só Deus conheceu aquele momento em que concebeu a

Virgem Maria no Seu amor. Criou-a como nova Eva, “à Sua imagem e semelhança”, em vista do

Seu projeto de salvação. Algo semelhante aconteceu com cada um de nós. O Senhor conheceu-

nos e amou-nos antes mesmo que os nossos pais se apercebessem da nossa existência.

A Imaculada Conceição revela algo também sobre a nossa concepção. Também a nós

Deus “nos abençoou com toda a bênção espiritual”; também a nós “nos escolheu antes da

criação do mundo para sermos santos e imaculados diante d’Ele no amor, predestinando-nos a

sermos para Ele filhos adotivos” (Efésios 1,3-6, segunda leitura).

Em cada pessoa permanece uma parte “imaculada”, “virgem”, “original”, o terreno bom

onde a Palavra de Deus pode criar raízes e dar frutos de amor.

2. Visitados por Deus

Assim como a Maria, Deus visita cada um de nós. Ele envia-nos o Seu Anjo, a Sua Palavra,

para nos transmitir uma tripla mensagem:

- “Alegra-te! porque o Senhor está contigo!”. Deus convida-nos à alegria. Toda verdadeira

alegria nasce desta consciência de que não estamos sozinhos, à mercê dos eventos da vida,

mas que o Senhor está connosco.

- “Não temas! porque encontraste graça diante de Deus!”. O Senhor diz-nos para não

termos medo. O medo – todo medo, mas sobretudo o da morte! – impede-nos de viver

serenamente e de desfrutar plenamente da vida. São Paulo, consciente desta realidade,

exclama: “Estou persuadido de que [nada] poderá separar-nos do amor de Deus” (Romanos

8,35-39).

- “Eis que conceberás um filho! porque nada é impossível para Deus!”. Quantas vezes

pensamos ter uma vida estéril, insignificante, vazia ou mesmo sem sentido! O Senhor diz-nos:

“Deixa-me entrar no teu coração, e prometo tornar a tua vida fecunda, fecunda como a de

Abraão!”.

3. “Onde estás?” - Eis-me aqui!

Deus visita-nos continuamente, mas estamos prontos a deixar-nos encontrar? “Onde estás?”

É a pergunta existencial que Deus continua a dirigir a cada um de nós. Não é uma pergunta de

julgamento, mas a expressão da preocupação amorosa de um Pai ou do Bom Pastor.

Muitas vezes escondemo-nos do Seu olhar por pudor. Sentimo-nos nus, indignos de

aparecer na Sua presença. No entanto, a alegria de Deus ao encontrar o filho ou a filha perdida

é tão grande que O faz esquecer o nosso afastamento.

Ganhemos coragem: saiamos dos nossos esconderijos! Vamos ao Seu encontro e

respondamos com confiança ao Seu chamado, como fez a Virgem: “Eis-me aqui!”. Ele

revestir-nos-á imediatamente com a túnica do Filho, renovando a nossa dignidade.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

sábado, 6 de dezembro de 2025

 A Voz e o Caminho - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 A Voz e o Caminho

Ano A – Advento – 2º Domingo
Mateus 3,1-12: “Voz daquele que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor!”

O evangelho do segundo domingo do Advento leva-nos ao deserto para encontrar João Batista e para escutar a mensagem particular que ele tem a transmitir da parte do Deus-que-vem. O deserto não é um lugar que nos atrai, a não ser quando o visitamos como turistas, equipados com as comodidades e seguranças necessárias. A figura de João, além disso, não parece imediatamente simpática. Ele é rude, não apenas no modo de se vestir, mas sobretudo na palavra, quase agressiva. Mas devemos encontrá-lo necessariamente no nosso itinerário de Advento. E, afinal de contas, devemos reconhecer que, embora seja um tipo excêntrico, é uma pessoa especial, tanto pelo modo de vida que leva quanto pela liberdade com que fala diante das autoridades políticas e religiosas; e isso o torna uma testemunha credível.

João, filho de um sacerdote, havia se despojado das vestes sacerdotais e deixado o templo para ir viver no deserto, conduzindo uma vida austera, no limite da sobrevivência. E “a palavra de Deus veio a João, filho de Zacarias, no deserto” (Lc 3,2). Então João começou a pregar: “Convertei-vos, porque o Reino de Deus está próximo!”. Serão estas as primeiras palavras pronunciadas também por Jesus no início de sua pregação.

Os profetas em Israel não falavam há muito tempo, e Israel tinha fome da palavra de Deus. Espalhou-se a notícia de que João era um profeta, e as pessoas afluíam a ele de todas as partes. A essencialidade da sua mensagem tocava os corações e as consciências, e todos eram batizados por ele no rio Jordão, pedindo perdão por seus pecados. O povo reconhecia nele a chegada do Mensageiro anunciado por Malaquias, o último dos profetas: “Eis que envio o meu mensageiro para preparar o caminho diante de mim” (3,1).

