domingo, 24 de dezembro de 2023

O PRESÉPIO DE UM ATEU Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Continuará a discutir-se as origens do Presépio. Quem visitar a Basílica de Santa Maria Maior (Roma), poderá ver, num mosaico do século III, uma representação do Presépio, mas o cenário já nos é oferecido por S. Lucas. Seja como for, o grande impulso foi dado por S. Francisco de Assis, no século XIII, na forma mais simples e despida que se possa imaginar. Uma manjedoura cheia de feno, um burro e uma vaca. Esse curral irá despertar o sentido da pobreza extrema de Deus no mundo e todas as formas da imaginação popular e dos grandes artistas. Agora, as televisões tomaram conta e desenvolvem muitas formas de solidariedade, para que a vida dos pobres não seja ainda mais dolorosa. Contra o sentido mais profundo do Natal, continuamos mergulhados nos horrores das guerras e das suas inumeráveis tragédias.

No mês de Novembro, completaram-se dez anos da publicação do Programa do pontificado do Papa Francisco, a Exortação Apostólica A Alegria do Evangelho. Em parte, coincidiu com o Advento que estamos a viver. Vou, no entanto, recorrer ao testemunho, por ele evocado, de Madeleine Delbrêl (1904-1964), que incarnou a alegria da fé entre os não crentes. Ela própria escreveu: «Uma vez que conhecemos a palavra de Deus, não temos o direito de não a receber; quando a recebemos, não temos o direito de não a deixar incarnar-se em nós; quando se incarna em nós, não temos o direito de a conservar para nós: a partir daquele momento, pertencemos àqueles que a esperam». Segundo Madeleine, evangelizando somos evangelizados. Por isso, inspirando-se em São Paulo, dizia: «Ai de mim, se a evangelização não me evangelizar!».

Acerca desta mulher testemunha do Evangelho, o Papa Francisco observa: também nós aprendemos que, em cada situação e circunstância pessoal ou social da nossa vida, o Senhor está presente e chama-nos a habitar o nosso tempo, a partilhar a vida dos outros, a misturar-nos com as alegrias e as dores do mundo. Em particular, ensina-nos que até os ambientes secularizados nos são úteis para a conversão, pois a interacção com os não-crentes estimula o crente a uma contínua revisão do seu modo de crer e a redescobrir a fé na sua essencialidade[i].

2. Creio que foi num livro do meu grande amigo, Frei Pedro Meca (1935-2015), que viveu entre os marginalizados de Paris, que conheci um texto de Jean-Paul Sartre sobre o Presépio.

Li a tradução desse texto, em 2016, publicada pela Pastoral da Cultura. É essa tradução que vou reproduzir.

Estamos em 1940, na Alemanha, num campo de prisioneiros franceses. Alguns padres pedem a Jean-Paul Sartre, recluso há alguns meses com eles, que redija uma pequena meditação para a véspera de Natal. Sartre, ateu, aceita. E oferece aos seus camaradas "Barioná ou o filho do trovão", procurando unir crentes e não crentes. Um excerto:

«Como hoje é Natal, tendes o direito de exigir que vos seja mostrado o presépio. Ei-lo. Eis a Virgem, eis José e eis o Menino Jesus. O artista colocou todo o seu amor neste desenho, mas vós talvez o considereis ingénuo. Vede, as personagens têm belos ornamentos, mas estão rígidas, dir-se-ia que são marionetas. Não eram certamente assim. Se fordes como eu, que tenho os olhos fechados... Mas escutai: só tendes de fechar os olhos para me ouvir e eu vos direi como os vejo dentro de mim.

A Virgem está pálida e observa o menino. O que falta pintar no seu rosto é um maravilhamento ansioso, que só aparece uma única vez numa figura humana. Pois Cristo é o seu filho, a carne da sua carne e o fruto das suas entranhas. Ela carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á o sangue de Deus. E em certos momentos a tentação é tão forte que esquece que é Deus.

Ela aperta-o nos seus braços e diz: "Meu pequenino!". Mas noutros momentos permanece perturbada e pensa: "Deus está ali", e sente-se tomada por um horror religioso por este Deus mudo, por este menino terrificante. Pois todas as mães se detêm por instantes diante desse fragmento rebelde da sua carne que é o seu filho e sentem-se exiladas diante dessa nova vida que foi feita com a sua vida e que povoam de pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi mais cruelmente e mais rapidamente arrancado da sua mãe, porque Ele é Deus e está além de tudo o que ela pode imaginar.

E é uma dura provação para uma mãe ter vergonha de si e da sua condição humana diante do seu filho.

