domingo, 5 de outubro de 2025

A COMPAIXÃO DO SAMARITANO Frei Bento Domingues, O.P. 05 Outubro 2025

 

A COMPAIXÃO DO SAMARITANO

Frei Bento Domingues, O.P.

05 Outubro 2025

 

No dia 26 de Setembro, o Vaticano anunciou o tema para o Dia do Doente (11.02.2026), escolhido pelo Papa Leão XIV – A compaixão do samaritano: amar carregando a dor do outro.

Esta data parece muito longínqua e a situação de quem sofre não pode esperar pelo classificado Dia do Doente. O imenso mundo dos que sofrem é hoje que pede socorro. O Dia Mundial do Doente é, apenas, o símbolo que nos diz que devemos cuidar dos doentes todos os dias.

Esta antecipação deve servir para despertar, desde já, todas as religiões, todas as pessoas, a sociedade em geral e os decisores políticos, sobre esse mundo que sofre.

Aqui, vou apenas fazer uma selecção de textos bíblicos que gritam a questão central da compaixão, da misericórdia.

2. A Bíblia, desde o começo, lançou a pergunta essencial muito esquecida que, ainda hoje, pede uma prática fraterna: Que fizeste do teu irmão?[1]

O profeta Miqueias deu-nos o mais incisivo texto do que é fundamental na religião e o que são as suas traições. Não o podemos esquecer: «Com que me apresentarei ao Senhor e me inclinarei diante do Deus Altíssimo? Porventura me apresentarei com holocaustos ou com novilhos de um ano? Terá o Senhor prazer nos milhares de carneiros ou nas libações de torrentes de azeite? Hei-de sacrificar-lhe o meu primogénito pelo meu crime, o fruto das minhas entranhas pelo meu próprio pecado? Já te foi revelado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com o teu Deus[2]

3. No Novo Testamento, é o próprio Jesus que é interrogado por um doutor da Lei: Mestre, que hei-de fazer para possuir a vida eterna? Resposta de Jesus: Que está escrito na Lei? Como lês? Ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimentoe ao teu próximo como a ti mesmo.

Jesus observou: respondeste corretamente. Faz isso e viverás. Mas ele, querendo justificar a sua pergunta, insistiu: E quem é o meu próximo? Esta pergunta serviu a Jesus para elaborar uma parábola que atravessou os séculos e devia manter todo o seu vigor na actualidade, acerca do que é a verdadeira e a falsa religião.

É uma parábola, na qual, está incluído um conflito entre religião e prática social. Eis a parábola: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários, deu-os ao estalajadeiro, dizendo: Trata bem dele e, o que gastares a mais, pagar-te-ei quando voltar.

Nesta parábola, chegou o momento de Jesus passar a interrogar o doutor da Lei com uma pergunta muito simples:  Qual destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores? Resposta acertadíssima: O que usou de misericórdia para com ele. Jesus retorquiu: Vai e faz tu também o mesmo[3].

A astúcia de Jesus na elaboração da parábola não podia ser mais interpelante. O seu interlocutor é um israelita, assim como o sacerdote e o levita, homens do culto, que não podiam sujar as mãos nem atrasar-se para as suas funções cultuais. A religião serve-lhes de pretexto para não verem o sofrimento do que está caído na berma da estrada, vítima de roubo e violência.

O que é pressuposto na parábola é que deviam ser os homens da religião oficial, os homens do culto, os verdadeiros socorristas. Não podiam passar ao largo. Deviam debruçar-se sobre a situação, precisamente o que fez o samaritano considerado heterodoxo e inimigo da religião de Israel.

O espantoso capítulo 25 de S. Mateus é constituído por três parábolas, três intrigas paradoxais sobre a urgência em captar as oportunidades de alegria que a vida oferece e que, por leviandade ou por medo de ser mal sucedidos, desperdiçamos.

São textos simbólicos: dizem uma coisa para significar outra. Devem ser respeitados, na sua irredutível alteridade, e questionados. A sua interpretação tem de ter esse facto em conta, para não cair no reino da arbitrariedade. Por outro lado, importa distinguir sentido e significação. O sentido existe no texto que exige estudo para ser decifrado. A significação nasce da pergunta: que tem esse texto, essas parábolas, a ver comigo e que tenho eu a ver com esse texto, com essas parábolas?

A significação implica a vontade de mudar, a vontade de conversão. Ajuda a mudar para o reino da alegria, da vida apaixonada por um novo tempo. As duas primeiras parábolas são o retrato de uma sociedade, na qual, quem tem muito procura ter mais. Quem tem pouco até o pouco que tem lhe é roubado.

A última é a representação simbólica do julgamento de todas as nações, não para as julgar, mas para julgar as acções ou omissões das pessoas. Quem as julga não é a divindade. Quem julga as pessoas são as suas acções de solidariedade ou de falta de solidariedade. Tanto quem foi, como quem não foi solidário não sabia que estava a ter um encontro ou desencontro com o próprio Deus. Deus é o destinatário clandestino do nosso agir solidário sem divinas intenções. A causa do Deus invisível identifica-se com a causa dos que precisam de ser socorridos. Quem socorre ou recusa solidariedade acolhe ou recusa o próprio Deus.

Nesse julgamento da História, o Senhor dirá a uns: Vinde, benditos de meu Pai, porque tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo. E eles perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-te? E o Senhor dirá: Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.

Em seguida dirá a outros: Afastai-vos de mim, porque tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me. E eles perguntarão: Quando foi que te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te socorremos? Ele responderá: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer.

A doença mais grave é esquecer o mundo dos que sofrem.