Cumpria-se assim a profecia de Isaías (40,3-5):

Uma voz clama:
‘No deserto preparai o caminho do Senhor,
aplanai na estepe uma estrada para o nosso Deus.
Todo vale seja elevado,
todo monte e colina sejam abaixados;
o terreno acidentado se transforme em planície
e o escarpado em vale.
Então se revelará a glória do Senhor
e todos os homens a verão juntos,
porque a boca do Senhor falou’”.

Duas palavras estão no centro da profecia: VOZ e CAMINHO. A Voz é a de João, forte e poderosa como um trovão, ardente como a de Elias, penetrante como a espada de dois gumes (Hb 4,12). Ela prenuncia a voz do Messias que, como diz a primeira leitura (Is 11,1-10), “ferirá o violento com a vara de sua boca e, com o sopro de seus lábios, matará o ímpio”. O aparecimento dessa voz já é um evangelho, uma boa notícia. De fato, todas as vozes tinham sido amordaçadas, silenciadas, instrumentalizadas, portadoras de mentiras. Ouvir que existe uma voz nova, livre, que nos diz a verdade, mesmo quando nos fere, já é uma esperança de vida.

Preparai o caminho do Senhor!”. O caminho do Senhor é aquele que conduz a Ele, mas sobretudo aquele que Deus percorre para vir até nós. É uma estrada frequentemente interrompida, que é preciso desobstruir para torná-la transitável.

O caminho é a imagem por excelência do tempo de Advento. Trata-se de um símbolo muito presente na Bíblia. Lembremo-nos de que tudo começa com a viagem de Abraão, depois dos patriarcas, de Moisés que guia o povo por quarenta anos no deserto... O próprio Jesus, com os seus, estará sempre em caminho, e os primeiros cristãos serão chamados “os do caminho”. Além disso, o caminho é imagem tanto da condição humana — o homo viator — quanto do crente, chamado a ser parte de uma “Igreja em saída”, como gostava de recordar o Papa Francisco.

O profeta Isaías (o Segundo Isaías) foi o idealizador, o engenheiro rodoviário do “caminho do Senhor”. João é o chefe de obra, o capataz. É preciso seguir as suas instruções. Munamo-nos de picareta, pá e enxada. Sim, meios simples: trata-se de um trabalho manual que exigirá tempo, constância e paciência. Seguindo o plano de Isaías, João dá-nos três orientações principais:

1“Todo VALE seja elevado”: é a primeira orientação. O evangelista Lucas fala de precipício (3,5). Trata-se do precipício do nosso DESÂNIMO, no qual corremos o risco de cair e permanecer irremediavelmente presos, depois de tantas tentativas e fracassos. É um perigo frequentemente mortal, um abismo que sepulta qualquer esperança de progresso humano e espiritual. Como preenchê-lo? Às vezes, pode tornar-se uma tarefa quase impossível. O que fazer então? A única solução é construir uma ponte! A ponte da esperança no “Deus dos impossíveis”. Eis por que Paulo, na segunda leitura (Rm 15,4-9), nos convida a “manter viva a ESPERANÇA”. Às vezes, trata-se de “esperar contra toda esperança” (Rm 4,18), porque “a esperança não decepciona”... nunca! (Rm 5,5).

2. “Todo MONTE e toda colina sejam abaixados”: trata-se do monte do nosso ORGULHO. Colina, monte, às vezes até uma montanha difícil de escalar. Enchemo-nos de soberba e nos iludimos de ser grandes. O “monte” ocupa toda a estrada, que se torna intransitável. É preciso descer das nossas “alturas” para nos tornarmos acessíveis a Deus e aos outros. Quantas “picadas” são necessárias! Quanto custa tornar-se um vale plano onde todos podem passar tranquilamente! Às vezes, é preciso um trator para remover certos obstáculos. É o trator da HUMILDADE, cantada pela Virgem Maria no seu Magnificat. Não desprezemos, porém, as pequenas picadas diárias: uma crítica, um serviço humilde, um silêncio diante de uma observação injusta, um deslize que nos mortifica... Elas nos prepararão para receber aquelas grandes “pancadas de trator” que a vida, cedo ou tarde, nos dará.

3. “O terreno ACIDENTADO se transforme em planície e o escarpado em vale”: há pedras e espinhos demais no caminho, que fazem tropeçar os viajantes e os arranham a cada passo. São os nossos DEFEITOS e PECADOS, que muitas vezes escandalizam os outros ou os ferem. Aqui também é preciso um trabalho incessante, sabendo que jamais conseguiremos completamente. Certas pontas permanecerão ali, obstinadamente irremovíveis. Certos espinhos, cortados cem vezes, brotarão sempre de novo, quase zombando da nossa persistência. Estão ali para nos lembrar que não podemos viver sem a MISERICÓRDIA do Senhor e dos irmãos — e para nos recordar que também devemos ser misericordiosos com os outros. Paulo, na segunda leitura, recorda-nos isso: “Acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo vos acolheu”.

