O Homem e o Tempo
Anselmo Borges
Padre e Professor de Filosofia
Porque estamos no Advento, que deveria
preparar para o Natal, fica aí uma breve reflexão
sobre o ser humano e o tempo. De facto, seria
tremendamente lamentável que este tempo se
reduza a compras compulsivas numa sociedade
de consumo materialista e, no limite, niilista e,
tanto quanto se pode observar, por isso mesmo,
profundamente infeliz e sem sentido.
Característica essencial do ser humano é que
conjugamos os verbos no passado, no presente e
no futuro.
Há quem julgue que a salvação está no
passado. Há sempre os saudosistas do passado:
antigamente é que era bom. É a saudade do
Paraíso perdido... Também há aqueles que não
querem preocupar-se nem com o passado nem
com o futuro. O que há é o aqui e agora, o
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presente a que se segue outro presente. A
salvação consiste no amor e fruição do
presente... Depois, há os sonhadores e os
ascetas. Fogem do agora, para refugiar-se no
amanhã. Nunca estão no presente, pois a sua
morada é só o futuro...
Ora, pensando bem, se, por um lado, não
podemos instalar-nos no passado, por outro,
nenhum ser humano pode abandonar o passado,
como se fosse sempre e só o ultrapassado. De
facto, quando demos por nós, já lá estávamos, o
que significa que vimos de um passado que nem
sequer dominamos. E temos de aprender com o
passado, nosso e dos outros, para, a partir dele,
nos decidirmos no presente.
Sim, é sempre no presente que vivemos, mas
também não é possível a simples instalação no
presente, pois só podemos viver no presente
projectando-nos constantemente no futuro. Na
bela expressão de Helena Buescu, “somos
herdeiros e futurantes”. O ser humano está
estruturalmente voltado para o futuro, já que é
constitutivamente um ser esperante.
Aqui, é necessário perguntar-se: não é a
esperança filha da infelicidade e do temor? É
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célebre a afirmação de Espinosa: "Não há
esperança sem temor, nem temor sem
esperança". O que é que isto quer dizer?
Vivemos voltados para o futuro, pois somos
projecto: agimos e somos, antecipando sempre.
Sem esta antecipação, não poderíamos agir
humanamente. Mas, por outro lado, não se pode
esquecer que realmente a esperança também
significa que, se desejamos, é porque não temos,
e isso implica que se não é feliz. E, depois,
quando temos, há sempre o temor de perder o
que temos, o que nos coloca em permanente
inquietação...
Viver humanamente não pode, portanto,
significar viver exclusivamente do futuro e para
o futuro, pois viver unicamente da esperança é
nunca viver, já que verdadeiramente só se vive
no presente. Viver unicamente da esperança
seria adiar constantemente a vida, no sentido do
viver. Aliás, colocar permanentemente o
presente ao serviço do futuro, vê-lo
exclusivamente em função do futuro, é abrir as
portas ao perigo da tirania: quantos homens e
mulheres não foram de facto vítimas do sonho
dos "amanhãs que cantam"?!...
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É isso: querer viver exclusivamente do
presente e para o presente não é humano, pois
isso significaria viver na imediatidade animal,
sem horizonte de futuro e transcendência. Mas,
por outro lado, quem quisesse viver
exclusivamente do futuro e para o futuro nunca
poderia afastar a dúvida de estar apenas a lidar
com as suas ilusões. Assim, a arte de viver
humanamente consiste em, a partir do passado,
viver com tal intensidade e dignidade o presente
que se torna legítimo esperar a vida plena
futura...
Nestes tempos de niilismo, com “sub-produção
de transcendência”, como se queixava Ernst
Bloch, o filósofo ateu-religioso da esperança,
temos de voltar ao Advento a caminho do Natal.
Advento é uma palavra que vem do latim e
quer dizer vinda, chegada: em sentido religioso,
é a chegada, a vinda de Deus: Ele veio e
mostrou-se em Jesus, Ele vem, Ele virá.
Herdeiros e sempre futurantes, face ao fim, só
resta uma alternativa, que já aqui por vezes
sublinhei:
Claude Lévi-Strauss conclui assim o
seu “L’homme nu”: "Ao Homem incumbe viver
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e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a
coragem, sem que nunca o abandone a certeza
adversa de que outrora não estava presente e que
não estará sempre presente sobre a Terra e que,
com o seu desaparecimento inelutável da
superfície de um planeta também ele votado à
morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as
suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras
se tornarão como se não tivessem existido, não
havendo já nenhuma consciência para preservar
ao menos a lembrança desses movimentos
efémeros, excepto, através de alguns traços
rapidamente apagados de um mundo de rosto
impassível, a constatação anulada de que
existiram, isto é, nada."
A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que
quer dizer revelação, conclui assim: “Vi então
um novo céu e uma nova terra.” “E vi descer do
céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova
Jerusalém”. E ouvi uma voz potente que vinha
do trono: “Esta é a morada de Deus entre os
homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu
povo e o próprio Deus estará com eles e será o
seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos
seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto,
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nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas
passaram."
Sábado, 29 de Novembro de 2025
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