 

 

 



[1] Gen 4, 1-13

[2] Miq 6, 6-8

[3] Lc 10, 25-37

sábado, 4 de outubro de 2025

A “modernidade líquida” e os Dez Mandamentos - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

A “modernidade líquida”

e os Dez Mandamentos

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Penso que ninguém pensante duvida que

nos encontramos num tempo convulso de

crises e guerras — actualmente, mais de 50

conflitos armados em curso —, num tempo

obscuro e decisivo, imprevisível, da

História. A crise é dramática, para não dizer

trágica, de contornos não bem definidos,

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global. Ela é, evidentemente, ecológica,

tecnológica — pense-se na IA, com todas a

suas vantagens, é claro, mas também com

os seus imensos perigos —, financeira,

económica, política, social, religiosa, moral,

de valores. Sim, decisivamente, de valores.

De valores vinculantes. A própria

democracia está em crise.

Zygmunt Bauman, um dos maiores

sociólogos e pensadores do nosso tempo,

caracterizou a situação como “modernidade

líquida”. Os laços, íntimos e sociais, são

frágeis. Há o receio de compromissos a

longo termo. Tudo deve ficar em aberto,

para não fechar possibilidades.

Baumann dava o exemplo do amor e da

sua vivência contraditória, dolorosa. Por um

lado, num mundo incerto e instável, “tem-

se mais necessidade do que nunca de um

parceiro leal e dedicado, mas, por outro,

fica-se aterrado com a ideia de

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compromisso (para já não falar de

compromisso incondicional) com este tipo

de lealdade e dedicação.” Há o receio de

perder a liberdade e oportunidades. “E se o

parceiro/a fosse o/a primeiro/a a decidir que

está farto/a, de modo que a minha entrega

acabasse no caixote do lixo? Isto leva então

a tentar realizar o impossível: ter uma

relação segura, mas permanecendo livre,

para poder acabar com ela a cada instante.

Melhor: viver um amor verdadeiro,

profundo, durável, mas revogável a

pedido... Tenho o sentimento de que muitas

das tragédias pessoais derivam desta

contradição insolúvel”.

No fundo, é a recusa do sacrifício. De

facto, querer salvar o amor do turbilhão da

‘vida líquida’ é inevitavelmente custoso,

como é custosa e difícil a vida moral.

Entregar-se a outro ser humano no amor

traz felicidade real e duradoura, mas “não

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se pode recusar o sacrifício de si e esperar

ao mesmo tempo viver o ‘amor verdadeiro’

com que sonhamos”.

Na nossa sociedade, tende-se a substituir

a noção de ‘estrutura’ pela de ‘rede’. É que,

“ao contrário das ‘estruturas’ de outrora,

cuja razão de ser era vincular com laços

difíceis de desfazer, as redes servem tanto

para ligar como para desligar”. Por isso,

Baumann contrapunha ‘liquidez’ e ‘solidez’

das instituições. Afinal, “instituições

sólidas, no sentido de duráveis e

previsíveis, constrangem, mas ao mesmo

tempo tornam possível a acção dos

agentes”.

Pessoalmente, mais do que a imoralidade

preocupa-me a amoralidade. Porque,

quando tudo vale, nada vale, pois tudo é

igual. Uma sociedade sem convicções e

valores comuns partilhados não tem futuro,

porque lhe falta horizonte e sentido. Por

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isso, fonte maior de mal-estar hoje está na

falta de critérios de valor e de orientação.

Neste contexto, a revista alemã STERN

publicou há alguns anos um dossier

subordinado à pergunta: “Os Dez

Mandamentos estão ultrapassados?”

Significativamente, políticos como o então

Ministro Federal das Finanças, W. Schäuble,

realizadores como Wim Wenders, filósofos

como Peter Sloterdijk, declararam que eles

continuam vivos e actuais. De facto, quem

negará actualidade a preceitos como: “Não

farás imagens de Deus, mas respeitarás a

dignidade de todos os seres humanos, sua

imagem”, “Não matarás”, “Não cometerás

adultério”, “Amarás os filhos e respeitarás

os pais”, “Não roubarás”, “Não viverás à

custa dos outros”, “Serás justo com todos“,

“Protegerás a natureza”, “Assumirás as tuas

responsabilidades”?

Referindo-se-lhes como um compêndio

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da sabedoria humana, acumulada ao longo

de séculos, o grande escritor Thomas Mann

disse que eles são “manifestação

fundamental e rocha da decência humana”,

“o ABC da conduta humana”.

Sábado, 4 de Outubro de 2025

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Elogio da fé pequena e do serviço humilde - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 Elogio da fé pequena e do serviço humilde

Ano C – Tempo Comum – 27º Domingo

Lucas 17,5-10: “Aumenta em nós a fé!”

A fé e o serviço são os temas da Palavra de Deus deste domingo. Podemos deter-nos mais sobre o

primeiro ou sobre o segundo aspecto, mas no fim percebemos que as duas virtudes caminham juntas.

O serviço é a medida da fé.

O poder da fé

Os apóstolos disseram ao Senhor: «Aumenta em nós a fé!». O Senhor respondeu: «Se tivésseis fé do

tamanho de um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: “Arranca-te e vai plantar-te no

mar”, e ela vos obedeceria».

A fé está no coração da Palavra deste domingo. Encontramo-la nas três leituras. Na primeira leitura

(Habacuque 1,2-3;2,2-4), à oração do profeta Habacuque, que pergunta “até quando, Senhor, clamarei

por socorro e não escutas?”, Deus responde: “o justo viverá pela sua fé”. O evangelho sublinha uma

fé humilde, que se reconhece sempre pequena e insuficiente. Sem a ilusão de possuir a fé dos

“grandes crentes”!

Fé (pístis) e crer (pisteúō) aparecem muitas vezes no Novo Testamento, mais de 240 vezes cada um.

No Antigo Testamento, o crer é expresso com um verbo que tem a mesma raiz da palavra AMÉM, que

significa: “apoiar-se em Deus”, como numa rocha firme e sólida.