Estas são as instruções do chefe de obra. Espera-nos um trabalho exigente. Não se trata de fazer alguns pequenos sacrifícios, considerando-nos já cristãos, à maneira dos fariseus e saduceus que se sentiam seguros apenas por serem filhos de Abraão. Também eles recebiam o batismo, mas para muitos era uma simples formalidade, um gesto de fachada. João, porém, não foi indulgente com eles. Chamou-os de “raça de víboras”. Cuidemos para que não acabe dizendo o mesmo de nós. E acrescenta: “Toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada no fogo”. A coisa é séria: não tomemos de ânimo leve esta graça do Advento.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


O pecado original. Com uma excepção? - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 O pecado original.

Com uma excepção?

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Aconteceu-me, há muitos, muitos anos — era ainda

jovem —, que, no final de uma conferência, no período das

perguntas, uma senhora me atirou: “Sempre é verdade o que

dizem: o senhor nega dogmas da Igreja!” Pedi-lhe para dar

exemplos. Ela: que tinha negado o dogma do pecado

original.

Aí, perguntei-lhe se tinha filhos. E ela: “sim, tenho duas

filhas”. Dei-lhe parabéns sinceros e desafiei-a a dizer-me se

acreditava sinceramente que as duas filhas tinham sido

geradas em pecado e que ela tinha andado nove meses de

cada vez carregando com duas filhas em pecado dentro dela.

Ela: “Eu?! Nem pense nisso! É claro que não”.

Fiquei então, mais uma vez, a saber que,

frequentemente, há na religião o que se chama dissonância

cognitiva: afirma-se uma coisa, mas realmente não se

acredita nela, porque se pensa outra coisa. Aquela senhora,

confrontada com a questão, viu claramente que não podia

acreditar que uma criaturinha inocente, concebida com

amor, tivesse sido gerada e tivesse nascido em pecado, um

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pecado de que não era autora nem culpada. Mas ao mesmo

tempo acusava de heresia quem dissesse o contrário do que

lhe ensinaram que devia dizer, sem pensar. Ora, a fé não

pode entregar-se à cegueira, abandonando a razão.

O pecado original não se encontra na Bíblia. Segundo o

exegeta Armindo Vaz, a “transgressão” mítica de Adão e

Eva “não implica um juízo de ordem ética ou moral nem

permite a sua interpretação como ‘pecado’, ‘falta’ ou

desobediência moral”. Como foi possível essa interpretação

moral, se, na lógica dos mitos de origem, a natureza humana

ainda estava em processo de criação e as acções do casal

primordial são precisamente para “complementar a criação

da sua condição humana: ‘comer da árvore do

conhecimento’ (aquisição do conhecimento), cobrir a nudez

(aquisição da civilização), sentença divina, decreto de morte

e expulsão (aquisição da condição de sofredor, mortal e

trabalhador)”?

Já o filósofo Hegel tinha interpretado a saída do

“paraíso terreal” como a passagem da animalidade à

humanidade. O pecado original foi elaborado

essencialmente por Santo Agostinho, com a finalidade de

evitar a atribuição do mal a Deus. Para ele, foi com o pecado

de Adão e Eva que veio ao mundo todo o mal, incluindo a

morte, e, com esse pecado, transmitido de geração em

geração, a humanidade toda tornou-se “massa condenada”

ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça

imerecida de Deus.

Esta concepção agostiniana teve pesadíssimas

consequências no Ocidente e no mundo. Escreveu o filósofo

cristão Paul Ricoeur: “Nunca se dirá suficientemente o mal

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que fez à cristandade a interpretação literal, melhor,

historicista, do mito adâmico, ao levá-lo à profissão de uma

história absurda e às especulações pseudorracionais sobre a

transmissão quase biológica de uma culpabilidade quase

jurídica da falta cometida por outro homem, castigado na

noite dos tempos, algures, numa fase da evolução entre o

Pitecantropo e o homem de Neanderthal.”

Santo Agostinho não hesitou em deixar cair no inferno

as crianças que morriam sem baptismo, entrando assim no

Ocidente uma concepção bárbara de Deus. Como foi

possível conceber um Deus que teria castigado a

Humanidade inteira com o calvário todo da História e o

inferno por causa de um único pecado de seres humanos

ainda no dealbar da consciência? E como poderia aceitar-se a

condenação eterna de crianças inocentes, a não ser que

recebessem o baptismo?

O limbo apareceu na Idade Média para a atenuar esta

crueldade. Assim, as crianças sem baptismo ficavam

privadas da visão de Deus, mas não eram condenadas ao

inferno. Erguia-se, porém, legítima, a pergunta: não se

trataria ainda de um castigo?, e como poderia Deus,

infinitamente poderoso e bom, estar dependente, em ordem

à salvação, de uma concha de água?