Mas penso que deve ter havido outros momentos, rápidos e escorregadiços, nos quais sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o seu pequenino, e que é Deus. Ela observa-o e pensa: "Este Deus é meu filho! Esta carne divina é a minha carne. É feito de mim, tem os meus olhos e esta forma da sua boca é a forma da minha. Parece-se comigo. É Deus e parece-se comigo".

E nenhuma mulher teve da sorte o seu Deus só para si. Um Deus pequenino que se pode tomar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quente que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e que vive. E é nesses momentos que eu pintaria Maria, se eu fosse pintor, e tentaria representar a expressão de terna audácia e de timidez com a qual ela avança o dedo para tocar a doce pelezinha deste menino-Deus, de quem sente sobre os joelhos o peso morno e que lhe sorri.

E eis tudo para Jesus e para a Virgem Maria.

E José? José, não o pintaria. Mostraria apenas uma sombra ao fundo da granja e dois olhos brilhantes. Pois não sei o que dizer de José e José não sabe o que dizer de si mesmo. Adora e está feliz por adorar e sente-se um pouco em exílio.

Creio que sofre sem o admitir. Sofre porque vê o quanto a mulher que ama se parece com Deus, o quanto ela já está perto de Deus. Pois Deus rebentou como uma bomba na intimidade desta família. José e Maria estão separados para sempre por esse incêndio de claridade. E toda a vida de José, imagino, será para aprender a aceitar[ii].

3. Li este texto na Missa do II Domingo do Advento. Teve um tal impacto e tantos foram os pedidos, que não resisti a transcrevê-lo nesta crónica de Natal.

Como cristãos, não devemos impor os sinais da nossa fé a ninguém, mas também não os devemos ocultar. Devemos ser igrejas de saída para a missão universal de fazer um mundo de irmãos (Fratelli Tutti), em liberdade. É esta a Alegria do Evangelho, a alegria da evangelização. Se como diz S. Lucas, o antepassado de Jesus é Adão, fora da fraternidade não há futuro. As guerras são todas fratricidas e são deicidas, sejam elas contra quem forem.

Como escreveu Leonardo Boff, a lei suprema do Universo, que permitiu que todos chagássemos até aqui, é a da cooperação de todos com todos. É a solidariedade cósmica, porque tudo tem a ver com tudo, em todos os lugares, em todos os momentos, em todas as circunstâncias[iii]. É preciso ajudar a fazer o Natal desse mundo. Mundo feito por todas as pessoas de boa vontade.

Façamos do mundo uma festa, festa de Natal!

 

24 Deze


[i] Cf. Audiência do dia 08 Novembro 2023

[ii] Tradução de Rui Jorge Martins, publicado em 23.12.2016

[iii] Tempo de Transcendência. O Ser Humano como um Projeto Infinito, Sextante, pág. 91

Hineni! Hineni! - Pe. Manuel João, MC

 Hineni! Hineni!

 

Ano B - Advento - 4º Domingo


Lucas 1,26-38: Eis-me aqui, a serva do Senhor!

 

Estamos no quarto domingo do Advento, no limiar da porta de entrada para o mistério do Natal. O Evangelho apresenta-nos a Anunciação do anjo Gabriel a Maria. É a terceira vez que ouvimos este evangelho neste Advento: a primeira, na festa da Imaculada Conceição; a segunda, no dia 20 de dezembro; e agora, como preparação imediata para o mistério da Encarnação.

 

1. Três mensageiros, três anúncios, três promessas!

 

Poderíamos dizer que este é o domingo dos anúncios. Três mensageiros - um profeta, um anjo e um apóstolo - trazem-nos três anúncios que são, na verdade, três promessas relativas à “revelação do mistério que estava encoberto desde os tempos eternos, mas agora manifestado e dado a conhecer a todos os povos” (II leitura, Romanos 16,25-27).

 

Na primeira leitura (2 Samuel 7), através do profeta Natã, “o Senhor anuncia que te vai fazer uma casa”.Esta promessa é dirigida não só a David, mas a todos e a cada um de nós. Com efeito o Senhor afirma: “Prepararei um lugar para o meu povo de Israel; e nele o instalarei para que habite nesse lugar, sem que jamais tenha receio”. Promete-o a nós, que muitas vezes - com uma mentalidade pagã de servidão à divindade - pensamos que devemos fazer algo por Deus, que devemos construir-lhe uma “casa” (quem sabe, com a intenção secreta de o “confinar” num lugar!). E descobrimos - para nosso espanto! - que é Deus que se põe ao nosso serviço. A nós, os “sem-abrigo”, Deus dá-nos uma casa, onde podemos encontrar descanso, finalmente! Este é o nosso sonho: encontrar uma “casa” em que possamos viver em paz! E habitar nessa casa com o estatuto de filhos e filhas, e não de escravos, porque “o escravo não fica para sempre na casa, mas o filho fica para sempre” (João 8,35). Desejas esta casa ou preferes continuar a vaguear pelas casas dos outros, pagando, muitas vezes, “rendas” insuportáveis?