Hoje os apóstolos fazem uma oração belíssima: “Aumenta em nós a fé!”. Semelhante à do pai que

pede a Jesus que cure o filho: “Creio; ajuda a minha incredulidade!” (Mc 9,24). Uma oração que

certamente todos nós partilhamos, porque é essencial para ser discípulo de Jesus. Ela brota espontânea

dos lábios dos Doze como reação à sua impotência diante da exigência de Jesus de perdoar o irmão

até sete vezes ao dia.

A resposta de Jesus pode parecer desconcertante e desanimadora, quase como uma repreensão à pouca

fé dos pobres apóstolos. Nem teriam uma fé tão grande quanto um minúsculo grão de mostarda,

considerada a menor de todas as sementes. Mas eu diria que as palavras de Jesus são antes um

inesperado elogio ao poder da fé. Com efeito, ela é capaz de arrancar uma árvore centenária, como a

amoreira ou (talvez) o sicómoro, ambos com raízes profundíssimas e difíceis de arrancar. São um

símbolo do que é estável e inamovível — precisamente para evidenciar a força extraordinária da fé.

“Tudo é possível para quem crê” (Mc 9,23).

Sem a fé não podemos viver, como cristãos e como pessoas. A fé não é só confiança em Deus, mas

também confiança na beleza da vida, na bondade das pessoas, no futuro da história. É confiar no

outro, fundamento de toda relação e convivência humana.

A fé é dom. Um dom natural que se manifesta na confiança espontânea que temos na vida. Dom

sobrenatural que nasce da escuta da Palavra de Deus. Contudo, a graça da fé não deve ser considerada

garantida. Jesus deixou escapar uma exclamação muito intrigante e perturbadora: “Mas quando o

Filho do homem vier, encontrará fé sobre a terra?” (Lc 18,8).

Este dom pode enfraquecer-se, diminuir até desaparecer. Esperamos que isso não aconteça de forma

irreparável, para sempre. São Paulo diz ao seu discípulo predileto Timóteo (segunda leitura):

“Recordo-te que reanimes o dom de Deus que está em ti”. Para dizer “reanimes”, usa um verbo grego

(anazōpurein) que aparece apenas duas vezes na Bíblia e significa reavivar o fogo sob as cinzas. Sem

uma atenção constante, as cinzas da incredulidade podem sufocar a chama da fé.

Então, uma oração brota espontânea do nosso coração: Vem, Espírito Santo, Sopro de vida, vem e

sopra sobre as cinzas que cobrem a nossa fé.

Somos servos inúteis?

A segunda realidade que emerge da Palavra é o serviço. Um serviço humilde, de servos, como diz

Jesus na segunda parte do trecho do Evangelho:

Quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: “Somos servos inúteis. Fizemos o que

devíamos fazer”.

A expressão “servos inúteis” pode parecer desrespeitosa em relação ao nosso serviço. Ninguém se

considera um “servo inútil”. Na realidade, a tradução não parece precisa. Melhor seria traduzir

“servos não necessários” ou “simples servos”. Todos podemos ser úteis, mas ninguém é necessário.

Exceto o Servo por excelência, Jesus, que se apresentou entre nós como aquele que serve (Mc 10,45).

Ninguém pode orgulhar-se do serviço que presta. No fundo, tudo é dom de Deus. “Que tens tu que

não tenhas recebido?”, pergunta-nos Paulo (1 Cor 4,7).

Na verdade, é para nós uma honra ser servos do Senhor. Na Escritura, “servo” é um título honorífico,

quando colocado em relação a uma grande personagem. Imaginemos então ser servos de Deus!

Figuras como Moisés, Davi, os profetas, os apóstolos são chamados “servos do Senhor”. No ser

servos não perdemos a nossa dignidade, mas recuperamo-la. Jesus expressa isso bem noutra

passagem: “Felizes os servos que o senhor, ao chegar, encontrar vigilantes; em verdade vos digo, ele

se cingirá, fá-los-á sentar à mesa e, passando, os servirá” (Lc 12,37).

Para a reflexão e oração pessoal

Vem, Espírito de Deus, sopra sobre as cinzas que cobrem a minha fé:

– as cinzas de uma fé moralista e rotineira,

– as cinzas de uma fé oportunista num «Deus-tapa-buracos»,

– as cinzas de uma fé caprichosa, infantil,

– uma fé que faz exigências, do «tudo já»,

– as cinzas de uma fé derrotista, resignada, triste, desiludida,

– uma fé apagada, vivida sem paixão, que já não espera nada!

Vem, Espírito de Fogo, reaviva a minha fé e torna-a:

– uma fé humilde, vivida no serviço, como Jesus meu Senhor,

– uma fé em caminho, que aceita limites e fragilidades,

– uma fé que não se escandaliza com os pecados alheios,

– uma fé que não desiste, apaixonada e contagiosa,

– uma fé para tempos de crise, não fundada em apoios externos,

– uma fé que se abandona ao Mistério, sem pedir tantos porquês!

Espírito, Dom inefável do Pai, dá-me o dom da fé:

– a fé do centurião, a quem basta uma só Palavra,

– a fé da cananeia que não se cansa de bater ao coração de Cristo,

– a fé da pecadora que chora os seus pecados aos pés do Mestre,

– a fé da mulher a quem basta tocar a orla do manto de Jesus,

– a fé de José, que obedece a Deus no silêncio,

– a fé de Maria, que se proclama a serva do Senhor!

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

ESQUECEMOS OS POBRES Frei Bento Domingues, O.P. 21 Setembro 2025

 

ESQUECEMOS OS POBRES

Frei Bento Domingues, O.P.