Já em 1984, o teólogo Joseph Ratzinger afirmara que o

limbo era uma mera hipótese teológica. Mais tarde, já Papa

Bento XVI, aprovou um documento de 41 páginas,

preparado pela Comissão Teológica Internacional, que

acabava com o limbo e abre as portas da salvação às crianças

que morrem sem serem baptizadas.

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A impressão geral que me ficava da religião nos tempos

da catequese não era luminosa. Pelo contrário, tudo aquilo

transmitia um mundo bastante tenebroso, a ideia de um

Deus castigador e de nós sujeitos a um destino de submissão

trágica. Os primeiros pais tinham pecado, Deus andava

irado com a gente e Jesus sofria na cruz para ver se nos

libertava. A alegria era um roubo e a palavra Evangelho, que

quer dizer “notícia boa”, não pousava sobre nós.

O que infectava o cristianismo era precisamente a

doutrina infausta do pecado original. Escreveu o célebre

historiador católico Jean Delumeau, que ainda tive o

privilégio de conhecer pessoalmente: “Não é exagerado

afirmar que o debate sobre o pecado original, com os seus

subprodutos – problemas da graça, do servo ou livre

arbítrio, da predestinação --, se converteu (no período

central do nosso estudo, isto é, do século XV ao século XVII)

numa das principais preocupações da civilização ocidental,

acabando por afectar toda a gente, desde os teólogos aos

mais modestos aldeões. Chegou a afectar inclusivamente os

índios americanos, que eram baptizados à pressa para que,

ao morrerem, não se encontrassem com os seus

antepassados no inferno. É muito difícil, hoje, compreender

o lugar tão importante que o pecado original ocupou nos

espíritos e em todos os níveis sociais. É um facto que o

pecado original e as suas consequências ocuparam nos

inícios da modernidade europeia o centro da cena mundial,

sem dúvida muito atribulado.”

No entanto, repito, a doutrina do pecado original, no

sentido estrito de um pecado transmitido e herdado, não se

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encontra na Bíblia. Jesus nunca se referiu a um pecado

original.

Sim, na sua base, encontra-se fundamentalmente Santo

Agostinho, a partir de um passo célebre da Carta de São

Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12. Mas ele, que

não sabia grego, seguiu a tradução latina: Adão, “no qual”

todos pecaram, quando o original grego diz: “porque” todos

pecaram. Ora, uma coisa é dizer que todos são pecadores e

outra afirmar que todos pecaram em Adão, como a árvore

fica infectada na raiz, de tal modo que todos nascem em

pecado do qual só o baptismo os pode libertar. Santo

Agostinho, como já ficou dito, deixava cair no inferno,

mesmo que menos terrível, as crianças sem baptismo.

Durante séculos, houve mães dramaticamente abaladas,

porque os filhos morreram sem baptismo — eu ainda

conheci algumas, que procurei vivamente consolar.

A Santo Agostinho serviu esta doutrina sobretudo para,

convertido do maniqueísmo ao cristianismo, “explicar” o

mal no mundo, que não podia vir do Deus criador bom.

De facto, baseou-se numa exegese errada. E quem não

sabe hoje que o que diz respeito a Adão e Eva e à queda é da

ordem do mito? Adão e Eva não são personagens históricas.

Depois, se eles ainda não sabiam, como diz o texto do

Génesis, do bem e do mal, como podiam pecar? O que o texto

diz é outra coisa, e fundamental: o que caracteriza o ser

humano frente ao animal é a liberdade. O ser humano já não

é um animal como os outros: tem auto-consciência, sabe de

si como único – a nudez metafísica – e que é mortal...

Mas os estragos desta doutrina infausta foram e são

incalculáveis, sobretudo a partir do acrescento de Santo

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Anselmo e a sua doutrina da retribuição: os primeiros pais

cometeram uma ofensa infinita contra Deus e, assim, era

necessária uma reparação infinita para uma dívida infinita

que só o Deus-homem Jesus podia pagar na cruz.

Ficou então a ideia de um Deus por vezes monstruoso,

sádico — em relação a esse Deus deve-se ser ateu —, que

precisou da morte do Filho, inocente, para reconciliar-se com

a Humanidade. Mas como era isso compatível com o Deus

amor? Porque o pecado se transmitia pelo prazer do acto

sexual, a sexualidade, o corpo e a mulher ficaram

envenenados, numa situação dramática, se não trágica: era

preciso continuar a gerar filhos — no limite, a actividade

sexual só se legitimava para a procriação —, mas eles eram

gerados em pecado e a mulher trazia o pecado dentro dela.

Só houve uma excepção: Maria foi concebida sem pecado,

excepção que dá lugar à festa da Imaculada Conceição, no

dia 8 de Dezembro, com feriado nacional em Portugal.

