domingo, 17 de agosto de 2025

Acontecimento trágico. Temas para reflexão Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

Acontecimento trágico.

Temas para reflexão

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Esta é a notícia trágica: nos últimos cinco anos

suicidaram-se na Índia pelo menos 13 padres

católicos — em média, um a cada seis meses; nos

primeiros cinco meses deste ano de 2025, já se

suicidaram dois... Evidentemente, a situação é

alarmante e obriga a Igreja na Índia, e não só, a

uma reflexão profundíssima.

Não vou entrar directamente no tema. Mas,

aproveitando este acontecimento trágico e o

facto de estarmos ainda no início de um novo

pontificado, deixo aí três momentos de reflexão

inevitável, que não pode de modo nenhum

continuar a ser adiada, tanto mais quanto,

mesmo entre nós, o número de padres está em

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queda vertiginosa, aumentando sem cessar o

número de paróquias sem padre.

Em termos simples.

1. A Igreja não pode impor como lei o que

Jesus entregou à liberdade. Que é que isto quer

dizer? É necessário acabar com a lei do celibato

obrigatório para os padres. Aliás, essa lei é

relativamente recente e, mesmo hoje, há padres

na Igreja católica normalmente com família — é

o caso na Igreja oriental ou de convertidos da

Igreja anglicana. Concretizando, pergunta-se:

porque é que, dentro de determinados critérios,

não hão-de voltar ao ministério padres que

tiveram de abandonar levados pelo amor e

constituindo família?

2. Jesus não discriminou as mulheres.

Assim, a Igreja também não pode discriminá-las

também no que se refere aos ministérios. Isso é

contra a vontade de Jesus e contra os direitos

humanos. Herbert Haag, talvez o maior exegeta

do século XX, a quem devo o favor de ser um

querido amigo, insistiu constantemente — veja-

se o seu livro “A Igreja Católica ainda tem

futuro?” — que nos primeiros séculos houve

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mulheres que presidiram à Eucaristia; então,

porque é que o que foi possível no princípio não

há-de ser possível hoje?

3. Pode escandalizar, mas é um facto: Jesus

foi leigo, não pertencia à classe sacerdotal. Aliás,

nesta linha, o Novo Testamento evitou a palavra

hiereus (sacerdote). Só mais tarde (século III) é

que a Eucaristia, que era um banquete festivo

dos cristãos no qual se fazia memória da Última

Ceia e dos muitos banquetes de e com Jesus, foi

interpretada como sacrifício ritual, dando

origem, consequentemente, aos sacerdotes,

seguindo-se daí que a Igreja ficou dividida em

duas classes: o clero (ai o clericalismo!) e os

leigos.

4. A Igreja vai continuar a precisar de

ministérios para as diversas funções e serviços?

É claro que sim.

Neste contexto, quero chamar a atenção

para que Bento XVI, quando era apenas

professor Joseph Ratzinger, falou em dois tipos

de padres: uns que continuariam na sua vida

normal, na sua família, nas suas profissões, mas

que as comunidades escolheriam, depois de

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provas dadas, para presidir à comunidade,

orientá-la...; outros que, optando livremente

pelo celibato, escolheriam dedicar a sua vida

integralmente à Igreja, estando entre as suas

tarefas a coordenação e formação dos outros

padres...

5. Neste contexto de temas e problemas, é

inevitável e imprescindível rever toda a questão

da formação nos Seminários, com uma vivência

que corre o risco de fugir à realidade como ela é,

com a ausência do universo feminino e de todas

as exigências até económicas da vida actual e

formando jovens para uma vida que vai ser

tantas vezes de exigência e solidão insuportável

numa sociedade que hoje já não é sequer

sociologicamente cristã. Os padres devem

cuidar; e quem cuida deles?...

Sábado, 16 de Agosto de 2025

sábado, 16 de agosto de 2025

“Estar perto de mim é estar perto do Fogo” -P. Manuel João Pereira Correia mccj

 “Estar perto de mim é estar perto do Fogo”

Ano C – Tempo Comum – 20.º Domingo
Lucas 12,49-53: “Vim trazer fogo à terra”

Decididamente o Senhor não nos deixa tranquilos nem mesmo em tempo de férias. Depois dos seus ensinamentos sobre a oração, as riquezas e a vigilância, nos domingos passados, hoje as suas palavras tornam-se ainda mais fortes e desconcertantes, empregando uma linguagem enigmática, que muitas vezes foi mal interpretada. Estamos a caminho de Jerusalém e Jesus coloca diante dos seus discípulos as exigências radicais da sua sequela. Hoje, porém, Jesus fala de si mesmo, da sua missão e do seu destino. Fá-lo através de três imagens: o fogo, o batismo e a divisão. Detenhamo-nos sobretudo na primeira: o fogo.

1. “Vim trazer FOGO à terra
e como gostaria que já estivesse aceso!”

O fascínio do fogo sobre a imaginação humana e o seu valor simbólico são universais. Não nos surpreende, portanto, que a palavra “fogo” (esh em hebraico; pyr em grego, na versão dos LXX) apareça mais de 400 vezes no Antigo Testamento e mais de 70 vezes no Novo Testamento.

O fogo, na Bíblia, é um dos símbolos mais ricos e polivalentes. Está muitas vezes ligado à manifestação da Shekinah (a presença visível de Deus), como na sarça ardente, na coluna de fogo do Êxodo, no monte Sinai e nas visões proféticas. Pode ser instrumento do juízo divino ou representar a purificação espiritual. Ao mesmo tempo, o fogo simboliza paixão e amor intenso. No Novo Testamento, finalmente, torna-se imagem do Espírito Santo.