21 Setembro 2025

 

1. «Escutai bem, vós que espezinhais o pobre e quereis eliminar os humildes da terra. Vós dizeis: Quando passará a lua nova, para podermos vender o nosso grão? Quando chegará o fim de sábado, para podermos abrir os celeiros de trigo? Faremos a medida mais pequena, aumentaremos o preço, arranjaremos balanças falsas. Compraremos os necessitados por dinheiro e os indigentes por um par de sandálias. Venderemos até as cascas do nosso trigo. Mas o Senhor jurou pela glória de Jacob: Nunca esquecerei nenhuma das suas obras»[1]. Texto selecionado para a liturgia deste Domingo.

Esta denúncia da religião foi radicalizada no Novo Testamento: «Não é quem diz, Senhor, Senhor, que entra no Reino dos Céus»[2].

No dia 7 deste mês, foi canonizado Pedro Jorge Frassati, um jovem italiano, que assumiu, de forma radical e nada fanática, o compromisso social e político. A sua convicção política nasceu no seio da sua fé cristã. Não lhe interessava a política pela política, mas sim a política pela defesa dos pobres, numa perspectiva cristã da vida.

Afinal, quem era este jovem, um dos primeiros canonizados pelo Papa Leão XIV?

Nasceu na cidade de Turim, em 1901, oriundo de uma família da alta burguesia italiana, mas nunca foi um jovem betinho. O seu pai foi fundador do jornal La Stampa, além de Senador e Embaixador e a sua mãe, Adelaide Ametis, era uma pintora reconhecida.

Ainda menino, expressava a caridade concreta e deu os próprios sapatos a uma criança descalça que pediu ajuda à porta da sua casa. Na creche de Pollone aproximou-se do colega isolado por doença e alimentou-o de colherada a colherada.

Estudou no Politécnico de Turim. Escolheu Engenharia Mecânica, com especialização em mineração, para seguir de perto os mineiros que, na época, eram considerados os mais explorados. Aos 17 anos visitava doentes, distribuía alimentos e roupas nas Conferências Vicentinas e procurava levar ajuda às periferias, aos hospitais e ao Cottolengo, uma instituição religiosa que acolhe pessoas com deficiências. O pai não via, nestas opções, grande futuro para o filho. Era o futuro de um homem inútil.

Pedro Jorge tinha, por um lado, uma espiritualidade muito alegre e disponível para ajudar os mais necessitados. Alegria de viver, luta social e política inspirado no célebre e controverso dominicano Jerónimo Savonarola. Não era uma espiritualidade intimista que o separasse dos grandes problemas do seu tempo.

Em Novembro de 1919, no interior da FUCI (Federação dos Universitários Italianos) inscreveu-se no Círculo Universitário Cesare Balbo.

Uma das primeiras coisas que Pedro Jorge pediu no Círculo foi a união com as classes trabalhadoras em vista a uma vitória social e política das forças católicas. A ideia foi discutida, mas não acolhida. E ele, sem abandonar a FUCI, dirigiu-se, naquele mesmo mês, ao Círculo Operário Católico Jerónimo Savonarola, filiado na Igreja de S. José e dirigido pelo Padre dominicano Filippo Robotti. Este Círculo era frequentado pelos operários católicos que se opunham tanto ao social-comunismo revolucionário como ao nacionalismo que havia de desembocar no fascismo. Eles queriam uma sociedade baseada no Evangelho, da qual Cristo Rei fosse a cabeça, ao estilo de Savonarola. Filiou-se na chamada corrente de esquerda em que já militava Alcide de Gasperi, destacando-se, nela, pela sua actividade.

Entretanto, os amigos brincavam com ele, dizendo que era a Empresa de Transporte Frassati, porque carregava lenha, alimentos e móveis para as famílias pobres, numa carroça puxada por ele e os amigos, pelas ruas de Turim.

Em finais de Junho de 1925, nas suas visitas aos doentes, Pedro Jorge contraiu uma doença grave, a poliomielite fulminante, morrendo a 4 de Julho, com apenas 24 anos.

No seu funeral, multidões formadas principalmente pelos pobres, que ele servia, acompanharam o cortejo. O pai reconheceu ali quem era realmente o seu filho e converteu-se. Acontecimento visto por muitos como o primeiro milagre de Pedro Jorge Frassati[3].

2. Importa não esquecer o passado que fala para hoje. No entanto, numa   Europa com mais de 93 milhões de pobres e com uma política da União cada vez mais focada na Defesa, ainda há quem lute para que o combate à pobreza esteja no topo da agenda europeia e também em Portugal.

Foi para refletir e sensibilizar para esta preocupação que a EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza organizou no final da última semana, em Lisboa, um almoço com os eurodeputados portugueses, um ano após as eleições para o Parlamento Europeu.

«Pretendemos, uma vez mais, reforçar o diálogo entre representantes nacionais no Parlamento Europeu, organizações da sociedade civil e cidadãos, nomeadamente, cidadãos que vivem em situação de Pobreza e/ou Exclusão social».

Um objetivo que esta e outras iniciativas perseguem é avançar na definição de uma Estratégia Europeia, coesa e eficaz, de Combate à Pobreza com vista à erradicação deste fenómeno, prevista para os primeiros meses de 2026.

Os promotores entendem que isso só se conseguirá através de um diálogo participativo que aproxime os representantes dos países no Parlamento Europeu, as entidades da sociedade civil e os cidadãos, nomeadamente aqueles que se encontram em situação de pobreza.

Esse diálogo participativo teve, em Março último, um momento alto no Porto, com a realização e em cooperação com a EAPN-Europa de uma Cimeira das Pessoas 2025, cujas conclusões acabam de ser publicadas e servem agora como referencial e ponto de partida.