Esquece-se então que Nossa Senhora não é grande porque

foi isenta do pecado original, que não há, é grande porque é

a primeira cristã, aquela que acreditou no seu filho Jesus e

no seu Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai-

Mãe, que só quer a alegria, a felicidade e a plena realização

de todos os seus filhos e filhas, que devem viver segundo

essa dignidade, na fraternidade, na liberdade e no amor...,

Jesus, inocente, não se acobardou e foi condenado à morte,

foi crucificado, para dar testemunho da Verdade e do Amor,

mas Deus não o abandonou: está vivo na plenitude da Vida,

a Vida eterna...

Porque é que o primeiro acto humano da História havia

de ser o pecado, pecado original? Hoje, com a evolução, a

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contradição torna-se ainda maior: quem foram os “primeiros

pais”, com tanta consciência, liberdade e poder de

determinação da História? O único sentido do chamado

pecado original só pode ser o de estar precavidos: todos são

gerados e nascem sem pecado, mas num mundo e para um

mundo onde já há pecado — pense-se nos horrores das

guerras e da fome, na violência doméstica e nos abusos de

toda a ordem, na estupidez, na imensa estupidez, na

brutalidade da mentira e do ódio, num mundo que por

vezes parece desmoronar-se... — e, por isso, precisamos de

estar precavidos, pois podemos ser contaminados, como um

não fumador que entra numa sala de fumadores tem de

acautelar-se, já que pode ser contaminado pelo fumo...

De qualquer modo, o que São Paulo diz no passo célebre

da Carta aos Romanos é uma mensagem de esperança: todos

os seres humanos pecam, o pecado do ser humano é grande,

mas o amor de Deus é maior. Infinito.

Sábado, 6 de Dezembro de 2025

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

O Homem e o Tempo - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 O Homem e o Tempo

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Porque estamos no Advento, que deveria

preparar para o Natal, fica aí uma breve reflexão

sobre o ser humano e o tempo. De facto, seria

tremendamente lamentável que este tempo se

reduza a compras compulsivas numa sociedade

de consumo materialista e, no limite, niilista e,

tanto quanto se pode observar, por isso mesmo,

profundamente infeliz e sem sentido.

Característica essencial do ser humano é que

conjugamos os verbos no passado, no presente e

no futuro.

Há quem julgue que a salvação está no

passado. Há sempre os saudosistas do passado:

antigamente é que era bom. É a saudade do

Paraíso perdido... Também há aqueles que não

querem preocupar-se nem com o passado nem

com o futuro. O que há é o aqui e agora, o

2

presente a que se segue outro presente. A

salvação consiste no amor e fruição do

presente... Depois, há os sonhadores e os

ascetas. Fogem do agora, para refugiar-se no

amanhã. Nunca estão no presente, pois a sua

morada é só o futuro...

Ora, pensando bem, se, por um lado, não

podemos instalar-nos no passado, por outro,

nenhum ser humano pode abandonar o passado,

como se fosse sempre e só o ultrapassado. De

facto, quando demos por nós, já lá estávamos, o

que significa que vimos de um passado que nem

sequer dominamos. E temos de aprender com o

passado, nosso e dos outros, para, a partir dele,

nos decidirmos no presente.

Sim, é sempre no presente que vivemos, mas

também não é possível a simples instalação no

presente, pois só podemos viver no presente

projectando-nos constantemente no futuro. Na

bela expressão de Helena Buescu, “somos

herdeiros e futurantes”. O ser humano está

estruturalmente voltado para o futuro, já que é

constitutivamente um ser esperante.

Aqui, é necessário perguntar-se: não é a

esperança filha da infelicidade e do temor? É

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célebre a afirmação de Espinosa: "Não há

esperança sem temor, nem temor sem

esperança". O que é que isto quer dizer?

Vivemos voltados para o futuro, pois somos

projecto: agimos e somos, antecipando sempre.

Sem esta antecipação, não poderíamos agir

humanamente. Mas, por outro lado, não se pode

esquecer que realmente a esperança também

significa que, se desejamos, é porque não temos,

e isso implica que se não é feliz. E, depois,

quando temos, há sempre o temor de perder o

que temos, o que nos coloca em permanente

inquietação...

Viver humanamente não pode, portanto,

significar viver exclusivamente do futuro e para

o futuro, pois viver unicamente da esperança é

nunca viver, já que verdadeiramente só se vive

no presente. Viver unicamente da esperança

seria adiar constantemente a vida, no sentido do

viver. Aliás, colocar permanentemente o

presente ao serviço do futuro, vê-lo

exclusivamente em função do futuro, é abrir as

portas ao perigo da tirania: quantos homens e

mulheres não foram de facto vítimas do sonho

dos "amanhãs que cantam"?!...

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É isso: querer viver exclusivamente do

presente e para o presente não é humano, pois

isso significaria viver na imediatidade animal,

sem horizonte de futuro e transcendência. Mas,

por outro lado, quem quisesse viver

exclusivamente do futuro e para o futuro nunca

poderia afastar a dúvida de estar apenas a lidar

com as suas ilusões. Assim, a arte de viver

humanamente consiste em, a partir do passado,

viver com tal intensidade e dignidade o presente

que se torna legítimo esperar a vida plena

futura...