1. De que fogo fala Jesus? Poderíamos pensar no fogo do Espírito, mas aqui parece tratar-se sobretudo do fogo da sua Palavra, inflamada pela paixão do Amor divino. Os Evangelhos concordam em apresentar Jesus como um homem apaixonado. Ele é o novo Elias, “profeta como um fogo; a sua palavra ardia como uma tocha” (Sir 48,1), devorado pelo zelo divino (cf. 1 Rs 19,10). O zelo de Jesus era o de cumprir a vontade do Pai (Jo 4,34; Lc 2,49). Durante a purificação do Templo os apóstolos lembrar-se-ão da palavra do Salmista: “O zelo da tua casa me consumirá.” (Jo 2,17).

Este fogo passional manifesta-se tanto na ira contra escribas, fariseus e autoridades do Templo, que tinham colonizado a religião, como na compaixão pelas multidões e os doentes, na misericórdia para com os pecadores e no amor pelos seus discípulos, que “amou até ao fim”. É deste fogo que Cristo quer incendiar o mundo!

2. São Paulo recorda-nos que “o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). O que fizemos dele? Ainda arde no nosso coração? Fulgura e inflama à nossa volta? Ou é apenas uma chama vacilante? Vivemos uma vida cristã morna? Que o Senhor não tenha de nos dizer o que disse à Igreja de Laodiceia: “tu não és nem frio nem quente” (Ap 3,15-16).

3. Como aquecer o coração? Aproximando-nos do Fogo! No “Evangelho de Tomé”, um apócrifo do séc. I-II que recolhe muitos ditos atribuídos a Jesus, encontramos estas duas afirmações: “Acendi fogo ao mundo, e vede, eu o guardo até que se inflame” (n. 10); “Quem está perto de mim está perto do fogo, e quem está longe de mim está longe do reino” (n. 82). O Senhor que não veio “apagar o pavio que ainda fumega” (Mt 12,20) é o guardião do Fogo no nosso coração, mas devemos aproximar-nos dele com confiança. O medo de ser “queimado” pelo Fogo divino é bem real. Neste sentido, comenta com uma ironia melancólica o grande teólogo e autor espiritual Von Balthasar:
“Se tens fogo no teu coração, guarda-o bem dentro de um lar incombustível e mantém-no coberto, porque se salta sequer uma faísca e tu não o notas, tornar-te-ás presa das chamas juntamente com a casa. Deus é um fogo devorador. Tem cuidado com a forma como tratas com Ele, para que não comece a exigir e tu já não saibas para onde te conduz. Deus é perigoso. Presta atenção, Ele esconde-se, começa com um pequeno amor, com uma pequena chama e, antes que te apercebas, já te possui inteiro e és prisioneiro.” (O coração do mundo)

4. Outra coisa que pode acontecer é que as cinzas cubram o fogo. É necessário, periodicamente, retirar as cinzas e reavivar o fogo. O verbo grego (anazōpureō) traduzido por “reavivar” (acender de novo, reanimar o fogo sob as cinzas) aparece apenas uma vez no Novo Testamento, precisamente em 2 Tm 1,6, onde São Paulo se dirige ao seu discípulo Timóteo dizendo: “Exorto-te a reavivar o dom de Deus que há em ti”. A que “ventilador” recorrer para reavivar o Fogo no nosso coração? Ao sopro do Espírito Santo! Cada manhã peçamos a Ele que remova as cinzas do dia anterior para que o novo dia seja animado pelo Fogo do Amor.

5. O cristão é chamado a ser uma chama viva. Aliás, uma sarça viva, como aquela que Moisés viu no Sinai. Diz um dito dos antigos Padres do deserto:
“Um discípulo perguntou ao padre José de Panefisi: ‘Que devo fazer ainda?’, depois de lhe ter descrito a sua vida de oração, jejum, meditação e pureza interior. Então o ancião levantou-se, ergueu os braços para o céu, e os seus dedos tornaram-se como dez tochas. ‘Se queres — disse-lhe — torna-te todo em fogo.’”

2. “Tenho um BATISMO com que hei de ser batizado,
e como me angustio até que se cumpra!”

Esta afirmação de Jesus é mais compreensível. Ele refere-se à sua morte na cruz. São João insiste que Jesus “é aquele que veio pela água e pelo sangue” (1 Jo 5,6-8). Jesus mergulhou nas águas do Jordão em solidariedade connosco, mas o “batismo” de sangue fá-lo por nós. Jesus diz que “está apressado” (sentido literal do verbo grego, mais do que “angustiado”) para que isso aconteça.

Há uma ligação entre a imagem do batismo e a do fogo. Jesus fala da necessidade deste batismo para que o Fogo do Amor de Deus se propague no mundo. As autoridades judaicas quiseram apagar o fogo da sua palavra e da sua mensagem, mergulhando Jesus nas águas da morte, mas com a sua ressurreição explodirá o Fogo do Espírito por toda a terra.

3. “Pensais que Eu vim trazer paz à terra?
Não, digo-vos, mas DIVISÃO”

Esta afirmação de Jesus é bem compreensível. A sua palavra incomoda e suscita inquietação, resistências e oposições. Acorda-nos das falsas pazes. Onde quer que Cristo entre, traz confusão e divisão, tanto nas consciências como na sociedade e até na Igreja.