Maria Joaquina Madeira, Presidente da EAPN Portugal, afirmou: «Há uma preocupação comum que nos move há muitos anos. A pobreza e a luta pela sua erradicação. Este continua a ser um dos desafios mais urgentes do nosso tempo, pois é um fenómeno que é diretamente influenciado por escolhas políticas. E estas opções políticas não permitiram que a luta contra a pobreza fosse considerada uma prioridade».

3. Os bispos participantes no XVI Encontro de Bispos dos Países Lusófonos criticaram na sexta-feira, 12 de Setembro, de forma contundente, as alterações às leis de imigração em Portugal e pela situação de mal-estar provocada pelo sofrimento e pela pobreza extrema.

O Bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, afirmou que «esta proposta de nova legislação tem muito de proibição e de medo e tem muito pouco do que precisamos: regular a imigração, sim, mas promovendo o reagrupamento familiar. Empolou-se desnecessariamente toda a questão, sem atenção aos dados objetivos com objetivos manipuladores e não respeitando a verdade. O que mais me custa é ouvir pessoas responsáveis dizerem-se católicos e acusarem os imigrantes de serem responsáveis pelos males de um país que, na verdade, não pode viver sem eles».

Esquecer os pobres é esquecer a eterna pergunta de Deus: Que fizeste do teu irmão, da tua irmã?[4]

 

 



[1] Profeta Amós 8, 4-7

[2] Mateus 7, 21-23

[3] Notas recolhidas de Fr. Aristónico Montero, op, Frassati. Modelo fascinante para a juventude de hoje, Conselho Nacional da Família Dominicana

[4] Génesis 4, 9

Administradores resolutos e astutos - Manuel João Pereira Correia, mccj

 Administradores resolutos e astutos

Ano C – Tempo Comum – 25.º Domingo
Lucas 16,1-13: “Fazei amigos com a riqueza injusta”

As leituras deste domingo podem parecer de difícil compreensão. Na primeira leitura, Amós, o profeta pastor e camponês do século VIII, toma a defesa do indigente e ameaça com a vingança de Deus contra aqueles que “espezinham o pobre” (Am 8,4-7). Um aviso mais do que atual. Mas, no Evangelho, Jesus conta uma parábola em que parece louvar um administrador desonesto. Trata-se de uma das parábolas mais discutidas do Evangelho. Na realidade, o que se quer pôr em relevo é a prontidão e a astúcia deste administrador. São estas qualidades que Jesus propõe aos “filhos da luz”. Por isso a parábola é também chamada do “administrador sagaz”.

Administradores, não proprietários!

Deixaremos de lado os aspetos exegéticos mais problemáticos para nos concentrarmos na mensagem principal. A palavra-chave é administrador. Os termos administrador / administração / administrar (em grego oikonomos, oikonomia, oikonomeō) aparecem 7 vezes no nosso texto. Não se trata de uma terminologia comum no NT. Contudo, embora apareça poucas vezes, o conceito de “ser administrador” (oikonomos) daquilo que Deus nos confiou é um tema recorrente e fundamental na teologia neotestamentária.

São Paulo diz-nos: “Que cada um nos considere como servos de Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (1 Cor 4,1); e São Pedro: “Cada um, segundo o dom que recebeu, ponha-o ao serviço dos outros, como bons administradores da multiforme graça de Deus” (1 Pe 4,10). Não pensemos apenas nos dons espirituais, mas também nos dons naturais e nos bens materiais.

Aqui chegamos ao primeiro ponto da nossa reflexão: nós somos simples administradores, não proprietários. Isto é, devemos ocupar-nos das coisas, dos bens, do dinheiro, como gestores. Também os bens são talentos que nos foram confiados. Não são nossos e não podemos retê-los. É preciso fazê-los circular e frutificar com resolução e sagacidade! Não para proveito próprio, mas ao serviço dos outros e do Reino.

Hoje já não existe nenhum valor tão universal como o dinheiro. A maior parte do nosso tempo é gasta a ganhar a vida. Mas mesmo o dinheiro que ganhámos com o suor do nosso rosto não é nosso, para usar a nosso bel-prazer. Aliás, sabemos que o sistema monetário atual é injusto e iníquo. Não nos podemos autoabsolver dizendo que nada podemos fazer. É preciso administrá-lo com sabedoria e tendo em conta o que diz Paulo VI na Populorum Progressio: “A propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém está autorizado a reservar para seu uso exclusivo aquilo que excede a sua necessidade, quando outros carecem do necessário” (n.º 23).

Os pobres, porteiros do Paraíso!

A Palavra deste domingo fala-nos também da amizade. Das relações humanas corrompidas pela avidez e pela injustiça, denunciadas pelo profeta Amós. Das relações de fraternidade com todos os homens, que garantam a paz e a justiça, como diz São Paulo na segunda leitura: “para que possamos levar uma vida calma e tranquila, digna e dedicada a Deus” (1 Tm 2,1-8). Mas é sobretudo Jesus, no Evangelho de hoje, que faz uma proposta inesperada: “Fazei amigos com a riqueza injusta, para que, quando ela faltar, eles vos recebam nas moradas eternas”.

Mas então, serão os pobres os porteiros do Paraíso? Ao que parece, sim. Segundo Mt 25,11-12, Jesus será o Juiz que decidirá quem poderá entrar no Reino dos Céus: “Senhor, Senhor, abre-nos!”. Mas Ele respondeu: “Em verdade vos digo: não vos conheço”. E de modo semelhante em Mt 7,22-23: “Nesse dia muitos me dirão: ‘Senhor, Senhor, não profetizámos nós em teu nome? E em teu nome não expulsámos demónios? E em teu nome não realizámos muitos prodígios?’”. Mas então eu lhes declararei: “Nunca vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade!”.

