domingo, 24 de agosto de 2025

Para falar, ouvir o Silêncio Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

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Crónicas PÁRA E PENSA

Para falar, ouvir o Silêncio

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia


Mesmo correndo o risco de repetições,

volto ao tema, porque a ameaça temível

da verborreia oca não cessa de

aumentar...

Sim, é verdade. Quando comparamos

o ser humano e os outros animais,

notamos que a linguagem duplamente

articulada é característica decisiva dos

humanos. Foi sobretudo a partir do

século XVIII que se deu essa

compreensão: até encontramos

caricaturas com um missionário no meio

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da selva africana dizendo a um macaco:

“Fala, e eu baptizo-te”. Se falasse, era

humano. Evidentemente, esta fala refere-

se ao que é próprio do ser humano: dupla

articulação da linguagem.

Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e

o mundo abre-se a nós. Falando, damos

razão disto ou daquilo, argumentamos,

comprometemo-nos, formamos

comunidade. Sendo a razão humana

linguisticizada, só podemos compreender-

nos a nós próprios em corpo, com outros

e na História.

O Homem, pelo facto de ser “zôon

lógon échon”, animal que tem lógos

(razão e linguagem), é também “zôon

politikón”, animal social, político,

diferentemente do animal, que é

gregário, e a razão disso é a palavra,

como bem viu Aristóteles, na Política: “A

razão de o Homem ser um ser social,

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mais do que qualquer abelha e qualquer

outro animal gregário, é clara. Só o

Homem, entre os animais, possui a

palavra”. E continua: “A voz é uma

indicação da dor e do prazer; por isso,

têm-na também os outros animais. Pelo

contrário, a palavra existe para

manifestar o conveniente e o

inconveniente bem como o justo e o

injusto. E isto é o próprio dos humanos

face aos outros animais: possuir, de

modo exclusivo, o sentido do bem e do

mal, do justo e do injusto e das demais

apreciações. A participação comunitária

nestas funda a casa familiar e a cidade”.

A linguagem humana não se reduz à

expressão emotiva do prazer e do

desprazer. É capaz de fazer juízos

morais, de distinguir o bem e o mal, o

justo e o injusto, partilhar e debater

publicamente estas apreciações. Deste

modo, a linguagem está na base da ética

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e funda eticamente a pólis (a cidade, no

sentido da vida política).

Percebe-se assim que o ser humano é

constitutivamente dialogante. Aliás, o que

é, logo à partida, pensar senão falar

consigo mesmo? Damos tantas vezes

connosco a falar connosco — isso mesmo,

a dialogar connosco no mais íntimo de

nós, quando precisamos de deliberar e

vamos apresentando razões a favor e

razões contra uma determinada tomada

de posição.

Precisamos de falar connosco. É

preciso falar, dialogar em família. Quando

o diálogo morre numa família, o amor vai

esmorecendo e caminhando também para

a morte. Mas hoje, desgraçadamente,

parece que não há tempo para dialogar

em família, porque o barulho invasor das

televisões— o que lá vai de

comentadores, tantas vezes ignaros! —

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toma conta de tudo. E os telemóveis e

quejandos, meu Deus!... Já se diz que a

“Última Ceia” do século XXI representa

Jesus com as mãos à cabeça, aflito,

porque os Apóstolos estão todos

entretidos a olhar e a “dedar”

entusiasmados nos seus smartphones!...

Por outro lado, quem não faz silêncio,

quem não medita (significativamente,

meditação, medicina e moderação têm a

mesma proveniência: o verbo latino

mederi — a raiz é med: pensar, medir,

julgar, tratar um doente —, que significa

cuidar de, tratar, medicar, curar), quem

não ouve a Palavra originária, que fala no

silêncio, pode produzir tempestades de

palavras, mas elas são ocas ou até

perniciosas. Porque então a palavra já

não existe para “manifestar o

conveniente e o inconveniente bem como

o justo e o injusto”. Ora, não é isso que

tantas vezes se passa nas campanhas

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eleitorais e nos Parlamentos? E também

em muitas homilias de padres e bispos e

discursos de todo o género? Como faz

falta a palavra poética, criadora,

revigoradora e que cura! Ah, sim, pela

palavra, animamos alguém, damos-lhe

força, esperança, abrimos-lhe futuro.

Com uma palavra podemos curar alguém,

mas também podemos “matar”, destruir-

lhe a vida.