Se a mensagem de Jesus é fogo, o cristão é um incendiário. Incomoda os bem-pensantes e os defensores do status quo. Denuncia os compromissos. Provoca a oposição de quem se despreocupa do bem comum e de quem explora a natureza e os pobres.

O Fogo do Evangelho não nos deixa em paz. Eis porque, sem sequer nos darmos conta, procuramos subterfúgios para o manter um pouco afastado. E, paradoxalmente, o mais sofisticado desses subterfúgios pode ser até a própria oração, diz ainda Von Balthasar nesta sua provocação irónica:
“Se não consegues libertar-te do seu olhar, então reza até que já não o vejas. É possível. Rezar até te livrares d’Ele. Rezar o Deus próximo até o tornar num Deus distante. Sepulta-o de orações, até que Ele, com a sua voz, emudeça.” (O coração do mundo)

P. Manuel João Pereira Correia, mccj



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sábado, 9 de agosto de 2025

 À espera de Deus na noite - P. Manuel João Pereira Correia mccj

 À espera de Deus na noite

Ano C – Tempo Comum – 19.º Domingo
Lucas 12,32-48: “Onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração!”

Nestes domingos estamos a ler o capítulo XII de São Lucas, um entrelaçado de ditos, ensinamentos e breves parábolas, sem uma clara unidade entre si. A alguns de nós que o ouvirem em tempo de férias poderá parecer um Evangelho fora de tempo e fora de lugar. Enquanto procuramos um pouco de descanso e distração, para esquecer as preocupações da vida, esta Palavra surpreende-nos, propondo-nos temas demasiado sérios e incómodos. Talvez por isso o Senhor nos diga, antes de mais: “Não temas, pequeno rebanho, porque ao vosso Pai agradou dar-vos o Reino”.

Vigiando na noite

A passagem deste domingo tem uma tonalidade de espera apocalíptica, apresentando a vida cristã como a espera do regresso do Senhor na “noite”. Três vezes é repetido o convite a estar preparado: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as lâmpadas”“Estejam preparados, porque, na hora em que não imaginam, vem o Filho do Homem”. O convite de Jesus a vigiar para não ser surpreendido impreparado à sua chegada é ilustrado por três breves comparações: a espera do senhor que partiu para um banquete de casamento, o ladrão e o administrador da casa.

A noite que se alterna com o dia é uma metáfora forte da vida. Quantas vezes nos parece que estamos na escuridão, sem saber para onde ir, assoberbados pelos problemas, com ameaças que pairam sobre a nossa vida… Ou a viver tempos obscurecidos pela guerra e pela injustiça, pela incerteza quanto ao futuro… A Palavra deste domingo ajuda-nos a compreender e a viver nesta “noite”.

A noite do Êxodo

A primeira leitura (Sabedoria 18,6-9) apresenta esta noite como a noite do Êxodo, quando todo o povo em espera “estabeleceu, de comum acordo, esta lei divina: partilhar, da mesma forma, sucessos e perigos”.

A vida cristã é um êxodo, um caminho de libertação, muitas vezes marcado por tentações, pela incerteza nas escolhas feitas, pela nostalgia do passado… Torna-se, muitas vezes, uma longa noite. Tínhamos imaginado uma travessia mais rápida e menos cansativa, e que estaríamos depressa instalados na Terra Prometida. Chegados ao Sinai, Deus disse-nos: “Vós mesmos vistes o que fiz ao Egipto e como vos levei sobre asas de águia e vos trouxe a mim” (Ex 19,4). Pensávamos, portanto, que o pior já tinha passado. Mas o Senhor entendeu que ainda não estávamos prontos para entrar e que eram precisos “quarenta anos” de deserto para libertar o nosso coração das sobreestruturas mentais e dos hábitos que nos mantinham no “Egipto”, na “casa da escravidão”. Aí ainda estavam os nossos tesouros. E, “onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”.

Eis porque a noite do nosso êxodo será ainda longa. Gritaremos também nós à sentinela do profeta Isaías: “Sentinela, quanto falta para acabar a noite?” E a sentinela responder-nos-á, algo enigmática: “Vem a manhã, mas também a noite; se quereis perguntar, perguntai; convertei-vos, vinde!” (Is 21,11-12). Cabe a cada um de nós escutar e interpretar esta Voz!

A noite da fé

A segunda leitura (Hebreus 11,1-19) apresenta a noite do crente como a noite da fé: “Na fé morreram todos estes, sem terem obtido os bens prometidos, mas vendo-os e saudando-os de longe, declarando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra”.

A definição de fé que encontramos no início da leitura é surpreendente: “A fé é o fundamento do que se espera e a prova do que não se vê”. Por isso, a noite é o âmbito da fé. Mesmo sendo filhos da luz, “caminhamos na fé e não na visão”(2Cor 5,7). É preciso aceitar e atravessar a noite da fé para aprender a “esperar contra toda a esperança” (Rm 4,18).

A fé, para quem acredita, é uma escolha radical de vida. Significa confiar numa promessa de Deus, como Abraão. Há, de facto, duas maneiras de planear a vida: segundo um projeto pessoal ou segundo uma vocação orientada por uma promessa de Deus. Projeto provém do latim proiectum (pro-icere, lançar algo para a frente), enquanto promessa provém de promissa (pro-mittere, enviar para a frente). O projeto planeio-o eu; a promessa é feita por Deus. O que está a orientar a minha vida: um projeto meu ou uma promessa de Deus?