Aqui, em Lc 16,9, porém, soa de forma um pouco diferente. Eis como um catequista de Moçambique explicava aos seus catecúmenos, segundo o relato de um colega missionário:

Quando chegarmos às portas do Paraíso e batermos para poder entrar – sim, porque o Paraíso tem portas, não entra lá qualquer um! – aparece São Pedro, a quem Jesus delegou as chaves do Reino dos Céus, e perguntará: – “Quem és tu?” – “Sou fulano de tal”. Mas como fará Pedro para conhecer toda a gente?! Muito simples: Pedro gritará lá para dentro e perguntará: – “Eh, amigos, há aí alguém que conheça este fulano de tal que pede para entrar?”. Então alguém dirá (assim se espera!): – “Sim, eu conheço-o, deu-me muitas vezes de comer”. E outro: – “Eu também o conheço, visitou-me tantas vezes quando estava doente”. E ainda outro: – “Deu-me roupa para me vestir”. Então Pedro abrirá a porta: – “Entra, amigo, és dos nossos!”.

Mas se lá de dentro abanam a cabeça, dizendo que não o conhecem, então sim é que serão sarilhos sérios!

Parece, portanto, que os pobres são o júri de São Pedro. Eis porque Jesus recomenda: “Fazei amigos com a riqueza injusta, para que, quando ela faltar, eles vos recebam nas moradas eternas”. Por isso não hesita em dar-nos o “administrador desonesto” como exemplo de astúcia!

Dir-se-ia quase que, para entrar no Paraíso, são precisas recomendações! Mas não a São Pedro, e sim aos pobres, e aqui na terra, antes que seja demasiado tarde!

Manuel João Pereira Correia, mccj


domingo, 7 de setembro de 2025

O MUNDO PODE MUDAR SE NÓS MUDARMOS - Frei Bento Domingues, O.P. 07 Setembro 2025

 

O MUNDO PODE MUDAR SE NÓS MUDARMOS

Frei Bento Domingues, O.P.

07 Setembro 2025

 

1. Esta crónica não é o começo nem o fim de férias. A minha praia foi uma Clínica na Idanha. Tenho de agradecer, através do generoso acolhimento do Público, a tantas pessoas que me mantiveram em contacto com o que se passava no país e no mundo.

Fiquei a saber que, neste Verão, em Portugal, ardeu 3% do território. Não tinha de ser um desastre ecológico inevitável, se cuidássemos da Ecologia Integral proposta pelo Papa Francisco e continuada por Leão XIV. A Ecologia Integral não é feita apenas de belos princípios de relação com a Natureza.

Acontecimentos muito simples podem servir para contrariar o que parece inevitável. Setembro é o mês de começos e recomeços. O início do Ano Lectivo deve ser um programa de novidades. É o mês da abertura do futuro. Em vez de estragar, de destruir, podemos alterar. Não estamos condenados ao mundo como está. A educação, se for aberta e verdadeiramente democrática, poderá ajudar a sustentabilidade de um progresso para todos. Os mais novos poderão ser os protagonistas da alteração das sociedades, a nível nacional e global.

As grandiosas Jornadas Mundiais da Juventude, de Lisboa (2023) e de Roma (2025), se não foram apenas uma exibição oca, têm de mostrar frutos novos de transformação da sociedade e da Igreja.

No dia 1 deste mês, ocorreu o X Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, cujo tema é Sementes de Paz e Esperança. Nas palavras do Papa Leão XIV, na sua Mensagem deste ano, «a semente entrega-se inteiramente à terra e aí, que deve morrer para dar fruto, a vida germina, mesmo nos lugares mais inesperados, numa surpreendente capacidade de gerar futuro».

No dia 5, o Papa inaugurou o Burgo Laudato Si’, criado por desejo do Papa Francisco em 2023 nos Jardins das Vilas Pontifícias em Castel Gandolfo. É um projecto de conscientização e formação para sermos fieis às exigências da Ecologia Integral. Funciona como um espaço para aprofundar a ligação com a Criação, concretizando a Encíclica Laudato Sí’. Visa contribuir para aprofundar as questões ambientais e promover estilos de vida mais sustentáveis.

Graças à criação deste projecto, a beleza dos Jardins das Vilas Pontifícias tornou-se o cenário natural para o desenvolvimento de um espaço aberto a todas as pessoas de boa vontade para que a Terra volte a ser o nosso mundo. Ao criar o Burgo Laudato Si', nos espaços de Castel Gandolfo, o Papa Francisco quis demonstrar que os princípios descritos na Encíclica Laudato Si' poderiam tornar-se realidade. O projeto foi desenvolvido em três direções: formação em ecologia integral, economia circular e generativa e sustentabilidade ambiental.

2. Já a 9 de Julho, o Papa Leão XIV, em Castel Gandolfo, começou por dizer: Neste lindo dia, antes de mais nada, gostaria de convidar todos, começando por mim mesmo, a viver o que estamos a celebrar na beleza de uma catedral, que se poderia dizer natural, com as plantas e tantos elementos da criação que nos conduziram aqui para celebrar a Eucaristia, usando o novo formulário da Missa pelo cuidado da criação, fruto dos diferentes Dicastérios do Vaticano.

Estes textos não são só palavras, falam de realizações da sabedoria ecológica. A fé sem obras é morta, como disse nos começos do Cristianismo a Carta de S. Tiago, «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda: poderá alguém alegar sensatamente: Tu tens a fé e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé»[1].

Esta realização do Papa lança, implicitamente, uma interrogação às Igrejas de todo o Mundo e, nomeadamente, às de Portugal: que podem elas fazer para concretizar o exemplo do Burgo Laudato Si’?

