sábado, 9 de agosto de 2025

 À espera de Deus na noite - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 À espera de Deus na noite

Ano C – Tempo Comum – 19.º Domingo
Lucas 12,32-48: “Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração!”

Nestes domingos estamos a ler o capítulo XII de São Lucas, um entrelaçado de ditos, ensinamentos e breves parábolas, sem uma clara unidade entre si. A alguns de nós que o ouvirem em tempo de férias poderá parecer um Evangelho fora de tempo e fora de lugar. Enquanto procuramos um pouco de descanso e distração, para esquecer as preocupações da vida, esta Palavra surpreende-nos, propondo-nos temas demasiado sérios e incómodos. Talvez por isso o Senhor nos diga, antes de mais: “Não temas, pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos o Reino”.

Vigiando na noite

A passagem deste domingo tem uma tonalidade de espera apocalíptica, apresentando a vida cristã como a espera do regresso do Senhor na “noite”. Três vezes é repetido o convite a estar preparado: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as lâmpadas”“Estejam preparados, porque, na hora em que não imaginam, vem o Filho do Homem”. O convite de Jesus a vigiar para não ser surpreendido impreparado à sua chegada é ilustrado por três breves comparações: a espera do senhor que partiu para um banquete de casamento, o ladrão e o administrador da casa.

A noite que se alterna com o dia é uma metáfora forte da vida. Quantas vezes nos parece que estamos na escuridão, sem saber para onde ir, assoberbados pelos problemas, com ameaças que pairam sobre a nossa vida… Ou a viver tempos obscurecidos pela guerra e pela injustiça, pela incerteza quanto ao futuro… A Palavra deste domingo ajuda-nos a compreender e a viver nesta “noite”.

A noite do Êxodo

A primeira leitura (Sabedoria 18,6-9) apresenta esta noite como a noite do Êxodo, quando todo o povo em espera “estabeleceu, de comum acordo, esta lei divina: partilhar, da mesma forma, sucessos e perigos”.

A vida cristã é um êxodo, um caminho de libertação, muitas vezes marcado por tentações, pela incerteza nas escolhas feitas, pela nostalgia do passado… Torna-se, muitas vezes, uma longa noite. Tínhamos imaginado uma travessia mais rápida e menos cansativa, e que estaríamos depressa instalados na Terra Prometida. Chegados ao Sinai, Deus disse-nos: “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egipto e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a mim” (Ex 19,4). Pensávamos, portanto, que o pior já tinha passado. Mas o Senhor entendeu que ainda não estávamos prontos para entrar e que eram precisos “quarenta anos” de deserto para libertar o nosso coração das sobreestruturas mentais e dos hábitos que nos mantinham no “Egipto”, na “casa da escravidão”. Aí ainda estavam os nossos tesouros. E, “onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”.

Eis porque a noite do nosso êxodo será ainda longa. Gritaremos também nós à sentinela do profeta Isaías: “Sentinela, quanto falta para acabar a noite?” E a sentinela responder-nos-á, algo enigmática: “Vem a manhã, mas também a noite; se quereis perguntar, perguntai; convertei-vos, vinde!” (Is 21,11-12). Cabe a cada um de nós escutar e interpretar esta Voz!

A noite da fé

A segunda leitura (Hebreus 11,1-19) apresenta a noite do crente como a noite da fé: “Na fé morreram todos estes, sem terem obtido os bens prometidos, mas vendo-os e saudando-os de longe, declarando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra”.

A definição de fé que encontramos no início da leitura é surpreendente: “A fé é o fundamento do que se espera e a prova do que não se vê”. Por isso, a noite é o âmbito da fé. Mesmo sendo filhos da luz, “caminhamos na fé e não na visão”(2Cor 5,7). É preciso aceitar e atravessar a noite da fé para aprender a “esperar contra toda a esperança” (Rm 4,18).

A fé, para quem acredita, é uma escolha radical de vida. Significa confiar numa promessa de Deus, como Abraão. Há, de facto, duas maneiras de planear a vida: segundo um projeto pessoal ou segundo uma vocação orientada por uma promessa de Deus. Projeto provém do latim proiectum (pro-icere, lançar algo para a frente), enquanto promessa provém de promissa (pro-mittere, enviar para a frente). O projeto planeio-o eu; a promessa é feita por Deus. O que está a orientar a minha vida: um projeto meu ou uma promessa de Deus?

A noite da vigília no serviço

Na passagem do Evangelho, Jesus fala três vezes de bem-aventurança: “Felizes os servos a quem o senhor, ao chegar, encontrar vigilantes”“E se, chegando à meia-noite ou antes do amanhecer, os encontrar assim, felizes serão!”“Feliz aquele servo a quem o senhor, ao chegar, encontrar a agir assim”.

No Evangelho de Lucas, o uso das palavras “feliz” e “felizes” (do grego μακάριος – makários, isto é, “feliz”, “abençoado”, “afortunado”) aparece em vários contextos. Jesus veio revelar-nos o caminho da felicidade. É o caminho que conduz ao Reino, a meta de todo o homem. Trata-se de um caminho que permanece ainda hoje escondido e misterioso para muitos, crentes e não crentes. Apresenta-se de tal forma contra-intuitivo que chega a parecer uma farsa. Mas tornou-se credível porque Jesus e outros que ousaram confiar nele o encarnaram. O Evangelho recolheu o traçado e tornou-se o guia para as mulheres e homens do Caminho, como os Atos dos Apóstolos definem os cristãos.

O Caminho é único: é Cristo, mas podemos falar de trilhos diferentes? Talvez sim. Alguns parecem-nos mais árduos do que outros. Certos, não nos sentimos capazes de os percorrer. Pensamos na santidade de certos cristãos ou na “santidade” laica de certas pessoas que se dedicam heroicamente a aliviar o sofrimento. Inalcançáveis. Pois bem, o trilho que Jesus nos propõe hoje parece-me acessível a todos. Certamente, é sempre para percorrer na noite do êxodo e da fé, mas, ainda assim, ao alcance dos pequenos, dos servos. Não temos de fazer coisas extraordinárias, mas simplesmente permanecer despertos e fazer aquilo que é o nosso dever: servir! Um serviço humilde, escondido, talvez até banal, que não será publicitado nas redes sociais nem procurará likes, mas que é dado como adquirido: “Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10). Não vos parece esta uma versão do “pequeno caminho” do “caminho do amor simples e confiante”, ao alcance de todos, traçado por Santa Teresa do Menino Jesus?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

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