A noite da vigília no serviço

Na passagem do Evangelho, Jesus fala três vezes de bem-aventurança: “Felizes os servos a quem o senhor, ao chegar, encontrar vigilantes”“E se, chegando à meia-noite ou antes do amanhecer, os encontrar assim, felizes serão!”“Feliz aquele servo a quem o senhor, ao chegar, encontrar a agir assim”.

No Evangelho de Lucas, o uso das palavras “feliz” e “felizes” (do grego μακάριος – makários, isto é, “feliz”, “abençoado”, “afortunado”) aparece em vários contextos. Jesus veio revelar-nos o caminho da felicidade. É o caminho que conduz ao Reino, a meta de todo o homem. Trata-se de um caminho que permanece ainda hoje escondido e misterioso para muitos, crentes e não crentes. Apresenta-se de tal forma contra-intuitivo que chega a parecer uma farsa. Mas tornou-se credível porque Jesus e outros que ousaram confiar nele o encarnaram. O Evangelho recolheu o traçado e tornou-se o guia para as mulheres e homens do Caminho, como os Atos dos Apóstolos definem os cristãos.

O Caminho é único: é Cristo, mas podemos falar de trilhos diferentes? Talvez sim. Alguns parecem-nos mais árduos do que outros. Certos, não nos sentimos capazes de os percorrer. Pensamos na santidade de certos cristãos ou na “santidade” laica de certas pessoas que se dedicam heroicamente a aliviar o sofrimento. Inalcançáveis. Pois bem, o trilho que Jesus nos propõe hoje parece-me acessível a todos. Certamente, é sempre para percorrer na noite do êxodo e da fé, mas, ainda assim, ao alcance dos pequenos, dos servos. Não temos de fazer coisas extraordinárias, mas simplesmente permanecer despertos e fazer aquilo que é o nosso dever: servir! Um serviço humilde, escondido, talvez até banal, que não será publicitado nas redes sociais nem procurará likes, mas que é dado como adquirido: “Somos servos inúteis. Fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17,10). Não vos parece esta uma versão do “pequeno caminho” do “caminho do amor simples e confiante”, ao alcance de todos, traçado por Santa Teresa do Menino Jesus?

P. Manuel João Pereira Correia mccj
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domingo, 3 de agosto de 2025

O que farei? - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 O que farei?

Ano C – 18.º Domingo do Tempo Comum
Lucas 12,13-21: “Evitem toda a ganância”

Estamos a caminhar com Jesus, guiados pelo Evangelho de Lucas. Vamos a caminho de Jerusalém. Tempo antes, Jesus, “quando se completaram os dias em que devia ser elevado ao céu, tomou a decisão firme de se dirigir a Jerusalém” (Lc 9,51). Pelo caminho, o Senhor encontra pessoas e ensina. No domingo passado, Jesus falou-nos da oração. Hoje falar-nos-á do uso dos bens, um tema muito caro a São Lucas.

1. “Alguém da multidão disse a Jesus”

Tudo começa com a intervenção de alguém da multidão que pede a Jesus que diga ao seu irmão mais velho para repartir com ele a herança. Jesus responde, algo incomodado: “Homem, quem me fez juiz ou árbitro entre vós?”.

Eis um homem qualquer! Quando no Evangelho aparece alguém sem nome, devemos estar atentos: provavelmente refere-se a nós. De facto, este homem representa muitos de nós (e ao dizer “nós”, penso também em mim!). Jesus acabara de dizer: “Não se vendem cinco passarinhos por dois asses? No entanto, nem um só deles é esquecido diante de Deus. Até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não temais: valeis mais do que muitos passarinhos!” (Lc 12,6-7). Mas este homem pensava noutra coisa. Estava preocupado porque o irmão mais velho tinha ficado com a herança e não lhe queria dar a parte dos bens móveis que lhe pertenciam.

O mesmo acontece muitas vezes connosco. Jesus, a Palavra, fala, mas o nosso pensamento está noutro lugar. Estamos presos às nossas preocupações e gostaríamos que o Senhor, em vez de nos falar de outras coisas, resolvesse os nossos problemas!

Senhor, quando me disponho a escutar-te, que eu esvazie o meu coração de todos os problemas e preocupações, de todos os sentimentos e emoções, de todos os pensamentos e desejos, para dar lugar à tua Palavra!

Alguém da multidão! Jesus estava rodeado pelos seus discípulos e por milhares de pessoas (cf. Lc 12,1). Aquele homem estava no meio da multidão. A posição deste homem é significativa. Ele faz parte da multidão. Faz-me pensar que a multidão é o “lugar” de muitos cristãos hoje. Sim, simpatizam com Jesus, mas mantêm uma certa distância d’Ele e dos seus ensinamentos. A proximidade é demasiado comprometida numa sociedade cada vez mais indiferente, senão abertamente hostil à fé cristã. Estar próximo de Cristo, mesmo apenas na nossa maneira de falar, pode colocar-nos no embaraço de Pedro quando Jesus foi julgado: “Este também estava com ele, pois também é galileu” (Lc 22,59).

Senhor, tu chamaste-me da multidão pelo meu nome (Lc 6,13-16). Dá-me, Senhor, o Espírito de fortaleza, para que eu vença o medo e a cobardia sempre que for chamado a testemunhar o teu nome!