Nestes tempos de niilismo, com “sub-produção

de transcendência”, como se queixava Ernst

Bloch, o filósofo ateu-religioso da esperança,

temos de voltar ao Advento a caminho do Natal.

Advento é uma palavra que vem do latim e

quer dizer vinda, chegada: em sentido religioso,

é a chegada, a vinda de Deus: Ele veio e

mostrou-se em Jesus, Ele vem, Ele virá.

Herdeiros e sempre futurantes, face ao fim, só

resta uma alternativa, que já aqui por vezes

sublinhei:

Claude Lévi-Strauss conclui assim o

seu “L’homme nu”: "Ao Homem incumbe viver

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e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a

coragem, sem que nunca o abandone a certeza

adversa de que outrora não estava presente e que

não estará sempre presente sobre a Terra e que,

com o seu desaparecimento inelutável da

superfície de um planeta também ele votado à

morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as

suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras

se tornarão como se não tivessem existido, não

havendo já nenhuma consciência para preservar

ao menos a lembrança desses movimentos

efémeros, excepto, através de alguns traços

rapidamente apagados de um mundo de rosto

impassível, a constatação anulada de que

existiram, isto é, nada."

A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que

quer dizer revelação, conclui assim: “Vi então

um novo céu e uma nova terra.” “E vi descer do

céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova

Jerusalém”. E ouvi uma voz potente que vinha

do trono: “Esta é a morada de Deus entre os

homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu

povo e o próprio Deus estará com eles e será o

seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos

seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto,

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nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas

passaram."

Sábado, 29 de Novembro de 2025

Perante o horror, inevitável a pergunta: Onde está Deus? - Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Perante o horror,

inevitável a pergunta: Onde está Deus?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

Actualmente, porque, com a televisão e outros

meios, temos acesso às imagens, talvez seja

sobretudo perante os horrores das guerras que se

pode ficar estarrecido perante o silêncio de Deus.

São bombardeamentos que não deixam pedra

sobre pedra, que matam indiscriminadamente

homens, mulheres, crianças, e ficamos esmagados

sobretudo pela dor, o clamor, as lágrimas, a

desorientação das crianças inocentes. Onde está

Deus?

Joseph Ratzinger, chamado aos 17 anos

para o serviço militar do Reich, foi desertor e

prisioneiro dos americanos. Já Papa Bento

2

XVI, como já aqui escrevi, esteve em

Auschwitz e fez um discurso dramático e

deveras emocionante: "Tomar a palavra

neste lugar de horror, de crimes contra Deus

e contra o ser humano sem precedentes na

História, é quase impossível, e é

particularmente difícil e deprimente para

um cristão, para um Papa que procede da

Alemanha. Num lugar como este faltam as

palavras; no fundo, só há espaço para um

atónito silêncio, um silêncio que é um grito

interior para Deus: Porque te calaste?

Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde

estava Deus nesses dias? Porque se calou?”

Perante o horror do mundo e todos os

mortos e todas as vítimas — ah!, as vítimas

inocentes — e o aparente silêncio de Deus,

percebemos a tentação do ateísmo. E até

poderá tratar-se de um ateísmo moral, um

ateísmo ad majorem Dei gloriam, para a

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maior glória de Deus, como se, perante o

horror, a justificação de Deus fosse não

existir. É-se ateu por causa de Deus, que é

preciso recusar por causa da moral: um

mundo com tanta dor, tantas injustiças,

tanto sofrimento de inocentes, tanto

cinismo brutal do poder, como pode ser

criação de um Deus bom? Mas a quem recusa

Deus assalta-o outra pergunta: se Deus não

existe, donde vem o bem e a nossa revolta,

desde a raiz de nós, contra o mal e a morte,

clamando por justiça e salvação para as

vítimas inocentes? Porque, sem Deus,

afundamo-nos no nada e anula-se, em

última análise, a própria diferença entre

bem e mal. Por isso, segundo Jürgen

Habermas, para mim o maior filósofo vivo,

agnóstico, o que mais nos inquieta é “a

irreversibilidade dos sofrimentos do

passado — a injustiça contra as pessoas

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inocentes vítimas de maus tratos,

aviltamento e assassinato — sem que o

poder humano possa repará-los”,

acrescentando: “A esperança perdida da

ressurreição” sente-se como um grande

vazio.”

Há uma pergunta decisiva (para Max

Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt,

a que Habermas também está ligado, é

mesmo “a pergunta fundamental da

Filosofia”): o que podem esperar as

incontáveis vítimas inocentes da História?

Quem lhes fará justiça? As vítimas inocentes

clamam, e um grito sem fim, ensurdecedor,

percorre a História. Há uma dívida

incontável para com essas vítimas. Quem a

pagará?

