sábado, 4 de janeiro de 2025

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER Frei Bento Domingues, O.P. 29 Dezembro 2024

 

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER

Frei Bento Domingues, O.P.

29 Dezembro 2024

 

1. Em 2025, a Igreja Católica celebra o Jubileu (o Ano Santo). Não é um acontecimento inédito. Já o Antigo Testamento fala de um Ano Jubilar de 50 em 50 anos[1], um tempo que devia ser de clemência e de libertação para todo o povo, a fim de restabelecer a justiça de Deus nos diferentes âmbitos da vida: no uso da terra, na posse dos bens, na relação com o próximo, sobretudo os mais pobres e os que tinham caído em desgraça[2]. Seria importante, no entanto, perguntar o que foi feito dessa bela instituição.

O Papa Bonifácio VIII instituiu o chamado Ano Santo, em 1300. O Papa Francisco já estabeleceu um especial programa litúrgico, em Roma, para os peregrinos, dos seus espaços mais emblemáticos, procurando, assim, superar o mero sentido turístico.

É de destacar um gesto original: no dia 26, o Papa foi à prisão Rebibbia, em Roma, como um peregrino de esperança, a mesma esperança à qual o Jubileu 2025 é dedicado, abrindo a Porta nessa prisão, inaugurando nela o Ano Santo.

O texto para o Dia Mundial da Paz 2025 é uma síntese notável, assumindo não só o que escreveram os seus antecessores, remontando à célebre Pacem in Terris (1963), como aponta o verdadeiro conteúdo das práticas do Ano Santo.

Também nos dias de hoje, o Jubileu devia ser um acontecimento que nos impelisse a procurar a justiça libertadora de Deus em toda a terra. Gostaríamos de estar atentos ao desesperado grito de ajuda. Sentimo-nos chamados a unir-nos à voz que denuncia tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo. Estas injustiças assumem, por vezes, o aspecto daquilo a que João Paulo II definiu como estruturas de pecado, porque não se devem apenas à iniquidade de alguns, mas estão, por assim dizer, enraizadas e contam com uma cumplicidade generalizada.

Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas acções que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade. Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistémicos, distintos, mas interligados, que afligem o nosso planeta. Refiro-me, em particular, às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são factores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade.

No início deste ano, Bergoglio incita-nos a escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, todos nós, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus. Alguns actos esporádicos de filantropia não serão suficientes. Em vez disso, são necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura.

2. Razão tinha S. Basílio de Cesareia (século IV) que perguntava: mas que coisas são tuas? De onde as tiraste para as incluir na tua vida? […] Não saíste totalmente nu do ventre da tua mãe? Não voltarás, de novo, nu para a terra? De onde vem o que tens agora? Estas interrogações continuam a ser essenciais.

Como diz Francisco, tal como as elites do tempo de Jesus, que se aproveitavam do sofrimento dos mais pobres, também hoje, na aldeia global interligada, o sistema internacional, se não for alimentado por uma lógica de solidariedade e interdependência, gera injustiças que, exacerbadas pela corrupção, aprisionam os países pobres. A lógica da exploração do devedor também descreve sucintamente a actual crise da dívida, que aflige vários países.

Não nos devemos cansar de repetir que a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar, indiscriminadamente, os recursos humanos e naturais dos países mais pobres, para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados.

A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda. Este Ano Jubilar convida a comunidade internacional a actuar no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo. É um apelo à solidariedade, mas sobretudo à justiça.

3. A dignidade da vida humana tem de ser respeitada e promovida em todas as suas etapas. Cada pessoa tem o direito de olhar o futuro com esperança, procurando o desenvolvimento e a felicidade de toda a família. Um gesto que deve marcar este Ano Jubilar é a eliminação da pena de morte em todas as nações. É, aliás, uma punição tão radical que aniquila toda a esperança humana de perdão e de renovação.

Neste tempo marcado pelas guerras em 22 países, o Papa Francisco propõe que, pelo menos, uma percentagem fixa do dinheiro gasto, em armamento, seja utilizada para a criação de um fundo mundial que elimine, definitivamente, a fome e facilite a realização de atividades educativas, nos países mais pobres. Devemos tentar eliminar qualquer pretexto que possa levar os jovens a imaginar o seu futuro sem esperança, ou como uma expectativa de vingar o sangue derramado por seus entes queridos. O futuro é um dom que permite ultrapassar os erros do passado e construir novos caminhos de paz. A guerra é sempre uma derrota, sempre! É fonte de riqueza para poucos e fonte de morte para povos inteiros.

Aqueles que empreenderem, através dos gestos propostos, o caminho da esperança, poderão ver cada vez mais próxima a tão desejada meta da paz. O Salmista confirma-nos nesta promessa: quando a verdade e o amor se encontrarem, a justiça e a paz abraçam-se (Sal 85, 11). Como dizia João XXIII, a verdadeira paz só pode vir de um coração desarmado da ansiedade e do medo da guerra.