2. “Um homem rico”

Como profeta, Jesus coloca-se imediatamente noutro plano e adverte os seus ouvintes sobre o perigo das riquezas: “Tende cuidado e guardai-vos de toda a ganância, pois, ainda que alguém tenha abundância, a sua vida não depende dos seus bens”.
A riqueza, o dinheiro, os bens são talvez o maior ídolo deste mundo porque nos dão uma sensação de segurança e de poder conseguir tudo, inclusive a felicidade. Não por acaso, São Paulo, na segunda leitura (Colossenses 3,1-11), adverte os cristãos contra “essa ganância, que é uma idolatria”. A este ídolo são sacrificadas diariamente milhares de vidas no altar do lucro.

Um homem rico e afortunado! Para aprofundar o seu ensinamento, Jesus conta a parábola de um homem rico que teve a sorte de colher uma colheita excecional. Quem é ele? À primeira vista, não se trata de nós. Mas, se olharmos bem, talvez o encontremos encolhido no quarto dos desejos do nosso coração. É difícil encontrar alguém que não deseje ser rico!

Que farei? Farei assim! Este homem, porém, tem um problema: os seus celeiros tornam-se demasiado pequenos para guardar tantos bens e pergunta-se: “Que farei, pois não tenho onde armazenar a minha colheita?”. Mas logo encontra a solução: “Farei assim – disse –: destruirei os meus celeiros e construirei outros maiores”. É um homem prático e decidido, como o administrador desonesto de outra parábola de Jesus (cf. Lc 16,1-8).

Esta pergunta “que farei?” é recorrente nos escritos de São Lucas (cf. também 3,10.12.14; 16,3.4; At 2,37; 16,30). É uma pergunta que deveríamos fazer mais vezes: ela discerne o “que fazer”, em vez de deixar que as situações se deteriorem ou que outros decidam por nós.

O que nos impressiona neste homem é o seu egocentrismo. Para ele, só existe o “eu”: “eu destruirei... construirei... recolherei...” Ele e os seus bens: “a minha colheita... os meus celeiros... os meus bens...”. Nenhum de nós pensaria assim. Talvez dissessemos:
– “Se eu fosse rico, saberia o que fazer: ajudaria os meus, naturalmente, e os pobres!”.
– Mas tu és rico! Pensa em quantos talentos o Senhor te confiou: que uso estás a fazer deles?

3. “Insensato!”

O homem rico da parábola não tem interlocutor. Ele “refletia consigo mesmo” e falava apenas consigo: “Minha alma, tens muitos bens em reserva para muitos anos; descansa, come, bebe, diverte-te!”. Neste momento, porém, surge um interlocutor inesperado: “Mas Deus disse-lhe: ‘Insensato, esta noite mesmo te será pedida a tua vida. E o que acumulaste, para quem será?’”.
Será Deus um desmancha-prazeres? Não, é simplesmente a voz da consciência que nos chama à realidade da vida, como ouvíamos do Qoélet na primeira leitura: “Vaidade das vaidades: tudo é vaidade!”.

Mantenhamos a nossa consciência desperta, deixemo-la gritar: “Insensato!”, para que não tenha de o fazer, no fim, no momento do balanço da nossa vida: “Insensato, que fizeste da tua vida?”

Proposta de vida

Jesus termina a parábola dizendo: “Assim acontece com quem acumula tesouros para si, mas não é rico diante de Deus”. Noutra ocasião, na conclusão da parábola do administrador desonesto, diz: “E eu digo-vos: fazei amigos com o dinheiro injusto, para que, quando ele faltar, vos recebam nas moradas eternas” (Lc 16,9). E São Basílio diz ao homem rico e a nós: “Se quiseres, tens celeiros: são as casas dos pobres”.

Senhor, conscientes da nossa frequente insensatez na vida, pedimos-te humildemente como o Salmista: “Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos um coração sábio” (Salmo 89).

P. Manuel João Pereira Correia, mccj


sábado, 2 de agosto de 2025

humor, o riso e Deus - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O humor, o riso e Deus

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Porque nos tribunais portugueses decorre

um processo por causa de um vídeo

humorístico, ouso voltar ao tema em

epígrafe, mesmo correndo o risco de aqui e

ali me repetir.

Sobre Deus que sabemos nós? Ele é

infinito e está para lá de tudo o que possamos

pensar ou dizer. O que sabemos dEle

sabemo-lo sobretudo através de Jesus, a sua

imagem no mundo.

Através de Jesus, sabemos que Deus é,

como se lê na Primeira Carta de São João,

Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho

segundo São João também diz que Deus é

Logos: Razão, Inteligência e que tudo foi

criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido

2

de humor, pois o humor é sinal de

inteligência. Não é o humor fino revelador de

uma inteligência fina? Mas o que estamos a

dizer, quando dizemos isto acerca de Deus?

Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis,

há uma passo belíssimo em conexão com o

riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando

ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob

a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua

mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda.

Um deles disse: Passarei novamente pela tua

casa dentro de um ano, nesta mesma época,

e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora,

Sara estava a escutar à entrada da tenda.

Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não

estava em idade de ter filhos. Sara riu-se

consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou,

poderei ainda ter esta alegria, sendo também

velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o

Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e

realizou nela o que lhe prometera. Sara

concebeu e, na data marcada por Deus, deu

um filho a Abraão, quando este era já velho.

Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o

nome de Isaac. Abraão tinha cem anos

quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse:

Deus concedeu-me uma alegria, e todos

quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”

3

Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para

dentro: como é possível, velha, ter um filho?

Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em

hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso

um riso intenso de alegria: Isaac também

quer dizer “aquele que traz alegria”.

De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou:

chorou pela morte do seu amigo Lázaro,

também sobre Jerusalém. Não se diz que riu.

Mas já Santo Tomás de Aquino observou que

é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é

homem e rir é característica essencial do ser

humano. Jesus participou em festas de

casamento e alguém imagina uma festa de

casamento sem risos, sem piadas festivas? O

Evangelho testemunha que Jesus

experienciou o melhor sentimento face à vida

e ao seu milagre: o do maravilhamento e do

contentamento.

O humor e o riso, repito, são um sinal

evidente de inteligência, desdramatizam a

vida, permitem viver de modo sadio consigo

próprio, fazem bem à saúde, abrem

transcendências. A Igreja está, ou deveria

estar, atravessada pelo bom humor, porque

“um santo triste é um triste santo”. E há

piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo

castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se

4

os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso.

Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica

mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura!

O que não se pode é cair na boçalidade, pois

esta apenas significa falta de inteligência. O

riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no

mais alto trono do mundo, está-se sentado

sobre o cu”, escreveu Montaigne. Umberto

Eco, o inesquecível autor de O nome da rosa,

esse desabafou: “Aprendi que o riso é a única

forma de lidar com a absurdidade da

existência”.

Na Idade Média, realizava-se a chamada

Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder

eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o

grau mais baixo da hierarquia, era vestido de

bispo, colocado em cima de um burro,

entrava na igreja com a face voltada para a

cauda, de costas para o altar. Em momentos

fundamentais da liturgia, o celebrante e o

povo zurravam. Na transmissão simbólica do

báculo episcopal, rezava-se o Magnificat

naquele passo: “e Deus derrubou os

poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a

pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de

Paris, justificou-a com a necessidade de dar

expansão à crítica, voltando depois a ordem.

5

A propósito da força crítica da piada e da

caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e

todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho

de Jesus, no fausto de uma procissão com

cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores...

Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e,

estarrecido, chamou Jesus, que olhou e

apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro,

que começámos aquilo, entrando eu de burro

em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-

te?” Por isso, respondi uma vez a uma

jornalista: “Não. Jesus não entraria no

Vaticano, porque não o deixariam entrar.”

Francisco socorria-se também do bom

humor, e todos os dias rezava a Oração do

bom humor, oração atribuída a São Tomás

Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que

não se esqueceu de levar a gorjeta para o

carrasco que ia decapitá-lo. Francisco

recomendou-a também aos membros da

Cúria Romana, onde tinha tantos adversários

e até inimigos, a quem falta o bom humor

divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e

também algo para digerir./ Dá-me um corpo

saudável e o bom humor necessário para

mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe

valorizar tudo o que é bom/ e que não se

amedronta facilmente diante do mal, /mas,

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pelo contrário, encontra os meios para voltar

a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-

me, Senhor, uma alma/ que não conhece o

tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as

lamentações,/ nem os excessos de stress por

causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me,

Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-

me a graça de ser capaz de uma boa piada,

uma boa piada para descobrir na vida um

pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os

outros./ Ámen.”

Em Junho de 2024, Francisco fez questão

de encontrar-se com mais de 100 humoristas

de todo o mundo, incluindo os portugueses

Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e

Maria Rueff, afirmando que é “importante

fazer rir os outros, pois isso pode ajudar as

pessoas...” “É possível rir também de Deus? É

claro que sim, isto não é blasfémia, assim

como brincamos e fazemos piadas com as

pessoas que amamos. A tradição sapiencial e

literária hebraica é mestra nisso. Pode ser

feito, mas sem ofender os sentimentos

religiosos dos fiéis, especialmente dos

pobres.” Pessoalmente, acrescento: afinal,

não é de Deus que rimos, mas das nossas

imagens de Deus, tantas vezes ridículas (a

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palavra ridículo vem do latim ridere (rir) e

quer dizer precisamente o que provoca riso).

Fiquei encantado, quando li Francisco a

dizer que, no caso de alguém se sentir numa

situação de algum abatimento, fizesse como

ele: caretas frente ao espelho... Estou

convicto de que isso lhe aconteceu várias

vezes, para poder superar tantos dissabores

por causa dos seus adversários e até inimigos

no Vaticano e não só, como ficou dito...

Sábado, 26 de Julho de 2025

O Cristo Pensador - Anselmo Borges Padre e Professor de Filosofia

 Crónicas PÁRA E PENSA

O Cristo Pensador

Anselmo Borges

Padre e Professor de Filosofia

Karl Rahner, talvez o maior teólogo

católico do século XX — tenho a honra de

ter sido seu aluno —, deixou escapar um

dia, numa aula, uma daquelas observações

que nunca mais se esquecem: na Igreja

católica é obrigatório confessar os pecados

graves e mortais, mas não estava a ver que

algum bispo ou padre ou superior religioso,

ministro ou professor católico se tenha

confessado do pecado grave e,

frequentemente, mortal, da ignorância

culpada, da incompetência fatal, da

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inteligência irresponsavelmente

menorizada.