Max Horkheimer e Theodor Adorno,

principais representantes da Escola Crítica,

com quem Bento XVI entrou em diálogo na

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sua encíclica sobre a esperança, “Salvos em

Esperança”, viveram filosoficamente a

inconsolável “tristeza metafísica” da

impossibilidade de fazer justiça às vítimas

da História. De facto, mesmo supondo, no

quadro do marxismo e da ideia do progresso

moderno, que algum dia fosse possível a

edificação de uma sociedade finalmente

justa, transparente e reconciliada, ela não

poderia ser feliz. A razão é simples: ou essa

sociedade se lembrava de todas as vítimas

do passado, que não participam dela, e então

seria atravessada pela infelicidade, ou não se

interessava por essas vítimas, e então não

era humana, porque não solidária.

Adorno e Horkheimer exprimiram uma

filosofia em tenaz: por um lado, não podiam

acreditar num Deus justo e bom; por outro,

há uma verdade da religião, apesar de todas

as suas traições no conluio com o poder e os

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vencedores: a religião “no bom sentido” é,

segundo Horkheimer “o anelo inesgotável,

sustentado contra a realidade fáctica, de que

esta mude, que acabe o desterro e chegue a

justiça”. Não se trata de um desejo egoísta,

mas da esperança contrafáctica de que a

realidade dominante da injustiça não tenha

a última palavra. Daí, “o anelo do

totalmente Outro”, o “anelo da justiça

universal cumprida”, “a esperança de que a

injustiça que atravessa a História não

permaneça, não tenha a última palavra.”

Esta esperança tem de traduzir-se numa

práxis solidária tal que, como disse de modo

incisivo Kant, “a práxis tem de ser tal que

não se possa pensar que não existe um

Além.” Nesta práxis, está implicado o

pensamento do Absoluto, como exigência

moral e como anelo de que o finito e o

mundo da injustiça não sejam a ultimidade e

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o definitivo. Também neste sentido, Adorno

escreveu que “o pensamento que não se

decapita desemboca na Transcendência”.

Neste domínio, a única filosofia legítima

seria “o intento de contemplar todas as

coisas como aparecem à luz da redenção”. A

pergunta pela esperança truncada das

vítimas, que acusam o mundo da história

dos vencedores, obriga a pensar para lá dos

limites da imanência, colocando a pergunta

pelo Absoluto enquanto pergunta pela

justiça universal.

No seu diálogo com a Escola Crítica de

Frankfurt, Bento XVI reconheceu que a

necessidade individual da realização plena e

da imortalidade do amor já é “um motivo

importante para crer que o ser humano está

feito para a eternidade”, “mas só o

reconhecimento de que a injustiça da

História não pode de modo nenhum ter a

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última palavras” convence da necessidade

da ressurreição dor mortos e da vida eterna.

Sábado, 22 de Novembro de 2025

domingo, 30 de novembro de 2025

A SEMANA VERMELHA E A ESPERANÇA DE FUTURO Frei Bento Domingues, O.P. 30 Novembro 2025

 

A SEMANA VERMELHA E A ESPERANÇA DE FUTURO

Frei Bento Domingues, O.P.

30 Novembro 2025

 

1. O Papa Leão XIV foi à Turquia e ao Líbano de 27/11 a 02 de Dezembro, em viagem ecuménica por ocasião do 1 700º aniversário do Concílio de Niceia. Foi um concílio verdadeiramente ecuménico, embora tenha sido convocado pelo Imperador Constantino, em 325, e cujas consequências não foram todas boas.

Isto não significa um ecumenismo de retorno ao estado anterior às divisões, nem um reconhecimento mútuo do actual status quo da diversidade das Igrejas e das Comunidades eclesiais, mas um ecumenismo voltado para o futuro, de reconciliação no caminho do diálogo, de troca dos nossos dons e patrimónios espirituais.

É este o espírito com que Leão XIV realiza esta viagem, publicando uma Carta Apostólica – In Unitate Fidei (Na Unidade da Fé) dirigida a toda a Igreja.

Como afirma nessa Carta, «para podermos desempenhar este ministério de forma credível, devemos caminhar juntos para alcançar a unidade e a reconciliação entre todos os cristãos. O Credo de Nicéia pode ser a base e o critério de referência deste caminho. Propõe-nos efetivamente um modelo de verdadeira unidade na legítima diversidade. Unidade na Trindade, Trindade na Unidade, porque a unidade sem multiplicidade é tirania, a multiplicidade sem unidade é desintegração.

A dinâmica trinitária não é dualista, como um aut–aut excludente[i]mas sim um vínculo envolvente, um et–et: o Espírito Santo é o vínculo de unidade que adoramos juntamente com o Pai e o Filho. Devemos, portanto, deixar para trás as controvérsias teológicas, que perderam a sua razão de ser, para adquirir um pensamento comum e, mais ainda, uma oração comum ao Espírito Santo, para que nos reúna a todos numa única fé e num único amor».

