NÃO
NOS ESQUEÇAMOS DOS POBRES
Frei Bento Domingues, O.P.
19 Outubro 2025
1.
Vivi num tempo em que,
de Roma (Vaticano), só se podia esperar condenações, sobretudo no plano
teológico. Sabemos que foi João XXIII e o Concílio Vaticano II – um concílio de
compromisso, como diz E. Schillebeeckx[i]
– que alteraram esse clima. Foram os perseguidos da Igreja do século XX que
tornaram possível a viragem conciliar.
O Papa Francisco entrou
nesse movimento. Mais, tornou-se, em certo sentido, a vanguarda da Igreja e deixou uma herança que poderá ser acolhida,
rejeitada ou ignorada.
Havia muitas previsões,
muitos desejos desencontrados, acerca de quem sucederia ao Papa Francisco. No
dia 8 de Maio (2025) ficamos a saber que foi eleito o cardeal Robert Francis Prevost que escolheu, para o seu pontificado, o nome de Leão XIV.
2.
O passado dia 17 foi
dedicado à erradicação da pobreza. Seria incompreensível que a Igreja ficasse
surda e muda perante esta antiga questão, sempre adiada e repetida. De facto,
em muitos casos e situações, são pessoas e organizações que fazem da Igreja um hospital de campanha.
Francisco
tinha iniciado a elaboração de uma Exortação
Apostólica sobre o
cuidado da Igreja pelos pobres e com os pobres. Cumpriu, durante o seu pontificado,
a recomendação que o cardeal brasileiro Hummes lhe fizera após a sua eleição: não te esqueças dos pobres.
Leão XIV, ao receber como herança este
projecto, confessa: sinto-me feliz ao assumi-lo como meu e ao apresentá-lo no
início do meu pontificado, partilhando o desejo do meu amado Predecessor de que
todos os cristãos possam perceber a forte ligação existente entre o amor de Cristo e o seu apelo a
tornarmo-nos próximos dos pobres (3).
Não pretendo fazer um comentário a esta Exortação Apostólica.
Destacarei, apenas, algumas passagens para convidar à sua leitura e meditação.
Esta Exortação sobre o amor
para com os pobres (09.10.2025) abre com um texto subversivo de S. Lucas: derrubou os poderosos dos seus tronos e
exaltou os humildes, aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu-os de
mãos vazias (Lc 1, 52-53). De tão
repetido e tão pouco praticado, este texto parece apenas um desejo piadoso.
Na entrevista que o Papa
concedeu à jornalista Elise Ann Allen, do jornal digital Crux, verificou que essa profecia está muito longe de ser cumprida.
Basta olhar para «a crescente diferença entre os níveis de rendimento da classe
trabalhadora e o dinheiro que os mais ricos recebem: há 60 anos [os donos de
empresas] ganhavam quatro a seis vezes mais do que os trabalhadores; segundo os
últimos dados que vi, ganham hoje 600 vezes mais do que o trabalhador médio».
É
necessário, portanto, continuar a denunciar a ditadura de uma economia que mata e reconhecer que, enquanto os
lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez
mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de
ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação
financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de
velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às
vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as
suas regras. (92)
A relação da Igreja com os pobres está
cheia de equívocos. Por isso, são indispensáveis alguns esclarecimentos.
Os discípulos de Jesus criticaram a mulher
que derramou um perfume muito precioso sobre a sua cabeça: Para quê este desperdício? – diziam eles – Podia vender-se por bom preço e dar-se o dinheiro aos pobres. Mas o
Senhor disse-lhes: Pobres, sempre os
tereis convosco; mas a mim nem sempre me tereis (Mt 26, 8-13). Esta
expressão tão repetida – pobres sempre
tereis entre vós – parece fazer da pobreza uma fatalidade. O Papa comenta: Aquela
mulher tinha compreendido que Jesus era o Messias humilde e sofredor sobre quem
derramar o seu amor: que consolo aquele unguento sobre a cabeça que, dali a
poucos dias, seria atormentada pelos espinhos! Era um pequeno gesto, mas quem
sofre sabe o quanto é grande mesmo um pequeno sinal de afecto
e quanto alívio pode trazer.
A simplicidade daquele gesto revela algo
grandioso. Nenhuma expressão de carinho, nem mesmo a menor delas, será esquecida,
especialmente se dirigida a quem se encontra na dor, sozinho, necessitado, como
estava o Senhor naquela hora (4).
3. Evoca as Conferências do Episcopado
Latino-Americano que, em Medellín (1968) e Puebla (1979), assumiram a opção preferencial pelos pobres. E
acrescenta: Eu mesmo, missionário no Peru durante tantos anos, devo muito a
este caminho de discernimento eclesial, que o Papa Francisco com sabedoria
soube unir ao de outras Igrejas particulares (89).
A condição
dos pobres representa um grito que, na história da humanidade, interpela
constantemente a nossa vida, as nossas sociedades, os sistemas políticos e
económicos e, sobretudo, a Igreja. No rosto ferido dos pobres encontramos
impresso o sofrimento dos inocentes e, portanto, o próprio sofrimento de
Cristo.
Ao mesmo
tempo, deveríamos falar e, talvez de modo mais acertado, dos inúmeros rostos
dos pobres e da pobreza, uma vez que se trata de um fenómeno multifacetado. Na
verdade, existem muitas formas de pobreza: a daqueles que não têm meios de
subsistência material, a pobreza de quem é marginalizado socialmente e não
possui instrumentos para dar voz à sua dignidade e capacidades, a pobreza moral
e espiritual, a pobreza cultural, aquela de quem se encontra em condições de
fraqueza ou fragilidade seja pessoal seja social, a pobreza de quem não tem direitos,
nem lugar, nem liberdade (9).
Por isso, não devemos baixar a guarda perante este fenómeno.
Preocupam-nos, de modo particular, as graves condições em que vivem muitíssimas
pessoas, devido à escassez de alimentos e água potável. Todos os dias morrem
milhares de pessoas por causas relacionadas com a desnutrição. Mesmo nos países
ricos, as estimativas relativas ao número de pobres não são menos preocupantes.
Na Europa, há cada vez mais famílias que não conseguem chegar ao fim do mês. Em
geral, nota-se que as diferentes manifestações da pobreza aumentaram. Ela já
não se apresenta como uma condição única e homogénea, mas manifesta-se em
múltiplas formas de empobrecimento económico e social, reflectindo o fenómeno
de crescentes desigualdades, mesmo em contextos geralmente prósperos.
Recordemos que duplamente pobres
são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência,
porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos.
E, todavia, também entre elas, encontramos continuamente os mais admiráveis
gestos de heroísmo quotidiano na defesa e cuidado da fragilidade das suas
famílias (12).
Seja qual for a opinião sobre Leão XIV, o
importante é que não se esqueça nem deixe esquecer os pobres[ii].
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