 

No Evangelho, é um anjo que vem ter connosco, na nossa humilde Nazaré, uma obscura aldeia dos subúrbios da Galileia, nunca mencionada no Antigo Testamento, para nos convidar a alegrarmo-nos porque o Senhor fixou o seu olhar em nós e nos faz uma promessa: “Conceberás e darás à luz um Filho”. Esta promessa garante-nos que a nossa vida não será estéril, não será vazia, inútil, sem sentido. Teremos uma casa e um futuro: “Ele faz habitar em casa a mulher estéril, como uma alegre mãe de filhos” (Salmo 113,9). 

 

Na segunda leitura, o apóstolo Paulo diz-nos que este mistério “agora foi manifestado e dado a conhecer a todos os povos”. A história parece caótica, sem um projeto, sem um fim. Quantas vezes nos perguntámos: para onde vai este nosso mundo, teatro de guerras e emaranhado de injustiças? Paulo garante-nos que Deus não abandonou a sua criação às forças destruidoras do caos. O Senhor não se esqueceu do homem, obra das suas mãos. E aqui está o mistério insondável: ele próprio se faz barro para se imiscuir na nossa argila e moldar uma nova humanidade! 

 

Fixemos agora o nosso olhar no Evangelho. Ele revela-nos o sentido profundo do Natal: o Senhor anuncia-se, quer vir até nós, quer encarnar-se em nós! “De que te serve que Cristo se tenha encarnado, se não se encarnar também na tua vida?” (Orígenes de Alexandria, século III). “Mesmo que Cristo nascesse mil vezes em Belém, mas não nascesse em ti, estarias perdido para sempre!” (Angelus Silesius, místico alemão do século XVII). 

 

2. Da tristeza à alegria, do medo à fé!

Tendo entrado onde Maria estava, disse o Anjo: «Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
A primeira palavra do anjo é Ave!, segundo a versão litúrgica. Em realidade esta é uma tradução infeliz. Não se trata de uma simples saudação, mas de um forte convite à alegria: Alegra-te! Solta gritos de alegria! No Antigo Testamento, este convite nunca é dirigido a uma pessoa, mas a Sião, a Jerusalém, a Israel: “Solta gritos de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, ó Israel! Alegra-te e rejubila-te de todo o teu coração, filha de Jerusalém!” (Sofonias 3,14); “Solta gritos de alegria, regozija-te, filha de Sião. Eis que venho residir no meio de ti!” (Zacarias 2,14). Maria representa todo o povo de Deus. Nela estamos nós. O Senhor encontra-nos muitas vezes tristes ou, pelo menos, sobrecarregados pelo peso da vida. Convida-nos a alegrar-nos, não porque a nossa história mude com um toque da sua varinha mágica, mas porque nos garante que está sempre connosco. 

Ela ficou perturbada com estas palavras e pensava que saudação seria aquela.
E como não ficar perturbado? É algo incrível! Infelizmente, a nós, cristãos, falta-nos essa perturbação e, quando ela não existe, não há sequer espanto e admiração. Tudo se torna banal, dado por adquirido, insignificante!

Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. 
“Não temas” é um convite que Deus dirige muitas vezes à pessoa a quem se revela. Diz-se que encontramos esta garantia de Deus 365 vezes na Bíblia, uma para cada dia do ano. A nossa existência é minada por medos. Medo do presente e medo do futuro! Medo também de Deus, que nos parece demasiado severo e pouco tranquilizador. Os seus anjos, porém, não cessam de nos dizer: “Não temas, porque encontraste graça diante de Deus!”

 

3. Eis-me aqui! Hineni!

Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!
“Eis”, “Eis-me aqui!”, “Hineni!” em hebraico. É a resposta de prontidão ao chamamento de Deus. É uma das palavras mais frequentes do Antigo Testamento: 178 vezes (segundo o biblista F. Armellini). O Natal é a convergência de dois “Eis-me aqui”, de dois “Hineni”, o de Deus e o nosso! Ao entrar no mundo, Cristo diz: “Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade” (ver Hebreus 10,5-10 e Salmo 39,8-9). Que não aconteça que o seu “Hineni” não encontre o nosso! É o drama eterno do amor de Deus ignorado: “Ofereci-me àqueles que não me procuravam. “Eis-me aqui, eis-me aqui” – dizia eu a um povo que não invocava meu nome” (Isaías 65,1).

 

Exercício espiritual para a semana

Repetir muitas vezes ao longo do dia: Eis-me aqui! Hineni! perante situações ou acontecimentos que nos interpelam e que pressentimos serem uma chamada de Deus.