A Mensagem para o Dia da Paz 2025 termina com uma oração. É a oração que nos abre aos dons de Deus:

Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só Tu podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres.

Bom Ano!

 

 



[1] Cf. Levítico 25

[2] Cf. Mensagem para o Dia da Paz 2025 que estrutura toda esta crónica

 Haja Epifania -Estrelas brilhantes, estrelas apagadas e buracos negros - Pe. Manuel João MC

 Haja Epifania!




Estrelas brilhantes, estrelas apagadas e buracos negros

Ano C – T. Natal – Epifania
Mateus 2,1-12: “Onde está aquele que nasceu?”

No dia 6 de janeiro, doze dias após o Natal, a Igreja celebra, desde os primeiros séculos, a solenidade da Epifania. A palavra grega epiphàneia significa “manifestações” (no plural) e era utilizada para designar as ‘manifestações’ das divindades. Na Grécia antiga, referia-se às festas dedicadas a uma divindade específica. Este termo foi adotado pelo cristianismo para indicar a “manifestação” de Jesus aos povos, representados pelos Magos.

A data da Epifania aproxima-se da do Natal das Igrejas orientais, celebrado no dia 7 de janeiro. A diferença de 13 dias deve-se exclusivamente ao calendário adotado: enquanto as Igrejas ocidentais seguem o calendário gregoriano (assim chamado em homenagem ao Papa Gregório XIII, que o introduziu em 1582), as orientais ainda utilizam o antigo calendário juliano (criado por Júlio César em 45 a.C.). Por isso, o dia 25 de dezembro do Natal ortodoxo coincide com o nosso 7 de janeiro, enquanto o seu dia 6 de janeiro, da Epifania, corresponde ao nosso 19 de janeiro.

OS MAGOS, buscadores de Deus

O episódio pitoresco dos Magos, narrado de forma sóbria por São Mateus, é um dos que mais atraíram a curiosidade e atenção desde a época dos Padres da Igreja e dos escritos apócrifos cristãos. Em torno do relato evangélico floresceu uma rica e criativa fantasia:

  • os Magos tornam-se três, como os três dons: ouro, incenso e mirra; 
  • são considerados reis, talvez porque o rei é o máximo representante de um povo, e também pela influência de alguns textos bíblicos, como Isaías 60 (ver primeira leitura) e o Salmo 71: “Os reis de Társis e das ilhas ofereçam tributos, os reis de Sabá e de Seba tragam presentes” (salmo responsorial); 
  • são-lhes atribuídos nomes: Gaspar, Melchior e Baltazar; 
  • vêm de três continentes diferentes: África, Ásia e Europa; 
  • um é de pele escura, outro clara e o terceiro amarela; 
  • um é jovem, outro maduro e o terceiro idoso. 

Claramente, a tradição desenvolveu-se para que os três Magos representassem toda a humanidade que veio prestar homenagem a Cristo. Eles representam também cada um de nós.
Na segunda leitura, São Paulo afirma que a Epifania é a revelação de um “mistério” até então escondido: “Os povos são chamados, em Cristo Jesus, a partilhar a mesma herança, a formar o mesmo corpo e a participar da mesma promessa através do Evangelho” (Efésios 3,6).
Até então, a história da salvação era interpretada sob uma ótica nacionalista: as promessas de Deus eram reservadas apenas ao povo de Israel. Esta festa, portanto, assume um significado universal e missionário. É a antítese da Torre de Babel e o prenúncio de Pentecostes!

Os Magos são um símbolo eloquente dos buscadores de Deus que se colocam a caminho. A fé é “inquieta”: não nos deixa satisfeitos com as respostas encontradas e os objetivos atingidos. Uma fé que não nos torna peregrinos é como a dos escribas de Jerusalém, interrogados por Herodes. Eles sabem onde deve nascer o Messias, mas não se movem para procurá-lo.
Todo crente é como Abraão que “partiu sem saber para onde iria” (Hebreus 11,8). A jornada dos Magos é um emblema da vida cristã e de toda existência humana: colocar-se a caminho, juntos, à procura de sentido, olhando para o céu, prontos para enfrentar o desconhecido, capazes de discernir a presença de Deus na pequenez...