2. A situação actual exige espírito e práticas ecuménicas que tendem ao respeito mútuo e à colaboração com todos. O grande trabalho das Igrejas cristãs consiste no reconhecimento da liberdade religiosa, na promoção dos Direitos Humanos.

A semana que passou, designada Semana Vermelha (16-23) foi uma iniciativa da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) para alertar sobre a perseguição aos cristãos. A iniciativa consistiu em iluminar de vermelho edifícios e monumentos em todo o mundo para combater a indiferença sobre esta situação.

De facto, a perseguição aos cristãos é um problema histórico e contemporâneo, com várias manifestações, principalmente na África e Ásia.

Relatórios recentes indicam um aumento significativo no número de cristãos perseguidos, que sofrem com assassinatos, prisões, sequestros e ataques a igrejas, embora não ignoremos o passado violento entre religiões. O desenvolvimento do espírito e da prática do movimento ecuménico tornou-se a única atitude reconhecida pela Igreja.

O Papa Leão XIV (16/11) não nos deixa esquecer a situação actual dos cristãos que sofrem discriminações e perseguições em várias partes do mundo. Penso em particular, disse ele, em Bangladesh, Nigéria, Moçambique, Sudão e outros países, dos quais chegam frequentemente notícias de ataques a comunidades e locais de culto. Isto obriga a que se faça dos Direitos Humanos e da liberdade religiosa o grande objectivo da fraternidade universalidade, Fratelli Tutti. Não bastam afirmações de circunstância, como se uns dias fossem para a fraternidade e outros para a indiferença.

Que podemos nós fazer? Desde a catequese de crianças e adultos, movimentos de jovens, associações de cristãos devem ser ajudados a pensar e a agir de forma ecuménica. A grande tentação é ignorar e desprezar a diferença. A importância da Semana Vermelha foi a de chamar a atenção para os mundos da violência, como sendo expressões longínquas que nada teriam a ver connosco e nós com elas. O grande movimento a suscitar é o de vencer a indiferença. É talvez o maior inimigo dos movimentos de PAZ.

3. O Cristianismo é, por essência, uma janela aberta para o futuro universal, de crentes e não crentes[ii]. Nunca os cristãos se podem contentar com o presente. O grande presente é o futuro aberto. O advento é a forma de não deixar os cristãos esquecidos do que falta viver e fazer. É o momento da esperança. Não temos direito a pensar e dizer: não há remédio, não há nada a fazer, está tudo perdido! Cristo é quem nos precede sempre.

Pensemos e meditemos na visão de Isaías, o grande profeta do Advento, que hoje a liturgia nos propõe: «No fim dos tempos, o monte do templo do Senhor estará firme, será o mais alto de todos e dominará sobre as colinas. Acorrerão a ele todas as gentes, virão muitos povos e dirão: Vinde, subamos à montanha do Senhor, à casa do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas.

Julgará as nações e dará as suas leis a muitos povos, os quais transformarão as suas espadas em relhas de arados e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra e não se adestrarão mais para a guerra. Vinde, Casa de Jacob! Caminhemos à luz do Senhor[iii].

Devemos fazer deste texto, não só um sonho, mas uma inquietação pelo futuro. O Advento é também o tempo da decisão radical. Os presépios são o símbolo desse cristianismo. Nunca se pode esquecer o gesto do burguês Francisco de Assis, que se despiu de todos os negócios, de toda a riqueza e se tornou o Irmão universal.

O que, nesta viagem, o Papa aponta não é apenas diálogo inter-religioso, mas a reconciliação de todos os mundos. Ele foi em nome da paz e da fraternidade.

Apesar de todas as dificuldades, não temos direito a perder a esperança. Recorremos, mais uma vez e não será a última, à inspiração do profeta Isaías: «Brotará um rebento do tronco de Jessé, e um renovo brotará das suas raízes. Sobre ele repousará o espírito do Senhor: espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de ciência e de temor do Senhor. Não julgará pelas aparências nem proferirá sentenças somente pelo que ouvir dizer; mas julgará os pobres com justiça e com equidade os humildes da terra. A justiça será o cinto dos seus rins e a lealdade circundará os seus flancos. Então, o lobo habitará com o cordeiro e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Não haverá dano nem destruição em todo o meu santo monte, porque a terra está cheia de conhecimento do Senhor, tal como as águas que cobrem a vastidão do mar[iv].

a poesia, como transfiguração da linguagem, anuncia a mudança que nos falta fazer, o desafio ao qual não podemos fugir.

Acolher o advento de Cristo na nossa vida é o coração da fé cristã que nos oferece a esperança, nos tempos difíceis que vivemos.



[i] Aut–aut é uma expressão latina que significa "ou-ou" e é frequentemente usada para se referir a uma escolha entre duas opções exclusivas.

[ii] Mt 8, 5-13

[iii] Is 2, 1-5

[iv] Cf. Is 11, 1-9