A COMPAIXÃO DO SAMARITANO
Frei
Bento Domingues, O.P.
05
Outubro 2025
No
dia 26 de Setembro, o Vaticano anunciou o tema para o Dia do Doente
(11.02.2026), escolhido pelo Papa Leão XIV – A compaixão do samaritano: amar carregando a dor do outro.
Esta
data parece muito longínqua e a situação de quem sofre não pode esperar pelo
classificado Dia do Doente. O imenso mundo dos que sofrem é hoje que pede
socorro. O Dia Mundial do Doente é, apenas, o símbolo que nos diz que devemos
cuidar dos doentes todos os dias.
Esta
antecipação deve servir para despertar, desde já, todas as religiões, todas as
pessoas, a sociedade em geral e os decisores políticos, sobre esse mundo que
sofre.
Aqui,
vou apenas fazer uma selecção de textos bíblicos que gritam a questão central
da compaixão, da misericórdia.
2. A
Bíblia, desde o começo, lançou a pergunta essencial muito esquecida que, ainda
hoje, pede uma prática fraterna: Que
fizeste do teu irmão?[1]
O
profeta Miqueias deu-nos o mais incisivo texto do que é fundamental na religião
e o que são as suas traições. Não o podemos esquecer: «Com que me apresentarei ao Senhor e me inclinarei
diante do Deus Altíssimo? Porventura me apresentarei com
holocaustos ou com novilhos de um ano? Terá o Senhor prazer nos milhares de
carneiros ou nas libações de torrentes de azeite? Hei-de sacrificar-lhe o meu
primogénito pelo meu crime, o fruto das minhas entranhas pelo meu próprio
pecado? Já te foi revelado,
ó homem, o que é bom, o que o Senhor exige de ti: nada mais do que praticar a
justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com o teu Deus!»[2]
3. No Novo
Testamento, é o próprio Jesus que é interrogado por um doutor da Lei: Mestre,
que hei-de fazer para possuir a vida eterna? Resposta de Jesus: Que está
escrito na Lei? Como lês? Ele respondeu: Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com
todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo.
Jesus observou: respondeste corretamente. Faz isso e viverás. Mas ele, querendo justificar a sua pergunta,
insistiu: E quem é o meu próximo?
Esta pergunta serviu a Jesus para elaborar uma parábola que atravessou os
séculos e devia manter todo o seu vigor na actualidade, acerca do que é a
verdadeira e a falsa religião.
É uma parábola, na qual, está incluído um conflito entre religião e prática
social. Eis a parábola: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e
caiu nas mãos dos salteadores que, depois de o despojarem e encherem de pancadas,
o abandonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aquele
caminho um sacerdote que, ao vê-lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também
um levita passou por aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e,
vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas,
deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o
para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários,
deu-os ao estalajadeiro, dizendo: Trata bem dele e, o que gastares a mais,
pagar-te-ei quando voltar.
Nesta parábola, chegou o momento de Jesus passar a interrogar o doutor da
Lei com uma pergunta muito simples: Qual
destes três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas mãos dos
salteadores? Resposta acertadíssima: O
que usou de misericórdia para com ele. Jesus retorquiu: Vai e faz tu também o mesmo[3].
A astúcia de Jesus na elaboração da parábola não podia ser mais
interpelante. O seu interlocutor é um israelita, assim como o sacerdote e o
levita, homens do culto, que não podiam sujar as mãos nem atrasar-se para as
suas funções cultuais. A religião serve-lhes de pretexto para não verem o
sofrimento do que está caído na berma da estrada, vítima de roubo e violência.
O que é pressuposto na parábola é que deviam ser os homens da religião
oficial, os homens do culto, os verdadeiros socorristas. Não podiam passar ao
largo. Deviam debruçar-se sobre a situação, precisamente o que fez o samaritano
considerado heterodoxo e inimigo da religião de Israel.
O espantoso capítulo 25 de S.
Mateus é constituído por três parábolas, três intrigas paradoxais sobre a
urgência em captar as oportunidades de alegria que a vida oferece e que, por
leviandade ou por medo de ser mal sucedidos, desperdiçamos.
São textos simbólicos: dizem
uma coisa para significar outra. Devem ser respeitados, na sua irredutível
alteridade, e questionados. A sua interpretação tem de ter esse facto em conta, para não cair no reino da arbitrariedade.
Por outro lado, importa distinguir sentido e significação. O sentido existe no
texto que exige estudo para ser decifrado. A significação nasce da pergunta:
que tem esse texto, essas parábolas, a ver comigo e que tenho eu a ver com esse
texto, com essas parábolas?
A significação implica a vontade
de mudar, a vontade de conversão. Ajuda a mudar para o reino da alegria, da
vida apaixonada por um novo tempo. As duas primeiras parábolas são o retrato de
uma sociedade, na qual, quem tem muito procura ter mais. Quem tem pouco até o
pouco que tem lhe é roubado.
A última é a representação
simbólica do julgamento de todas as nações, não para as julgar, mas para julgar
as acções ou omissões das pessoas. Quem as julga não é a divindade. Quem julga
as pessoas são as suas acções de solidariedade ou de falta de solidariedade.
Tanto quem foi, como quem não foi solidário não sabia que estava a ter um
encontro ou desencontro com o próprio Deus. Deus é o destinatário clandestino
do nosso agir solidário sem divinas intenções. A causa do Deus invisível
identifica-se com a causa dos que precisam de ser socorridos. Quem socorre ou
recusa solidariedade acolhe ou recusa o próprio Deus.
Nesse julgamento da História, o Senhor dirá a uns:
Vinde, benditos de meu Pai, porque tive
fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e
recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me,
estive na prisão e fostes ter comigo. E eles perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome e
te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos
peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos? E quando te vimos doente
ou na prisão, e fomos visitar-te? E o Senhor dirá: Em verdade vos digo: Sempre que fizestes
isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.
Em seguida dirá a outros: Afastai-vos de mim, porque tive fome e não me destes de comer, tive
sede e não me destes de beber, era peregrino e não me recolhestes, estava
nu e não me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-me. E
eles perguntarão: Quando foi que te vimos
com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não te
socorremos? Ele responderá:
Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o
deixastes de fazer.
A doença mais grave é esquecer o mundo dos que
sofrem.