A ESTRELA e as estrelas

Os Magos eram “astrólogos” que observavam as estrelas. A sua proveniência do Oriente sugere a Pérsia. Muitos astrônomos tentaram identificar qual estrela ou cometa eles observaram. No entanto, a explicação não deve ser buscada tanto na ciência, mas no contexto bíblico. São Mateus, de fato, provavelmente referia-se ao oráculo do ‘profeta’ Balaão: “Eu o vejo, mas não agora; eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela surge de Jacó, e um cetro se eleva de Israel” (Números 24,17). Esta estrela é interpretada como uma referência ao Messias.
Na antiguidade, acreditava-se comumente que cada pessoa tinha a sua própria estrela, que surgia com o seu nascimento e desaparecia com a sua morte. Quanto mais brilhante a estrela, mais importante se considerava a pessoa.

Há muitas estrelas que brilham no nosso firmamento, mas nem todas conduzem a Cristo. Algumas fazem-nos perder-nos ao longo do caminho da vida. Qual “estrela” é a bússola da minha existência?
O que representa a Estrela? Ela evoca, antes de tudo, Jesus, “a estrela radiosa da manhã” (Apocalipse 22,16). Ele é a Estrela que orienta a vida do cristão. Contudo, também nós somos chamados a “brilhar como astros no mundo” (Filipenses 2,15). Cada cristão é convidado a tornar-se uma estrela que guia os outros para Cristo.

“Com a Epifania acabam-se as festas”, diz um conhecido provérbio popular. Que a Estrela, porém, permaneça viva no nosso coração! Como poderíamos, de outra forma, iluminar, nós que somos chamados a ser “luz do mundo”? Seríamos estrelas apagadas, ou pior, “buracos negros” que absorvem e anulam toda luz que encontram na sua órbita.

OS PRESENTES: ouro, incenso e mirra

O que representam os três presentes? Tradicionalmente diz-se que: o ouro simboliza a realeza messiânica de Cristo; o incenso, a sua divindade; e a mirra, a sua humanidade. Contudo, não faltam interpretações diferentes. São Bernardo, por exemplo, sugeria que o ouro servia para mitigar a pobreza da Virgem Maria, o incenso para purificar o ar da estrebaria, e a mirra como vermífugo!
Mas o que estes presentes podem representar para nós, hoje? E, sobretudo, o que podemos oferecer a Jesus? Olhemos para o tesouro do nosso coração: que riquezas guardamos? Que presentes podemos oferecer como sinal da nossa adoração, da nossa gratidão e do nosso amor?

Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

 

Perguntas sobre o Natal. 1 Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 03 Janeiro 2025

 Perguntas sobre o Natal. 1

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

03 Janeiro 2025

Já estamos no ano de 2025 em todas as partes do mundo - desejo a todos um 2025
com saúde, paz, boas realizações... -, mas quantos tomaram consciência de que a data
se refere ao nascimento de Jesus?

Precisamente por causa do Natal, muitas pessoas vêm ao meu encontro com
perguntas, e nesta e na próxima crónica tentarei dar respostas ainda que breves, por
vezes até com algumas repetições.

Para entender as respostas, é essencial perceber que a festa do Natal não é a festa
principal do cristianismo, mesmo que seja a mais popular e entendamos o entusiasmo
que suscita em toda a parte, compreendendo perfeitamente a luz, o calor humano, as
deslocações para juntar as famílias e os amigos, a evocação da ternura do nascimento
de uma criança...

A festa central da fé cristã é a Páscoa, que celebra a vida, o anúncio da Boa Nova do
Reino de Deus, a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição: na morte, Jesus não
morreu para o nada, na morte encontrou a plenitude da vida em Deus, que é Pai/Mãe.
Este é o núcleo da mensagem cristã, como proclamou São Paulo: “Se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa fé.”

E assim é à luz da Páscoa que se compreendem as narrativas do Natal. De facto, no
início, os cristãos não se interessaram pelo nascimento de Jesus, pois o essencial era a
vida, a morte e a ressurreição.

Então, como apareceu a festa do Natal? Hoje, nenhum historiador sério nega que Jesus
existiu realmente. Quando, nos séculos III-IV já havia comunidades cristãs espalhadas
pelo Império Romano, houve a ideia de transformar a festa pagã do Dies Natalis Solis
Invicti (Natal do Sol Invicto), associada ao Solstício do Inverno, quando os dias
começam a crescer e com eles a luz solar, na festa do nascimento do sol dos cristãos,
d’Aquele que é o verdadeiro Sol invencível, a Luz verdadeira. A Missa do galo está
associada a esta luz; o galo canta, anunciando a aurora.

E voltamos à questão da data e de nos encontrarmos no ano de 2025. Quando nasceu
Jesus? Realmente, estamos enganados quando dizemos que entrámos no ano 2025
depois de Cristo. De facto, no século VI, quando o cristianismo já se tinha vastamente
difundido e Jesus surgia como figura determinante da História, de tal modo que agora
o calendário se deveria orientar pela data do seu nascimento: a. C., d. C. (antes de
Cristo, depois de Cristo), o monge encarregado de determinar essa data, Dionísio, o
Exíguo, enganou-se em quatro ou mesmo seis anos. Portanto, Jesus, paradoxalmente,
terá nascido em 4-6 a.C.

