Crónicas PÁRA E PENSA
O humor, o riso e Deus
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Porque nos tribunais portugueses decorre
um processo por causa de um vídeo
humorístico, ouso voltar ao tema em
epígrafe, mesmo correndo o risco de aqui e
ali me repetir.
Sobre Deus que sabemos nós? Ele é
infinito e está para lá de tudo o que possamos
pensar ou dizer. O que sabemos dEle
sabemo-lo sobretudo através de Jesus, a sua
imagem no mundo.
Através de Jesus, sabemos que Deus é,
como se lê na Primeira Carta de São João,
Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho
segundo São João também diz que Deus é
Logos: Razão, Inteligência e que tudo foi
criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido
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de humor, pois o humor é sinal de
inteligência. Não é o humor fino revelador de
uma inteligência fina? Mas o que estamos a
dizer, quando dizemos isto acerca de Deus?
Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis,
há uma passo belíssimo em conexão com o
riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando
ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob
a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua
mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda.
Um deles disse: Passarei novamente pela tua
casa dentro de um ano, nesta mesma época,
e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora,
Sara estava a escutar à entrada da tenda.
Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não
estava em idade de ter filhos. Sara riu-se
consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou,
poderei ainda ter esta alegria, sendo também
velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o
Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e
realizou nela o que lhe prometera. Sara
concebeu e, na data marcada por Deus, deu
um filho a Abraão, quando este era já velho.
Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o
nome de Isaac. Abraão tinha cem anos
quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse:
Deus concedeu-me uma alegria, e todos
quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”
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Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para
dentro: como é possível, velha, ter um filho?
Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em
hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso
um riso intenso de alegria: Isaac também
quer dizer “aquele que traz alegria”.
De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou:
chorou pela morte do seu amigo Lázaro,
também sobre Jerusalém. Não se diz que riu.
Mas já Santo Tomás de Aquino observou que
é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é
homem e rir é característica essencial do ser
humano. Jesus participou em festas de
casamento e alguém imagina uma festa de
casamento sem risos, sem piadas festivas? O
Evangelho testemunha que Jesus
experienciou o melhor sentimento face à vida
e ao seu milagre: o do maravilhamento e do
contentamento.
O humor e o riso, repito, são um sinal
evidente de inteligência, desdramatizam a
vida, permitem viver de modo sadio consigo
próprio, fazem bem à saúde, abrem
transcendências. A Igreja está, ou deveria
estar, atravessada pelo bom humor, porque
“um santo triste é um triste santo”. E há
piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo
castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se
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os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso.
Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica
mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura!
O que não se pode é cair na boçalidade, pois
esta apenas significa falta de inteligência. O
riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no
mais alto trono do mundo, está-se sentado
sobre o cu”, escreveu Montaigne. Umberto
Eco, o inesquecível autor de O nome da rosa,
esse desabafou: “Aprendi que o riso é a única
forma de lidar com a absurdidade da
existência”.
Na Idade Média, realizava-se a chamada
Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder
eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o
grau mais baixo da hierarquia, era vestido de
bispo, colocado em cima de um burro,
entrava na igreja com a face voltada para a
cauda, de costas para o altar. Em momentos
fundamentais da liturgia, o celebrante e o
povo zurravam. Na transmissão simbólica do
báculo episcopal, rezava-se o Magnificat
naquele passo: “e Deus derrubou os
poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a
pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de
Paris, justificou-a com a necessidade de dar
expansão à crítica, voltando depois a ordem.
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A propósito da força crítica da piada e da
caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e
todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho
de Jesus, no fausto de uma procissão com
cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores...
Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e,
estarrecido, chamou Jesus, que olhou e
apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro,
que começámos aquilo, entrando eu de burro
em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-
te?” Por isso, respondi uma vez a uma
jornalista: “Não. Jesus não entraria no
Vaticano, porque não o deixariam entrar.”
Francisco socorria-se também do bom
humor, e todos os dias rezava a Oração do
bom humor, oração atribuída a São Tomás
Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que
não se esqueceu de levar a gorjeta para o
carrasco que ia decapitá-lo. Francisco
recomendou-a também aos membros da
Cúria Romana, onde tinha tantos adversários
e até inimigos, a quem falta o bom humor
divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e
também algo para digerir./ Dá-me um corpo
saudável e o bom humor necessário para
mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe
valorizar tudo o que é bom/ e que não se
amedronta facilmente diante do mal, /mas,
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pelo contrário, encontra os meios para voltar
a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-
me, Senhor, uma alma/ que não conhece o
tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as
lamentações,/ nem os excessos de stress por
causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me,
Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-
me a graça de ser capaz de uma boa piada,
uma boa piada para descobrir na vida um
pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os
outros./ Ámen.”
Em Junho de 2024, Francisco fez questão
de encontrar-se com mais de 100 humoristas
de todo o mundo, incluindo os portugueses
Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e
Maria Rueff, afirmando que é “importante
fazer rir os outros, pois isso pode ajudar as
pessoas...” “É possível rir também de Deus? É
claro que sim, isto não é blasfémia, assim
como brincamos e fazemos piadas com as
pessoas que amamos. A tradição sapiencial e
literária hebraica é mestra nisso. Pode ser
feito, mas sem ofender os sentimentos
religiosos dos fiéis, especialmente dos
pobres.” Pessoalmente, acrescento: afinal,
não é de Deus que rimos, mas das nossas
imagens de Deus, tantas vezes ridículas (a
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palavra ridículo vem do latim ridere (rir) e
quer dizer precisamente o que provoca riso).
Fiquei encantado, quando li Francisco a
dizer que, no caso de alguém se sentir numa
situação de algum abatimento, fizesse como
ele: caretas frente ao espelho... Estou
convicto de que isso lhe aconteceu várias
vezes, para poder superar tantos dissabores
por causa dos seus adversários e até inimigos
no Vaticano e não só, como ficou dito...
Sábado, 26 de Julho de 2025
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