segunda-feira, 14 de julho de 2025

REZAR OU BLASFEMAR? Frei Bento Domingues, O.P. 13 Julho 2025

 

REZAR OU BLASFEMAR?

Frei Bento Domingues, O.P.

                                                                     13 Julho 2025

 

Na Liturgia das Horas, predominam os Salmos rezados ou cantados. É a oração que marca o ritmo do tempo. Não teve sempre a mesma configuração. Por isso, periodicamente, fala-se de reforma litúrgica. No entanto, continuamos a rezar os Salmos que mais parecem blasfémias do que verdadeira oração.

Na Europa, o Movimento Litúrgico surgiu há 200 anos com um desenvolvimento, mais ou menos constante, nomeadamente em algumas abadias beneditinas da Alemanha, Bélgica e França. Em Portugal, o seu débil início pode datar-se no I Congresso Litúrgico Português, realizado em Vila Real de 17 a 19 de Junho de 1926.

A Encíclica Mediator Dei de Pio XII (1947) é considerada a Magna Carta do Movimento litúrgico. Sem dúvida, as reformas de Pio XII contribuíram para uma nova teologia litúrgica e podemos até acrescentar que o II Concílio do Vaticano desembocou numa teologia da liturgia, graças às bases destas reformas lentas e amadurecidas. Toda a Igreja se abria, naqueles anos, às riquezas do mistério pascal, centro da vida da Igreja e de cada cristão.

O I Congresso Internacional de Pastoral litúrgica de Assis ficou célebre pelas palavras proferidas pelo Papa Pio XII, no Discurso final (1956): o Movimento Litúrgico apareceu como um sinal das providenciais disposições divinas no nosso tempo, como uma passagem do Espírito Santo na sua Igreja para aproximar ainda mais as pessoas aos mistérios da fé e às riquezas da graça, que provêm pela participação activa dos fiéis na vida litúrgica e, ainda, pelas palavras de J. A. Jungmann, SJ: A chave da história da liturgia é a pastoral[1].

Entre nós, o Movimento da Pastoral Litúrgica teve algumas expressões, sobretudo, do mosteiro de Singeverga e do Seminário dos Olivais com uma das figuras mais influentes, Monsenhor Pereira dos Reis (1879-1960). Não posso esquecer também a influência do Curso de Teologia de Verão (ISTA), em Fátima, e as iniciativas originais de Frei José Augusto Mourão (1947-2011). Em 1965, o Centro de Estudos Sedes Sapientiae, do convento dos Dominicanos (Fátima), realizou – como lhe competia – um Colóquio de Pastoral Litúrgica, com muita participação de leigos e clero. Aliás, para a Ordem dos Pregadores, a verdadeira pregação alimenta-se da liturgia para todos.

Como apontou o Concílio Vaticano II, a Igreja procura «que os cristãos não entrem no mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas participem na acção sagrada, consciente, activa e piedosamente, por meio de uma boa compreensão dos ritos e orações»[2]. Para isso, é necessário que os textos propostos suscitem o louvor a Deus e despertem a consciência de que são momentos de graça e não momentos de vingança.

Por exemplo, o Salmo 149 (vv.6-9), rezado em Laudes, no Domingo de Páscoa e durante toda a semana pascal, diz o seguinte: Na sua garganta estejam as grandezas de Deus,/ nas suas mãos, espadas de dois gumes,/ para realizarem a vingança contra as nações/ e darem o castigo aos povos;/ para prenderem os seus reis com correntes/ e os seus nobres, com algemas de ferro;/ para lhes aplicarem a sentença registada./ Ele é glória para todos os seus fiéis[3].

O Papa Francisco considerava o terrorismo, a vingança em nome de Deus, como uma blasfémia. Não será este salmo blasfemo? Aliás, o AT tem muitos textos deste teor.

  Encontrei, num estudo de Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017)[4], explicações históricas inovadoras. O uso que farei da sua hipótese só me responsabiliza a mim. Passo a transcrever apenas algumas passagens do seu longo texto.

Começa pela opinião comum: «desde há cerca de três quartos de século que o iaveísmo teve como matriz e, durante muito tempo, como único horizonte Israel ou, melhor dito, as relações entre Iavé e Israel. Nesta perspectiva, a eleição de Israel, a sua libertação do Egipto e a aliança que Iavé fez com ele, são os artigos fundamentais da fé iaveísta. Por influência das religiões estrangeiras, em particular da religião cananeia, o iaveísmo ter-se-ia voltado também para o mundo no seu conjunto e teria visto nele a obra de Iavé. No entanto, só teria assimilado plenamente a fé na obra criadora de Iavé, a partir de cerca de meados do séc. VI a.C., sendo Is 40-55[5], o escrito sacerdotal e vários salmos testemunhos e resultados deste processo de assimilação. Dito isso, a fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e horizonte o cosmos e a humanidade, teria ficado sempre subordinada à fé na sua obra salvífica, que tem por quadro e horizonte a história das relações entre Iavé e Israel.

«A primazia absoluta que se atribui à ideia de história da salvação de Israel, a expensas da solicitude de Deus para com toda a criação, foi alvo de contestações mais ou menos radicais. Os seus autores baseiam-se geralmente numa maior atenção prestada aos escritos sapienciais mais antigos, que a opinião corrente não tem em conta. O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.

«As minhas pesquisas nesta matéria confirmaram, essencialmente, o resultado dos estudos que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo. Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT».

Eu tiro a minha conclusão: o iaveísmo histórico veicula uma teologia nacionalista, por vezes, de uma extrema violência. Coloca na boca de Deus os interesses de um povo contra os outros povos. Este nacionalismo religioso blasfema[6].

Sendo a pastoral a chave da história da liturgia, ela exige que, nas liturgias cristãs sejam utilizados apenas os textos que nos falam do Deus Criador de toda a humanidade, do Deus cósmico, e não de um Deus de vingança. O tempo do Jubileu, dos 10 anos da Laudato Si’ e da fase de implementação do Sínodo, que vai até 2028, será um tempo excelente para levar a cabo esta tarefa pastoral. De tanto se falar de reforma, uma das mais urgentes é esquecida.

 

 



[1] Cf. D. José Manuel Cordeiro, bispo de Bragança-Miranda, Do Movimento Litúrgico à Reforma Litúrgica, Ecclesia, 29.11.2011.

[2] Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 48

[3] Tradução da Conferência Episcopal Portuguesa

[4] Cf. Iavé, Deus de justiça e de bênção, Deus de amor e de salvação em Cadernos ISTA, nº 22 (2009), p. 107-152, especialmente p. 114-115.

[5] Livro do profeta Isaías

[6] Cf. Frei Bento Domingues, O.P. Será a Bíblia Blasfémia? in Publico, 27.12.2015

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