Nasceu em Belém? Voltamos ao início. O essencial da fé cristã encontra-se na Páscoa.
Foi a partir dessa fé que os discípulos leram a vida histórica de Jesus, real, situada num
tempo concreto, uma história real, mas lida e interpretada com o olhar da fé. Esta
leitura é particularmente visível nos relatos da infância, que só aparecem
nos Evangelhos de São Mateus e de São Lucas, utilizando um género literário próprio,
que projecta e vê no princípio o que só sabem no fim: em Jesus cumpriram-se as
promessas, Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Salvador por todos esperado.

Na realidade, Jesus terá nascido em Nazaré: é conhecido por Jesus de Nazaré ou o
Nazareno. Mas puseram-no a nascer em Belém: trata-se de mostrar que ele é o
verdadeiro Messias e rei, da descendência de David, que era de Belém.

E a mensagem do Natal? Jesus proclamou o Reino de Deus. Deus é Pai/Mãe. Somos
todos filhos e filhas e, portanto, irmãos. No Reino de Deus, não há súbditos.

Continua.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER Frei Bento Domingues, O.P. 29 Dezembro 2024

 

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER

Frei Bento Domingues, O.P.

29 Dezembro 2024

 

1. Em 2025, a Igreja Católica celebra o Jubileu (o Ano Santo). Não é um acontecimento inédito. Já o Antigo Testamento fala de um Ano Jubilar de 50 em 50 anos[1], um tempo que devia ser de clemência e de libertação para todo o povo, a fim de restabelecer a justiça de Deus nos diferentes âmbitos da vida: no uso da terra, na posse dos bens, na relação com o próximo, sobretudo os mais pobres e os que tinham caído em desgraça[2]. Seria importante, no entanto, perguntar o que foi feito dessa bela instituição.

O Papa Bonifácio VIII instituiu o chamado Ano Santo, em 1300. O Papa Francisco já estabeleceu um especial programa litúrgico, em Roma, para os peregrinos, dos seus espaços mais emblemáticos, procurando, assim, superar o mero sentido turístico.

É de destacar um gesto original: no dia 26, o Papa foi à prisão Rebibbia, em Roma, como um peregrino de esperança, a mesma esperança à qual o Jubileu 2025 é dedicado, abrindo a Porta nessa prisão, inaugurando nela o Ano Santo.

O texto para o Dia Mundial da Paz 2025 é uma síntese notável, assumindo não só o que escreveram os seus antecessores, remontando à célebre Pacem in Terris (1963), como aponta o verdadeiro conteúdo das práticas do Ano Santo.

Também nos dias de hoje, o Jubileu devia ser um acontecimento que nos impelisse a procurar a justiça libertadora de Deus em toda a terra. Gostaríamos de estar atentos ao desesperado grito de ajuda. Sentimo-nos chamados a unir-nos à voz que denuncia tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo. Estas injustiças assumem, por vezes, o aspecto daquilo a que João Paulo II definiu como estruturas de pecado, porque não se devem apenas à iniquidade de alguns, mas estão, por assim dizer, enraizadas e contam com uma cumplicidade generalizada.

Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas acções que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade. Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistémicos, distintos, mas interligados, que afligem o nosso planeta. Refiro-me, em particular, às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são factores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade.

No início deste ano, Bergoglio incita-nos a escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, todos nós, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus. Alguns actos esporádicos de filantropia não serão suficientes. Em vez disso, são necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura.

2. Razão tinha S. Basílio de Cesareia (século IV) que perguntava: mas que coisas são tuas? De onde as tiraste para as incluir na tua vida? […] Não saíste totalmente nu do ventre da tua mãe? Não voltarás, de novo, nu para a terra? De onde vem o que tens agora? Estas interrogações continuam a ser essenciais.

Como diz Francisco, tal como as elites do tempo de Jesus, que se aproveitavam do sofrimento dos mais pobres, também hoje, na aldeia global interligada, o sistema internacional, se não for alimentado por uma lógica de solidariedade e interdependência, gera injustiças que, exacerbadas pela corrupção, aprisionam os países pobres. A lógica da exploração do devedor também descreve sucintamente a actual crise da dívida, que aflige vários países.

Não nos devemos cansar de repetir que a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar, indiscriminadamente, os recursos humanos e naturais dos países mais pobres, para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados.

A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda. Este Ano Jubilar convida a comunidade internacional a actuar no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo. É um apelo à solidariedade, mas sobretudo à justiça.