Em geral, nas igrejas, faz-se muito

pouco apelo à razão, à reflexão crítica, à

pergunta. Como se a fé não tivesse de

conviver com a inteligência, com a dúvida e

com a pergunta. Os cristãos — mas isso

acontece em todas as religiões — parece que

ficam tolhidos na sua capacidade de

perguntar. No entanto, Jesus morreu a rezar

esta pergunta infinita que atravessa os

séculos: “Meu Deus, meu Deus, porque me

abandonaste?” e, perto de nós, Martin

Heidegger, um dos filósofos mais influentes

do século XX, escreveu que “a pergunta é a

piedade do pensamento”.

Na Igreja, valoriza-se a obediência,

referindo constantemente aquele passo de

São Paulo: “Cristo obedeceu até à morte e

morte de cruz”. Mas quase nunca se explica

o que é essa obediência de Cristo, ocultando

3

que, para obedecer a Deus e ao que Deus

quer — dignidade, futuro, fraternidade,

liberdade —, teve de desobedecer aos

opressores, nomeadamente a uma religião

que, em vez de libertar, oprimia.

Tanto entre os crentes como entre os

ateus e os sem religião, não faltam os que

sabem, com saber certo, sem qualquer

dúvida nem hesitação, o que Deus é, em

que consiste a vontade divina para cada

pessoa, qual é o sentido da história e do

mundo. Entronizados no poder, definem

dogmas, estabelecem normas e mandam

com soberania inquestionável.

Perguntar vem do latim percontari, que,

por sua vez, terá na sua base contus, vara

comprida. Então, perguntar,

etimologicamente, quer dizer examinar o

fundo de um rio ou de um tanque com um

bastão e, por extensão, sondar o interior do

homem e da realidade.

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Só o Homem pergunta e pensa. Um

animal com a mão encostada à face ou a

face entre as mãos, a cabeça inclinada e

absorto, é um ser humano que pensa: tenta

ver o seu interior e o mais fundo de tudo.

Nenhum outro animal pensa nem se

examina nem examina as consequências dos

seus actos nem pergunta. O Homem

pergunta, e a sua pergunta não tem limites.

E é assim que, nesse seu perguntar, pode

surgir a questão da transcendência e de

Deus. Como escreveu Theodor Adorno, da

Escola Crítica de Frankfurt, “o pensamento

que se não decapita desemboca na

transcendência”.

Por tudo isto, é uma surpresa boa

encontrar em Vilnius algo típico da

Lituânia, talvez porque é um povo que

sofreu demasiado: umas pequenas estátuas

de Cristo a pensar — o Cristo Pensador.

Trouxe uma que me acompanha.

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Pensar vem do latim pensare, com o

significado de ponderar, examinar, pesar

argumentos e razões. Pensar pode ter

também o significado de aplicar o curativo,

os remédios necessários — aí está o penso

para curativo. E é assim que, em português,

pesar também quer dizer solidariedade com

a tristeza de alguém que sofre.

Neste quadro, os incontáveis horrores

que nos rodeiam obrigam a pensar. Mas,

por outro lado, também por influência dos

smartphones, o QI está a cair. E, no que à

Teologia se refere, torna-se cada vez mais

acentuada a constatação de Hans Küng, um

dos últimos maiores teólogos, tão

maltratado pela Igreja oficial — partiu a 6

de Abril de 2021: “O estudo da teologia

católica é hoje escassamente atractivo para

mentes livres e criativas.”

Sábado, 19 de Julho de 2025

domingo, 27 de julho de 2025

UMA MULHER QUE COMPREENDE TUDO 27 Julho 2025 Frei Bento Domingues, O.P.

 

UMA MULHER QUE COMPREENDE TUDO

27 Julho 2025

Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No passado dia 22, ocorreu a festa de Maria Madalena, a Apóstola dos Apóstolos, a primeira festa depois da morte do Papa Francisco que instituiu a sua celebração litúrgica, passando a figurar no Calendário Romano Geral, ao mesmo título que as festas dos Apóstolos. E parece que Leão XIV não o quer atraiçoar.

O Papa Francisco não conseguiu derrubar os muros construídos, expressamente, para impedir a ordenação das mulheres. Gostava de fazer pontes e acabar com os muros, mas aí, teve de parar. Tinha de contar com a afirmação de João Paulo II[1] e Ratzinger que se atreveram a decidir, de forma insólita, o futuro. Portanto, a sua escolha ficava limitada: abater esse muro ou provocar, na Igreja, um cisma que não podia desejar. Por essa razão, sentiu-se coagido a dizer algo que não pensava: esse problema está resolvido. Temos razões para dizer que não foi das melhores opções da sua vida.

Na Igreja não se devia privilegiar nem homens nem mulheres devido à originalidade própria de cada um. Quando se privilegia alguém, excluem-se os outros. O sentido do privilégio é não suportar que os outros possam ser como nós. A paixão pela originalidade de cada um não exclui ninguém. O gosto do privilégio é não se contentar de ser como é a sua própria condição. Esse gosto precisa de encontrar algo que não os coloca em comunhão com os outros, mas que os separa.

A argumentação que exclui as mulheres dos ministérios ordenados não me parece que tenha qualquer consistência. De facto, os textos do Novo Testamento (NT) não dizem que Jesus escolheu mulheres. Estamos a exigir dos textos aquilo de que eles não falam, mas atestam que foram elas que escolheram o Nazareno, que o seguiram e serviram e não foram excluídas. É importante não esquecer um pormenor que S. Mateus nos deixou, no seu estilo: sem contar mulheres e crianças (Mt 14, 21; 15, 38).

