sábado, 6 de dezembro de 2025

O pecado original. Com uma excepção? - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 O pecado original.

Com uma excepção?

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Aconteceu-me, há muitos, muitos anos — era ainda

jovem —, que, no final de uma conferência, no período das

perguntas, uma senhora me atirou: “Sempre é verdade o que

dizem: o senhor nega dogmas da Igreja!” Pedi-lhe para dar

exemplos. Ela: que tinha negado o dogma do pecado

original.

Aí, perguntei-lhe se tinha filhos. E ela: “sim, tenho duas

filhas”. Dei-lhe parabéns sinceros e desafiei-a a dizer-me se

acreditava sinceramente que as duas filhas tinham sido

geradas em pecado e que ela tinha andado nove meses de

cada vez carregando com duas filhas em pecado dentro dela.

Ela: “Eu?! Nem pense nisso! É claro que não”.

Fiquei então, mais uma vez, a saber que,

frequentemente, há na religião o que se chama dissonância

cognitiva: afirma-se uma coisa, mas realmente não se

acredita nela, porque se pensa outra coisa. Aquela senhora,

confrontada com a questão, viu claramente que não podia

acreditar que uma criaturinha inocente, concebida com

amor, tivesse sido gerada e tivesse nascido em pecado, um

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pecado de que não era autora nem culpada. Mas ao mesmo

tempo acusava de heresia quem dissesse o contrário do que

lhe ensinaram que devia dizer, sem pensar. Ora, a fé não

pode entregar-se à cegueira, abandonando a razão.

O pecado original não se encontra na Bíblia. Segundo o

exegeta Armindo Vaz, a “transgressão” mítica de Adão e

Eva “não implica um juízo de ordem ética ou moral nem

permite a sua interpretação como ‘pecado’, ‘falta’ ou

desobediência moral”. Como foi possível essa interpretação

moral, se, na lógica dos mitos de origem, a natureza humana

ainda estava em processo de criação e as acções do casal

primordial são precisamente para “complementar a criação

da sua condição humana: ‘comer da árvore do

conhecimento’ (aquisição do conhecimento), cobrir a nudez

(aquisição da civilização), sentença divina, decreto de morte

e expulsão (aquisição da condição de sofredor, mortal e

trabalhador)”?

Já o filósofo Hegel tinha interpretado a saída do

“paraíso terreal” como a passagem da animalidade à

humanidade. O pecado original foi elaborado

essencialmente por Santo Agostinho, com a finalidade de

evitar a atribuição do mal a Deus. Para ele, foi com o pecado

de Adão e Eva que veio ao mundo todo o mal, incluindo a

morte, e, com esse pecado, transmitido de geração em

geração, a humanidade toda tornou-se “massa condenada”

ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça

imerecida de Deus.

Esta concepção agostiniana teve pesadíssimas

consequências no Ocidente e no mundo. Escreveu o filósofo

cristão Paul Ricoeur: “Nunca se dirá suficientemente o mal

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que fez à cristandade a interpretação literal, melhor,

historicista, do mito adâmico, ao levá-lo à profissão de uma

história absurda e às especulações pseudorracionais sobre a

transmissão quase biológica de uma culpabilidade quase

jurídica da falta cometida por outro homem, castigado na

noite dos tempos, algures, numa fase da evolução entre o

Pitecantropo e o homem de Neanderthal.”

Santo Agostinho não hesitou em deixar cair no inferno

as crianças que morriam sem baptismo, entrando assim no

Ocidente uma concepção bárbara de Deus. Como foi

possível conceber um Deus que teria castigado a

Humanidade inteira com o calvário todo da História e o

inferno por causa de um único pecado de seres humanos

ainda no dealbar da consciência? E como poderia aceitar-se a

condenação eterna de crianças inocentes, a não ser que

recebessem o baptismo?

O limbo apareceu na Idade Média para a atenuar esta

crueldade. Assim, as crianças sem baptismo ficavam

privadas da visão de Deus, mas não eram condenadas ao

inferno. Erguia-se, porém, legítima, a pergunta: não se

trataria ainda de um castigo?, e como poderia Deus,

infinitamente poderoso e bom, estar dependente, em ordem

à salvação, de uma concha de água?

Já em 1984, o teólogo Joseph Ratzinger afirmara que o

limbo era uma mera hipótese teológica. Mais tarde, já Papa

Bento XVI, aprovou um documento de 41 páginas,

preparado pela Comissão Teológica Internacional, que

acabava com o limbo e abre as portas da salvação às crianças

que morrem sem serem baptizadas.

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A impressão geral que me ficava da religião nos tempos

da catequese não era luminosa. Pelo contrário, tudo aquilo

transmitia um mundo bastante tenebroso, a ideia de um

Deus castigador e de nós sujeitos a um destino de submissão

trágica. Os primeiros pais tinham pecado, Deus andava

irado com a gente e Jesus sofria na cruz para ver se nos

libertava. A alegria era um roubo e a palavra Evangelho, que

quer dizer “notícia boa”, não pousava sobre nós.