3. A dignidade da vida humana tem de ser respeitada e promovida em todas as suas etapas. Cada pessoa tem o direito de olhar o futuro com esperança, procurando o desenvolvimento e a felicidade de toda a família. Um gesto que deve marcar este Ano Jubilar é a eliminação da pena de morte em todas as nações. É, aliás, uma punição tão radical que aniquila toda a esperança humana de perdão e de renovação.

Neste tempo marcado pelas guerras em 22 países, o Papa Francisco propõe que, pelo menos, uma percentagem fixa do dinheiro gasto, em armamento, seja utilizada para a criação de um fundo mundial que elimine, definitivamente, a fome e facilite a realização de atividades educativas, nos países mais pobres. Devemos tentar eliminar qualquer pretexto que possa levar os jovens a imaginar o seu futuro sem esperança, ou como uma expectativa de vingar o sangue derramado por seus entes queridos. O futuro é um dom que permite ultrapassar os erros do passado e construir novos caminhos de paz. A guerra é sempre uma derrota, sempre! É fonte de riqueza para poucos e fonte de morte para povos inteiros.

Aqueles que empreenderem, através dos gestos propostos, o caminho da esperança, poderão ver cada vez mais próxima a tão desejada meta da paz. O Salmista confirma-nos nesta promessa: quando a verdade e o amor se encontrarem, a justiça e a paz abraçam-se (Sal 85, 11). Como dizia João XXIII, a verdadeira paz só pode vir de um coração desarmado da ansiedade e do medo da guerra.

A Mensagem para o Dia da Paz 2025 termina com uma oração. É a oração que nos abre aos dons de Deus:

Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só Tu podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres.

Bom Ano!

 

 



[1] Cf. Levítico 25

[2] Cf. Mensagem para o Dia da Paz 2025 que estrutura toda esta crónica

No ano novo de 2025, o quê? Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia

 No ano novo de 2025, o quê?

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

30 Dezembro 2024

Há regiões em que na noite de passagem de ano tudo o que é velho - roupas, pratos,

mobília... - vai pela janela fora para a rua. E também é sabido que na noite de

passagem de ano há licenças ao nível do álcool e até com a sexualidade que

normalmente não são permitidas. É um pouco como se, retomando agora de modo

secularizado os mitos cosmogónicos, se instalasse o caos primitivo, para, em seguida,

como fizeram os deuses in illo tempore, ser reposta a ordem do cosmos.

Perante um ano novo que está aí à nossa frente, os sentimentos misturam-se:

perplexidade, entusiasmo, dúvida, expectativa, temor, esperança... Que é que nos

reserva o novo ano: para mim, para a minha família, para os meus amigos, para o país,

para a Europa, para o mundo? Será melhor, será pior que o ano que passou? É preciso

pensar, pois a perplexidade é gigantesca — pense-se nas guerras em curso e a ameaça

nuclear, pense-se na situação periclitante da Europa no contexto da nova geoestratégia

global, pense-se na crise climática mortal, pense-se, sem excluir as suas vantagens, nos

perigos da inteligência artificial, do trans- e pós-humanismo...

Por vezes, somos tentados a pensar que é tudo igual, que tudo se repete: morre um

ano, surge outro ano, na roda eterna do mesmo... Mas não é assim. Nunca houve na

história de cada um de nós, na história do país, na história da Europa, na história da

humanidade, na história do mundo, com cerca de quinze mil milhões de anos, um ano

como esse que está a chegar. Ele aí vem, novo, pela primeira vez, como criança

acabada de nascer. E exactamente como a criança vem aí com confiança. Todos nós,

individual e colectivamente, enfrentamos, apesar de tudo, o novo ano essencialmente

com confiança: se reflectirmos bem, esperamos, evidentemente com realismo,

também com temor, mas essencialmente esperamos confiadamente. Porque o ser

humano é um ser constitutivamente esperante, apesar da dureza toda com que a vida

nos vai confrontando.

Porque é que os homens e as mulheres, apesar de todos os fracassos, horrores,

sofrimentos e cinismos, ainda não desistiram de lutar e de esperar? Porque é que

continuamos a ter filhos? Porque é que depois de guerras destruidoras e terramotos

devoradores, recomeçamos sempre de novo? Perguntava, com razão, o célebre teólogo

Johann Baptist Metz: "Porque é que recomeçamos sempre de novo, apesar de todas as

lembranças que temos do fracasso e das seduções enganadoras das nossas

esperanças? Porque é que sonhamos sempre de novo com uma felicidade futura da

liberdade", embora saibamos que os mortos não participarão nela? Porque é que não

renunciamos à luta pelo homem novo? Porque é que o ser humano se levanta sempre

de novo, "numa rebelião impotente", contra o sofrimento que não pode ser sanado?