Como viu o Papa Francisco, a Ecologia Integral é uma convocatória a crente e não crentes. De facto, a Igreja ou as Igrejas – o conjunto dos cristãos – não estão isoladas na defesa da vida na Terra. «A vida, ubíqua como é, continua a ser um profundo mistério científico. Talvez isto surpreenda muita gente, mas a verdade é que, até ao momento, os cientistas não partilham uma definição consensual de vida nem, já agora, uma compreensão mesmo ao nível mais primitivo, de como surgiu na Terra. Ou em temos mais simples e directos: continuamos sem saber o que é a vida e como começou». Esta é uma passagem do livro O Universo Consciente. Um Manifesto para o Futuro da Humanidade, de Marcelo Gleiser, físico e astrónomo premiado, que faz um apelo admirável ao advento de um novo iluminismo e a um reconhecimento da preciosidade da vida, fazendo uso da razão e da curiosidade – os pilares da ciência – para estudar, proteger e em última análise preservar a humanidade face à actual crise existencial das alterações climáticas.

3. Colhi do mesmo autor a seguinte passagem: «O Universo só tem uma história porque nós estamos cá para a contar. Através da nossa diligência e engenho, juntámos os principais capítulos da longa saga que começou com o Big Bang há 13,8 mil milhões de anos. Esta história desenrola-se na vastidão do espaço e narra o drama da matéria a dançar ao ritmo de forças de atração e repulsão, a moldar-se em estruturas cada vez mais complexas que se tornaram átomos, estrelas, galáxias, planetas, vida, nós. A forma como contamos uma história faz toda a diferença. E chegou o momento de recontar a história de quem somos, na perspetiva de uma nova mentalidade. Este livro é sobre a vida na Terra, sobre a sua relevância cósmica, sobre o mandato moral da humanidade para se erguer acima do passado e remodelar o futuro coletivo. Escrevo-o com um sentido de urgência e esperança.

O advento da vida mudou tudo. A vida é matéria com propósito, com um desejo de existir»[2].

Para Marcelo Gleiser, ciência e espiritualidade não se opõem: «Pouco ou nada sabemos sobre como a vida surgiu da não-vida na Terra e como evoluiu para se tornar inteligente, dadas as muitas contingências da história única do nosso planeta. A origem da vida continua a ser um mistério, enquanto a evolução da vida unicelular simples para a vida inteligente não é um caminho necessário – e ainda menos inevitável – para a evolução da vida. A vida preocupa-se com estar bem adaptada ao seu meio, de modo a poder reproduzir-se com êxito e não com a capacidade de construir foguetões ou escrever poesia. (…) A nossa história não é, porém, apenas uma narrativa científica. Abrange múltiplas dimensões culturais, sendo a ciência uma delas. Não há como negar que o Universo em expansão é vasto e que o nosso planeta não passa de um pequeno grão numa vulgar galáxia em espiral»[3].

O mundo pode mudar se nós mudarmos.

 



[1] Tg 2, 14-18

[2] Marcelo Gleiser, O universo Consciente. Um manifesto para o futuro da humanidade, Temas e Debates – Círculo de Leitores, p. 11

[3] Ibidem, pp. 72-72

domingo, 24 de agosto de 2025

Para falar, ouvir o Silêncio Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

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Crónicas PÁRA E PENSA

Para falar, ouvir o Silêncio

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia


Mesmo correndo o risco de repetições,

volto ao tema, porque a ameaça temível

da verborreia oca não cessa de

aumentar...

Sim, é verdade. Quando comparamos

o ser humano e os outros animais,

notamos que a linguagem duplamente

articulada é característica decisiva dos

humanos. Foi sobretudo a partir do

século XVIII que se deu essa

compreensão: até encontramos

caricaturas com um missionário no meio

2

da selva africana dizendo a um macaco:

“Fala, e eu baptizo-te”. Se falasse, era

humano. Evidentemente, esta fala refere-

se ao que é próprio do ser humano: dupla

articulação da linguagem.

Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e

o mundo abre-se a nós. Falando, damos

razão disto ou daquilo, argumentamos,

comprometemo-nos, formamos

comunidade. Sendo a razão humana

linguisticizada, só podemos compreender-

nos a nós próprios em corpo, com outros

e na História.

O Homem, pelo facto de ser “zôon

lógon échon”, animal que tem lógos

(razão e linguagem), é também “zôon

politikón”, animal social, político,

diferentemente do animal, que é

gregário, e a razão disso é a palavra,

como bem viu Aristóteles, na Política: “A

razão de o Homem ser um ser social,

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mais do que qualquer abelha e qualquer

outro animal gregário, é clara. Só o

Homem, entre os animais, possui a

palavra”. E continua: “A voz é uma

indicação da dor e do prazer; por isso,

têm-na também os outros animais. Pelo

contrário, a palavra existe para

manifestar o conveniente e o

inconveniente bem como o justo e o

injusto. E isto é o próprio dos humanos

face aos outros animais: possuir, de

modo exclusivo, o sentido do bem e do

mal, do justo e do injusto e das demais

apreciações. A participação comunitária

nestas funda a casa familiar e a cidade”.

A linguagem humana não se reduz à

expressão emotiva do prazer e do

desprazer. É capaz de fazer juízos

morais, de distinguir o bem e o mal, o

justo e o injusto, partilhar e debater

publicamente estas apreciações. Deste

modo, a linguagem está na base da ética

4

e funda eticamente a pólis (a cidade, no

sentido da vida política).

Percebe-se assim que o ser humano é

constitutivamente dialogante. Aliás, o que

é, logo à partida, pensar senão falar

consigo mesmo? Damos tantas vezes

connosco a falar connosco — isso mesmo,

a dialogar connosco no mais íntimo de

nós, quando precisamos de deliberar e

vamos apresentando razões a favor e

razões contra uma determinada tomada

de posição.