O que infectava o cristianismo era precisamente a

doutrina infausta do pecado original. Escreveu o célebre

historiador católico Jean Delumeau, que ainda tive o

privilégio de conhecer pessoalmente: “Não é exagerado

afirmar que o debate sobre o pecado original, com os seus

subprodutos – problemas da graça, do servo ou livre

arbítrio, da predestinação --, se converteu (no período

central do nosso estudo, isto é, do século XV ao século XVII)

numa das principais preocupações da civilização ocidental,

acabando por afectar toda a gente, desde os teólogos aos

mais modestos aldeões. Chegou a afectar inclusivamente os

índios americanos, que eram baptizados à pressa para que,

ao morrerem, não se encontrassem com os seus

antepassados no inferno. É muito difícil, hoje, compreender

o lugar tão importante que o pecado original ocupou nos

espíritos e em todos os níveis sociais. É um facto que o

pecado original e as suas consequências ocuparam nos

inícios da modernidade europeia o centro da cena mundial,

sem dúvida muito atribulado.”

No entanto, repito, a doutrina do pecado original, no

sentido estrito de um pecado transmitido e herdado, não se

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encontra na Bíblia. Jesus nunca se referiu a um pecado

original.

Sim, na sua base, encontra-se fundamentalmente Santo

Agostinho, a partir de um passo célebre da Carta de São

Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12. Mas ele, que

não sabia grego, seguiu a tradução latina: Adão, “no qual”

todos pecaram, quando o original grego diz: “porque” todos

pecaram. Ora, uma coisa é dizer que todos são pecadores e

outra afirmar que todos pecaram em Adão, como a árvore

fica infectada na raiz, de tal modo que todos nascem em

pecado do qual só o baptismo os pode libertar. Santo

Agostinho, como já ficou dito, deixava cair no inferno,

mesmo que menos terrível, as crianças sem baptismo.

Durante séculos, houve mães dramaticamente abaladas,

porque os filhos morreram sem baptismo — eu ainda

conheci algumas, que procurei vivamente consolar.

A Santo Agostinho serviu esta doutrina sobretudo para,

convertido do maniqueísmo ao cristianismo, “explicar” o

mal no mundo, que não podia vir do Deus criador bom.

De facto, baseou-se numa exegese errada. E quem não

sabe hoje que o que diz respeito a Adão e Eva e à queda é da

ordem do mito? Adão e Eva não são personagens históricas.

Depois, se eles ainda não sabiam, como diz o texto do

Génesis, do bem e do mal, como podiam pecar? O que o texto

diz é outra coisa, e fundamental: o que caracteriza o ser

humano frente ao animal é a liberdade. O ser humano já não

é um animal como os outros: tem auto-consciência, sabe de

si como único – a nudez metafísica – e que é mortal...

Mas os estragos desta doutrina infausta foram e são

incalculáveis, sobretudo a partir do acrescento de Santo

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Anselmo e a sua doutrina da retribuição: os primeiros pais

cometeram uma ofensa infinita contra Deus e, assim, era

necessária uma reparação infinita para uma dívida infinita

que só o Deus-homem Jesus podia pagar na cruz.

Ficou então a ideia de um Deus por vezes monstruoso,

sádico — em relação a esse Deus deve-se ser ateu —, que

precisou da morte do Filho, inocente, para reconciliar-se com

a Humanidade. Mas como era isso compatível com o Deus

amor? Porque o pecado se transmitia pelo prazer do acto

sexual, a sexualidade, o corpo e a mulher ficaram

envenenados, numa situação dramática, se não trágica: era

preciso continuar a gerar filhos — no limite, a actividade

sexual só se legitimava para a procriação —, mas eles eram

gerados em pecado e a mulher trazia o pecado dentro dela.

Só houve uma excepção: Maria foi concebida sem pecado,

excepção que dá lugar à festa da Imaculada Conceição, no

dia 8 de Dezembro, com feriado nacional em Portugal.

Esquece-se então que Nossa Senhora não é grande porque

foi isenta do pecado original, que não há, é grande porque é

a primeira cristã, aquela que acreditou no seu filho Jesus e

no seu Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai-

Mãe, que só quer a alegria, a felicidade e a plena realização

de todos os seus filhos e filhas, que devem viver segundo

essa dignidade, na fraternidade, na liberdade e no amor...,

Jesus, inocente, não se acobardou e foi condenado à morte,

foi crucificado, para dar testemunho da Verdade e do Amor,

mas Deus não o abandonou: está vivo na plenitude da Vida,

a Vida eterna...

Porque é que o primeiro acto humano da História havia

de ser o pecado, pecado original? Hoje, com a evolução, a

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contradição torna-se ainda maior: quem foram os “primeiros

pais”, com tanta consciência, liberdade e poder de

determinação da História? O único sentido do chamado

pecado original só pode ser o de estar precavidos: todos são

gerados e nascem sem pecado, mas num mundo e para um

mundo onde já há pecado — pense-se nos horrores das

guerras e da fome, na violência doméstica e nos abusos de

toda a ordem, na estupidez, na imensa estupidez, na

brutalidade da mentira e do ódio, num mundo que por

vezes parece desmoronar-se... — e, por isso, precisamos de

estar precavidos, pois podemos ser contaminados, como um

não fumador que entra numa sala de fumadores tem de

acautelar-se, já que pode ser contaminado pelo fumo...

De qualquer modo, o que São Paulo diz no passo célebre

da Carta aos Romanos é uma mensagem de esperança: todos

os seres humanos pecam, o pecado do ser humano é grande,

mas o amor de Deus é maior. Infinito.

Sábado, 6 de Dezembro de 2025

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