"Porque é que o ser humano institui sempre de novo novas medidas de justiça

universal, apesar de saber que a morte as desautoriza outra vez" e que já na geração

seguinte de novo a maioria não participará nelas? Donde é que vem ao ser humano "o

seu poder de resistência contra a apatia e o desespero? Porque é que ele se recusa a

pactuar com o absurdo, presente na experiência de todo o sofrimento não reparado?

Donde é que vem a força da revolta, da rebelião?"

Neste movimento incontível, ilimitado, do combate da esperança, pode ver-se um

aceno do Infinito, um sinal de Deus.

E um propósito: em cada dia de 2025 dedicar alguns minutos de silêncio à meditação

sobre o essencial.

*Padre e professor de Filosofi

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Os Pilares do Ano Novo - Pe.Manuel João - MC

 Os Pilares do Ano Novo

Maria Santíssima Mãe de Deus
Lucas 2,16-21: "E foi-lhe dado o nome de Jesus"

No primeiro dia do ano civil, a Igreja celebra a solenidade de Maria Santíssima, Mãe de Deus. É também o último dia da Oitava de Natal, que recorda o rito da circuncisão de Jesus. Além disso, desde 1968, por vontade do Papa Paulo VI, este dia é dedicado à oração pela paz.
A liturgia oferece-nos "a primeira Palavra do ano", portadora de graça e bênção. Meditemo-la, refletindo sobre três realidades: Maria, o nome de Jesus e a Bênção da Paz. Estes são os pilares sobre os quais devemos construir o edifício da nossa vida no novo ano. São-nos dados 365 tijolos para o fazer, e a Palavra oferece-nos o plano, o projeto.

MARIA e o escândalo da manjedoura!

"Todos os que ouviam se admiravam das coisas que lhes contavam os pastores. Maria, porém, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração."

Entramos no novo ano sob a égide de Maria, a Mãe de Deus. Durante este tempo natalício, a nossa atenção está naturalmente voltada para o Menino. No entanto, hoje a Igreja convida-nos a elevar o olhar para a Mãe. Dela aprendemos como contemplar, acolher e aprofundar o Mistério do nascimento de Jesus.

Os pastores encontram o Menino "deitado na manjedoura", um facto que os enche de alegria, pois confirma a palavra do anjo e porque o Salvador nasceu no seu ambiente: é um deles. Para todos, o testemunho dos pastores é motivo de maravilha. Mas para Maria?
"Para Maria, a Santa Mãe de Deus, não foi assim. Ela teve de enfrentar 'o escândalo da manjedoura'" (Papa Francisco, 1 de janeiro de 2022).

Tiremos tempo, nestes dias, para nos demorarmos diante de um ícone de Maria ou, ainda melhor, para lhe fazermos uma visita numa das suas numerosas "moradas", os santuários a ela dedicados, para pedir a sua capacidade de meditar sobre os acontecimentos. Nem todos os 365 tijolos do novo ano serão bonitos, lisos, bem cortados e fáceis de encaixar no edifício da nossa vida. Quem nos dera que fosse assim! Alguns serão deformados e difíceis de integrar. Certamente não faltarão dias problemáticos e difíceis. São os "tijolos" do desânimo, da tristeza ou, até, do escândalo diante de certos acontecimentos da vida. Seremos tentados a descartá-los como inúteis.
O olhar de Maria, que "guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração", pode ajudar-nos. Apenas a sua "paciência meditativa" nos permitirá integrar certos tijolos no puzzle da nossa vida. O que não compreendemos e que somos tentados a rejeitar deve ser guardado com maior atenção.

Entremos, pois, no novo ano com o olhar de Maria: através da Porta do seu coração ou da Janela dos seus olhos, aprendamos a guardar e a meditar os acontecimentos, para encontrar sentido até naquilo que inicialmente nos escapa.

JESUS, o Nome e os nomes!

"Quando se completaram os oito dias para a circuncisão, foi-lhe dado o nome de Jesus, como o anjo o tinha chamado antes de ser concebido no ventre."

Hoje, no oitavo dia do seu nascimento, o Menino é circuncidado e recebe um nome: Jesus, que significa "o Senhor salva". Este nome, designado pelo Céu através do anjo, é a forma portuguesa do latim Jesus, que por sua vez deriva do grego Iesoûs. O original aramaico era Yeshua, uma forma abreviada do hebraico Yehoshua. Também Josué, o sucessor de Moisés, tinha este nome. Era um nome muito comum na época.
Nos Evangelhos, o nome de Jesus aparece 566 vezes. Já não é um simples nome, mas revela a sua identidade como Salvador. Pronunciá-lo equivale a uma profissão de fé para aqueles que o invocam. Como afirma São Pedro: "Não há, debaixo do céu, outro nome dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos" (Atos dos Apóstolos 4,12).