Tudo fica abalado, quando os sofistas e

a sofística tomam conta do espaço

público e privado. Nunca mais se vai ao

essencial. E tudo se agrava agora com a

ameaça da banalização total das redes

sociais. Para isso chama a atenção um

comentário aceso e paradigmático do

grande Umberto Eco, pouco antes de

morrer: “As redes sociais concedem o

direito de palavra a legiões de imbecis

que antes falavam só no bar depois de

um copo de vinho, sem danos para a

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colectividade. Eram imediatamente

remetidos ao silêncio enquanto agora têm

o mesmo direito de palavra de um Prémio

Nobel. Assistimos à invasão dos imbecis.”

É, pois, urgente dar espaço e tempo

ao silêncio. E também à oração. Sim, à

oração. Para colocar o ser humano em

contacto com o Mistério último da

realidade e da vida. Dialogar com o mais

fundo da Vida. Estar ligado ao

Fundamento, à Fonte, ao Sentido último.

Para se não perder na dispersão,

completamente desorientado,

desorientada, sem referências, perigo

maior do nosso tempo.

Mas a oração e o que é essencial

exigem o salto para fora do barulho

ensurdecedor. Que se faça silêncio. Num

tempo em que se é invadido e esmagado

pelo tsunami das informações, entrando

no mundo caótico da dispersão e da

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fragmentação, da “agitação paralisante e

da paralisia agitante”, segundo a

expressão do famoso bispo do Porto, D.

António Ferreira Gomes, é urgente parar,

fazer pausa. Para ouvir o silêncio. Sim,

ouvir o silêncio. No meio da vertigem dos

vendavais de palavras em que vivemos,

que nos atordoam e paralisam, ouvir

outra coisa. Ouvir o quê? Isso: o silêncio.

Só depois de ouvir o silêncio será possível

falar, falar com sentido e palavras novas,

seminais e iluminantes, criadoras. De

verdade. Onde se acendem as palavras

novas, seminais, iluminadas e

iluminantes, criadoras, e a Poesia, senão

no silêncio, talvez melhor, na Palavra

originária, criadora, que fala no silêncio?

Ouvir o quê? Ouvir a voz da consciência,

que sussurra ou grita no silêncio. Quem a

ouve? Ouvir o quê? Ouvir na noite o

silêncio da noite e também na noite

contemplar o alfobre das estrelas. Ouvir

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música, a grande música, aquela que diz

o indizível e nos transporta lá, lá, ao

donde somos e para onde

verdadeiramente queremos ir: a nossa

morada. Ouvir o quê? Ouvir a sabedoria.

Sócrates, o filósofo grego, o mártir da

Filosofia, que só sabia que não sabia,

consagrou a vida a confrontar a retórica

sofística com a arrogância da ignorância e

a urgência da busca da verdade. Falava,

mas só depois de ouvir o seu daímon, a

voz do divino e da consciência.

O grande filósofo A. Comte-Sponville é

partidário de um “ateísmo místico”, no

quadro de “uma espiritualidade sem

Deus”. Mas constituinte dessa

espiritualidade é precisamente o silêncio.

“Silêncio do mar. Silêncio do vento.

Silêncio do sábio, mesmo quando fala.

Basta calar-se, ou, melhor, fazer silêncio

em si (calar-se é fácil, fazer silêncio é

outra coisa), para que só haja verdade,

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que todo o discurso supõe, verdade que

os contém a todos e que nenhum

contém. Verdade do silêncio: silêncio da

verdade.”

O problema está em que já Pascal,

nos Pensamentos, se queixava: “Toda a

desgraça dos homens provém de uma só

coisa, que é não serem capazes de

permanecer em repouso num quarto.”

Hoje é ainda pior do que no tempo de

Pascal. Ninguém suporta o silêncio. Sinal

extremo disso: Quem ousa ouvir, em

todo o seu abismo, o silêncio da morte no

silêncio de um rosto morto, que nos cala

e nos abala até à raiz de nós e ao fundo

abissal do ser? No entanto, é em silêncio

que, na noite do mistério, se pode

entrever a luz da verdade do amor e da

morte e do Sentido final. Por isso, é

preciso constantemente pedir com Sophia

de Mello Breyner: “Deixai-me com as

coisas/Fundadas no silêncio.”

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Há um preceito sufi que reza: “Se a

palavra que vais dizer não for mais bela

do que o silêncio, não a digas”. Se este

preceito fosse cumprido, poderia estar a

caminho o casamento feliz, humanizante

e criador da Fala e do Silêncio.

N. B.: Estas crónicas ficam suspensas

até Outubro.

Sábado, 23 de Agosto de 2025

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