Um dos argumentos, para negar a Ordenação às mulheres, é dizerem que elas não participaram na Última Ceia, uma ceia religiosa, sim, mas também familiar e não necessariamente cultual. A narrativa pretende realçar a Ceia como a grande refeição de toda a sua família.

Os textos dizem, expressamente, quem era da família de Jesus. Quando lhe disseram que a sua mãe e os seus irmãos que estavam lá fora e queriam falar com ele, respondeu desta forma que pode parecer enigmática: a Minha mãe e os meus irmãos são aqueles que estão a ouvir a palavra de Deus e a põem em prática[2]. Todo esse mundo é a minha família.

Sabemos, no entanto, pelo NT, que Jesus ressuscitado ordenou Maria Madalena a evangelizar os discípulos, os Apóstolos, que tinham dispersado, perante a crucifixão do Mestre. Tornou-se a verdadeira Evangelizadora dos Apóstolos.

Segundo o cenário dos Evangelhos, no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao túmulo logo de manhã, ainda escuro, e viu retirada a pedra que o tapava. Maria estava junto ao túmulo, da parte de fora, a chorar. Sem parar de chorar, debruçou-se para dentro do túmulo e contemplou dois anjos vestidos de branco, sentados onde tinha estado o corpo de Jesus, um à cabeceira e o outro aos pés. Perguntaram-lhe: Mulher, porque choras? E ela respondeu: Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Dito isto, voltou-se para trás e viu Jesus, de pé, mas não se dava conta que era Ele. E Jesus disse-lhe: Mulher, porque choras? Quem procuras? Ela, pensando que era o encarregado do horto, disse-lhe: Senhor, se foste tu que o tiraste, diz-me onde o puseste, que eu vou buscá-loRespondeu-lhe Jesus: Maria! Ela, aproximando-se, exclamou em hebraico: Rabbuni! – que quer dizer: MestreJesus disse-lhe: Não me detenhas, pois ainda não subi para o Pai; mas vai ter com os meus irmãos e diz-lhes: 'Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus.' Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos: Vi o Senhor! E contou o que Ele lhe tinha dito[3].

Há uma cegueira cultural que não nos deixa ver o essencial dos textos. Por exemplo, o Evangelho proclamado no passado Domingo, fala de duas mulheres que acolheram, na sua casa, Jesus e o seu grupo. Eram duas mulheres que representavam dois mundos. Marta era do mundo antigo que fazia o que sempre se exigiu das mulheres, as tarefas da casa. Maria é a mulher que descobriu Jesus e a sua igualdade com os homens que é escutar a palavra de Deus e, neste caso, a palavra de Jesus.

Jesus tomou partido: Marta, Marta, tu inquietas-te e agitas-te com muitas coisas. No entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte que não lhe será tirada[4]. É uma mulher que escolheu ser discípula e Jesus elogiou-a pela escolha que fez.

Hoje, há muitas mulheres, teólogas e não só, para quem os textos dos Evangelhos testemunham que Jesus tratou as mulheres do mesmo jeito que tratava os homens. Têm dificuldade em aceitar a descriminação que recai sobre elas na Igreja.

A situação mudou, está em mudança, e não são apenas as mulheres que reclamam. Entre nós, Frederico Lourenço, um grande especialista da literatura grega e latina, tradutor da Bíblia grega e dos Evangelhos Apócrifos, documentou a importância das mulheres na vida de Jesus, sobretudo a de Maria Madalena, no texto retirado do Facebook | mural de Frederico Lourenço, 2022.

É um bom texto para conhecer muitos aspectos da longa história da descriminação da mulher na sociedade e na Igreja. No entanto, o que hoje pode ser lido, de forma límpida, nos Evangelhos, é que foi Jesus que ordenou Maria Madalena para transmitir e testemunhar, aos reconhecidos Apóstolos, a Ressurreição de Cristo, fundamento da fé da Igreja.

Frederico Lourenço, entre vários textos refere um apócrifo, encontrado no Egipto em 1945, que descreve Maria Madalena como uma mulher que compreende tudo, porque compreendeu o essencial de toda a vida humana. O que é ver nela algo de bem diferente, não só do cliché da prostituta arrependida, mas da grande figura do Novo Testamento.

O teólogo dominicano, professor de Oxford, cardeal sem pompa eclesiástica, também se deteve sobre Maria Madalena à procura na escuridão. Todos os relatos da ressurreição estão repletos de questões. Por duas vezes, perguntam a Maria Madalena porque está a chorar. Ela pergunta onde puseram o corpo. A ressurreição irrompe nas nossas vidas não como uma afirmação crua dos factos, mas com questões que nos interpelam.

Se ouvirmos as questões uns dos outros com respeito e sem medo, encontraremos uma nova forma de viver no Espírito. Maria ouve o seu nome: Maria! E responde Rabbuni! Mestre! É apropriado que ela, cuja vida é movida por um amor compassivo e terno, tenha o seu vazio preenchido com o seu próprio nome. Ela procurava um cadáver, mas encontrou mais do que poderia sonhar: o amor que está vivo para sempre[5].

Eis um livro verdadeiramente apaixonante! Boas Férias

 

 



[1] Ordinatio sacerdotalis, 1994

[2] Lc 8,19-21; Mc 3, 35-41; Mt 12, 46-50

[3] Jo 20, 1. 11-18

[4] Lc 10,38-42

[5] Cf. Timothy Radcliffe, Surpreendidos pela Esperança, Paulinas, 2025, pp.12-15