Agora Deus tem um nome: Jesus, "O Senhor salva". Podemos chamá-lo e estabelecer uma relação pessoal com Ele. Que belo seria se, durante este novo ano, o nome de Jesus fosse o mais frequente nos nossos lábios e o mais vivo no nosso coração! Isto convida-nos a praticar um exercício espiritual: a chamada "Oração do Coração". Consiste em repetir continuamente o nome de Jesus, ao ritmo da nossa respiração, como se repete o nome de uma pessoa amada. Uma forma muito simples de oração, capaz de criar uma profunda comunhão com Ele e com todos os que invocam o Seu nome.

BENÇÃO: abençoados, abençoemos!

"O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor faça brilhar o seu rosto sobre ti e te conceda a graça. O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz." (Números 6, 22-27, primeira leitura)

É particularmente reconfortante e encorajador tomar consciência de que este novo ano começa sob o signo da bênção. A paz é tanto a fonte quanto o fruto da bênção. Entramos em 2025 abençoados, mas é fundamental permanecermos na Bênção! Para isso, é necessário: bem-dizer Aquele que é o Bendito, fonte de toda a bênção; bem-dizer a vida; bem-dizer a nossa história. Sobretudo, devemos abençoar as pessoas que encontramos ao longo do dia.
"Abençoai e não amaldiçoeis!" (Romanos 12,14). Devemos reconhecer que, muitas vezes, nos é mais espontâneo amaldiçoar: amaldiçoar a vida, os políticos, os padres (infelizmente, às vezes com razão!), o chefe, os colegas, o autocarro atrasado, o trânsito, ou o vizinho barulhento... E assim corremos o risco de viver uma vida "amaldiçoada"!

Aqui está um terceiro exercício para o novo ano: sair de casa todos os dias com a consciência de ser abençoado e espalhar bênçãos por todo o lado, à direita e à esquerda! A paz seguir-nos-á.

Feliz Ano Novo! Shalom!


P. Manuel João Pereira Correia, mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

domingo, 22 de dezembro de 2024

BOAS FESTAS Frei Bento Domingues, O.P. 22 Dezembro 2024

 

BOAS FESTAS

Frei Bento Domingues, O.P.

22 Dezembro 2024

 

1. Entre as muitas festas do Cristianismo, destacam-se duas que se implicam mutuamente: a Páscoa e o Natal. A Páscoa proclama que o Cristianismo, apesar de todas as crises e de todas as negações, não está morto como muitos pretendem. O Natal é a festa das famílias. Por mais que se diga que a família está em crise, nada a pode substituir. É a festa de todas as idades porque todas as idades se referem ao nascimento. Enquanto houver nascimento, há esperança de futuro. Os cristãos das diferentes igrejas, nos diferentes países, celebram o Natal de Jesus Cristo, pois não se descobriu nenhum ser humano que fosse tão humano como Ele. O Menino que nos foi dado é a Incarnação de Deus, revelando simultaneamente a envergadura infinita a que está chamado qualquer ser humano.

A vida de Jesus – observa Tomás Halík –, se lermos cuidadosamente os Evangelhos, não é nenhum conto de fadas idílico com um final feliz. Começa num curral e termina no cadafalso. Só depois vem a Ressurreição. A Ressurreição não é nenhuma reanimação mágica de um cadáver e um regresso a este mundo na sua forma anterior, mas sim uma completa transformação.

Precisamos de uma fé madura – uma fé para o mundo de Herodes e Pilatos, onde Jesus nasceu, uma fé para um mundo de Putins e de assassinos em massa que assaltam todos os continentes[1].

A celebração do Natal, apesar de todas as semelhanças, é diferente em cada ano. O Papa Francisco mostrou que continua empenhado em fazer renascer a Igreja, em todas as suas dimensões, como uma Igreja de saída, virada para as periferias existenciais.

O Sínodo é o grande Advento da esperança que se estendeu durante 3 anos (2021-2024). O Papa Francisco não fez o Sínodo, mas realizou gestos, fez viagens que não produziram apenas declarações. Não podemos, no entanto, esquecer a sua voz durante o período de preparação do Sínodo. Não quis substituir-se à Igreja, mas tornou-se a voz mais ouvida da Igreja em processo de reforma. Por outro lado, foi uma pessoa muito activa. Não se tornou neutro nem abstémio do que está a acontecer.

Como diz o Cardeal Timothy Radcliffe, O.P., o título deste Sínodo poderá sugerir introversão, uma Igreja voltada para si mesma. No entanto, trata-se do maior exercício de escuta do mundo, na história do Cristianismo.

O objectivo desta consulta não era “produzir documentos, mas abrir horizontes de esperança para o cumprimento da missão da Igreja”. Esta esperança não diz apenas respeito à Igreja Católica, mas a todos os cristãos, aliás, a toda a Humanidade. Parece que estamos a entrar numa nova época de guerra, violência e pobreza, vivendo sob a sombra da catástrofe iminente das alterações climáticas, num mundo em que os jovens têm de, frequentemente, esforçar-se muitíssimo para sonhar com um futuro[2].