Precisamos de falar connosco. É

preciso falar, dialogar em família. Quando

o diálogo morre numa família, o amor vai

esmorecendo e caminhando também para

a morte. Mas hoje, desgraçadamente,

parece que não há tempo para dialogar

em família, porque o barulho invasor das

televisões— o que lá vai de

comentadores, tantas vezes ignaros! —

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toma conta de tudo. E os telemóveis e

quejandos, meu Deus!... Já se diz que a

“Última Ceia” do século XXI representa

Jesus com as mãos à cabeça, aflito,

porque os Apóstolos estão todos

entretidos a olhar e a “dedar”

entusiasmados nos seus smartphones!...

Por outro lado, quem não faz silêncio,

quem não medita (significativamente,

meditação, medicina e moderação têm a

mesma proveniência: o verbo latino

mederi — a raiz é med: pensar, medir,

julgar, tratar um doente —, que significa

cuidar de, tratar, medicar, curar), quem

não ouve a Palavra originária, que fala no

silêncio, pode produzir tempestades de

palavras, mas elas são ocas ou até

perniciosas. Porque então a palavra já

não existe para “manifestar o

conveniente e o inconveniente bem como

o justo e o injusto”. Ora, não é isso que

tantas vezes se passa nas campanhas

6

eleitorais e nos Parlamentos? E também

em muitas homilias de padres e bispos e

discursos de todo o género? Como faz

falta a palavra poética, criadora,

revigoradora e que cura! Ah, sim, pela

palavra, animamos alguém, damos-lhe

força, esperança, abrimos-lhe futuro.

Com uma palavra podemos curar alguém,

mas também podemos “matar”, destruir-

lhe a vida.

Tudo fica abalado, quando os sofistas e

a sofística tomam conta do espaço

público e privado. Nunca mais se vai ao

essencial. E tudo se agrava agora com a

ameaça da banalização total das redes

sociais. Para isso chama a atenção um

comentário aceso e paradigmático do

grande Umberto Eco, pouco antes de

morrer: “As redes sociais concedem o

direito de palavra a legiões de imbecis

que antes falavam só no bar depois de

um copo de vinho, sem danos para a

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colectividade. Eram imediatamente

remetidos ao silêncio enquanto agora têm

o mesmo direito de palavra de um Prémio

Nobel. Assistimos à invasão dos imbecis.”

É, pois, urgente dar espaço e tempo

ao silêncio. E também à oração. Sim, à

oração. Para colocar o ser humano em

contacto com o Mistério último da

realidade e da vida. Dialogar com o mais

fundo da Vida. Estar ligado ao

Fundamento, à Fonte, ao Sentido último.

Para se não perder na dispersão,

completamente desorientado,

desorientada, sem referências, perigo

maior do nosso tempo.

Mas a oração e o que é essencial

exigem o salto para fora do barulho

ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num

tempo em que se é invadido e esmagado

pelo tsunami das informações, entrando

no mundo caótico da dispersão e da

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fragmentação, da “agitação paralisante e

da paralisia agitante”, segundo a

expressão do famoso bispo do Porto, D.

António Ferreira Gomes, é urgente parar,

fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim,

ouvir o silêncio. No meio da vertigem dos

vendavais de palavras em que vivemos,

que nos atordoam e paralisam, ouvir

outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio.

Só depois de ouvir o silêncio será possível

falar, falar com sentido e palavras novas,

seminais e iluminantes, criadoras. De

verdade. Onde se acendem as palavras

novas, seminais, iluminadas e

iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão

no silêncio, talvez melhor, na Palavra

originária, criadora, que fala no silêncio?

Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência,

que sussurra ou grita no silêncio. Quem a

ouve? Ouvir o quê? Ouvir na noite o

silêncio da noite e também na noite

contemplar o alfobre das estrelas. Ouvir

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música, a grande música, aquela que diz

o indizível e nos transporta lá, lá, ao

donde somos e para onde

verdadeiramente queremos ir: a nossa

morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria.

Sócrates, o filósofo grego, o mártir da

Filosofia, que só sabia que não sabia,

consagrou a vida a confrontar a retórica

sofística com a arrogância da ignorância e

a urgência da busca da verdade. Falava,

mas só depois de ouvir o seu daímon, a

voz do divino e da consciência.

O grande filósofo A. Comte-Sponville é

partidário de um “ateísmo místico”, no

quadro de “uma espiritualidade sem

Deus”. Mas constituinte dessa

espiritualidade é precisamente o silêncio.

“Silêncio do mar. Silêncio do vento.

Silêncio do sábio, mesmo quando fala.

Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio

em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é

outra coisa), para que só haja verdade,

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que todo o discurso supõe, verdade que

os contém a todos e que nenhum

contém. Verdade do silêncio: silêncio da

verdade.”

O problema está em que já Pascal,

nos Pensamentos, se queixava: “Toda a

desgraça dos homens provém de uma só

coisa, que é não serem capazes de

permanecer em repouso num quarto.”

Hoje é ainda pior do que no tempo de

Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Sinal

extremo disso: Quem ousa ouvir, em

todo o seu abismo, o silêncio da morte no

silêncio de um rosto morto, que nos cala

e nos abala até à raiz de nós e ao fundo

abissal do ser? No entanto, é em silêncio

que, na noite do mistério, se pode

entrever a luz da verdade do amor e da

morte e do Sentido final. Por isso, é

preciso constantemente pedir com Sophia

de Mello Breyner: “Deixai-me com as

coisas/Fundadas no silêncio.”

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Há um preceito sufi que reza: “Se a

palavra que vais dizer não for mais bela

do que o silêncio, não a digas”. Se este

preceito fosse cumprido, poderia estar a

caminho o casamento feliz, humanizante

e criador da Fala e do Silêncio.

N. B.: Estas crónicas ficam suspensas

até Outubro.

Sábado, 23 de Agosto de 2025