Muitas das ideias, hoje dominantes, são de morte, são incitamentos a matar. Ora, a essência do Cristianismo é a apologia da vida e de vida em abundância. O que se tem andado a fazer são destruições.

Os cristãos, mesmo neste tempo de destruições, temos de garantir o futuro da Natureza, dos seres humanos. Não devemos desistir perante as guerras porque na raiz do Natal há futuro.

Há 2 000 anos, Pedro tentou impedir Jesus de ir a Jerusalém porque esse era um caminho e um destino ameaçados e, para ele, não fazia sentido. Depois, descobriu-se o sentido trágico dessa aventura. Hoje, vivemos a esperança dentro da escuridão do nosso tempo.  Não é optimismo, mas a confiança de que tudo o que vivemos, toda a nossa confusão e dor, se descobrirá de alguma forma que tem sentido[3].

2. Deu-se a passagem do sínodo dos bispos para o sínodo de toda a Igreja. O que é que isto significa? Significa um salto e é importante ver quais são as suas expressões e o que há de novo. Não são só os bispos que têm direito a voz e a voto, mas também um grupo alargado de leigos – mulheres e homens – com direito a voz e a voto. Isto pede à Igreja iniciativas que diziam que os problemas de toda a Igreja são os nossos problemas. Cada “igreja local” foi convocada a entrar na vivência do Sínodo sob o signo da comunhão, participação e missão, segundo a fórmula consagrada.

Desde o momento em que foi promulgado até ao Documento final passaram-se 3 anos, numa diversidade que só a leitura do Documento Final pode exprimir. E isto implica saber que os 355 membros do Sínodo votaram, por voto secreto, cada um dos 155 parágrafos do documento, em que se reflectem as conclusões sobre questões como o papel da mulher, a descentralização da autoridade da Igreja, a denúncia do clericalismo e uma maior participação dos leigos na tomada de decisões.

3. A realização deste Sínodo foi extraordinária como início do que deve continuar. Foi precedida por um acontecimento ecuménico singular, alma de todo o diálogo humano. A 4 de Fevereiro de 2019, o Papa Francisco e o Grande Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, assinaram o documento Fraternidade Humana em prol da paz mundial e da convivência comum, em Abu Dabhi. É este o horizonte do verdadeiro ecumenismo.

Os textos do Sínodo não existem para substituir os textos do Novo Testamento (NT), mas para o situar no mundo contemporâneo, contexto em que devem ser lidos e praticados.

Para S. Lucas, os pobres escutam os anjos e vão ao encontro de Jesus: Não temais, eis que vos anuncio uma grande alegria e esta grande alegria é para todo o povo! Reconhecê-lo-eis assim: um recém-nascido envolto em panos e deitado numa manjedoura[4]. A versão de S. Mateus é diferente: Tendo Jesus nascido em  Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, eis que vieram os magos do Oriente a Jerusalém, perguntando; Onde está o rei dos judeus, recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo[5].

A leitura das narrativas do NT é fundamental. São elas a referência do insubstituível – Jesus Cristo – para que não seja esquecido em nenhum tempo nem em nenhum lugar. São, de facto, peças de uma beleza inconfundível. Sem essas narrativas, como conhecer a Criança que é semente do futuro da Humanidade?

A festa do nascimento de Jesus de Nazaré é a possibilidade do nosso contínuo renascimento. A grande noite de Natal depende de nós, e só de nós, para que nada continue na mesma e que tudo comece. Se não pertencemos ao povo dos pobres, resta-nos a solução dos magos: partir pela noite, fugir à segurança e, depois de termos visto a Força de Deus desencadeada numa criança que está à mercê de todos, voltar por outro caminho[6].

O outro caminho começou a ficar desenhado no passado mês de Outubro, nos trabalhos do Sínodo.

 

 



[1] Cf. Tomás Halík, O Sonho de uma nova Manhã. Cartas ao Papa, Paulinas 2024, p. 149

[2] Cf. Timothy Radcliffe, Escutai-o! Para uma espiritualidade sinodal, Paulinas 2024, pág. 7

[3] Cf. Ibidem, pág. 17

[4] Cf. Lc 1 – 3: as narrativas do Nascimento de Jesus, suportada pela história da humanidade – genealogia até Adão

[5] Cf. Mt 1 – 2: as narrativas do Nascimento de Jesus, suportada pela história do povo em que nasceu – genealogia até Abraão

[6] Cf. Jean Cardonnel, O,P., O Evangelho e o Mundo Novo, Livraria Figueirinhas, 1966, pp. 61-66