 

P. Manuel João Pereira Correia mccj
Verona, 23 de dezembro de 2023

p.mjoao@gmail.com

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

UM BOM PRESENTE DE NATAL Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Sou velho e tive, desde muito cedo, um forte incómodo com muitas passagens da Bíblia. Chamar Palavra de Deus a determinadas afirmações e acções excedia, para mim, todos os mistérios. Um Deus que mata, e manda matar os inimigos do seu povo, não tem nada de divino. Por outro lado, rezar certos salmos não era rezar. Era blasfemar. O conjunto do povo católico não tinha esse problema porque a Missa era em latim. Os mais devotos aproveitavam para rezar o terço.

Ao estudar o Antigo Testamento (AT) com vários professores, em vários países e instituições eclesiásticas, fiz descobertas muito belas, mas era o Novo Testamento a minha renovada fonte de alegria, mesmo se era noite (S. João da Cruz).

Foi um meu antigo aluno, que se tornou o meu mestre acerca do AT, que me ajudou nas maiores dificuldades. Esse mestre era o dominicano Francolino Gonçalves (1943-2017), professor da Escola Bíblica de Jerusalém e membro da Comissão Bíblica da Santa Sé. Entre os seus escritos, distingo os muitos e substanciosos estudos publicados nos Cadernos ISTA, entre os quais destaco, Iavé, Deus de Justiça e de Bênção, Deus de Amor e de Salvação[1]. Neste estudo, apresenta dois Iaveísmos, o das relações entre Iavé e Israel, um Deus nacionalista, e o Iaveísmo cósmico, Deus da Criação, Deus de bondade e graça para toda a humanidade[2]. Uma descoberta libertadora.

Sabemos que a Bíblia é das obras mais traduzidas no mundo inteiro. Durante muito tempo, era comum verificar e lamentar que Portugal não fizesse parte desse mundo. Esse tempo parece ter passado a tal ponto que, hoje, temos vários professores e investigadores biblistas, mulheres e homens. Entre eles, o próprio Presidente da Conferência Episcopal, D. José Ornelas, e o Cardeal D. Tolentino Mendonça, Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, na Cúria Romana.

Também já não contamos com uma só tradução da Bíblia em português (Portugal e Brasil): Bíblia de Jerusalém, Bíblia Sagrada-Difusora Bíblica e o acontecimento maior, a tradução de Frederico Lourenço, já quase completa e iniciada em 2016, pela Quetzal Editores. Ad Experimentum, a Conferência Episcopal Portuguesa iniciou a publicação da tradução da Sagrada Escritura para uso oficial da Igreja Católica em Portugal e, futuramente, nos outros Países Lusófonos. Portugal já não é um deserto bíblico.

Para testemunhar e não esquecer as dificuldades dos estudos bíblicos na Igreja Católica, a Biblioteca Dominicana publicou, do fundador da Escola Bíblica de Jerusalém, Marie-Joseph Lagrange, O.P., Recordações Pessoais[3]. Foram tempos terríveis para a investigação bíblica e sua publicação.

Depois de algumas medidas liberalizantes, a Comissão Pontifícia Bíblica publicou, em 1993, A Interpretação da Bíblia na Igreja, um documento libertador na linha do Vaticano II, abrindo caminho aos diferentes métodos e abordagens da sua interpretação. Trabalho nunca acabado.

2. De preocupação diferente com o AT, é o livro de Francisco Martins, A Bíblia tinha mesmo razão? As histórias de Israel e do Israel da História[4]. Estando eu a ler esta obra, alguém passou e disse em tom de gozo: perguntem a Galileu e à Inquisição! Quem assim me interpelava também podia ler com proveito este livro.

Esta obra notável responde ao que pergunta, da forma mais simples e rigorosa possíveis. Para a situar, o melhor é dar a palavra ao autor. Há quase 70 anos, em 1955, o jornalista e ensaísta alemão, Werner Keller, escreveu o que viria a tornar-se um dos maiores best-sellers da literatura da divulgação científica. Intitulado E a Bíblia tinha mesmo razão, o livro propunha-se mostrar, como se diz na introdução, que as descobertas arqueológicas, então disponíveis, confirmavam a veracidade dos relatos bíblicos. O que muitos consideravam mito ou lenda ou simplesmente folclore tinha realmente sucedido e, de acordo com o autor, era possível prová-lo cientificamente. Animado por tão ambicioso objectivo, Keller não se limitava a querer dar conta de eventos cuja historicidade seria, porventura, mais fácil de provar, como a conquista da terra de Cannã (a “terra prometida”), relatada no livro de Josué, ou a fundação do poderoso reino de David e Salomão, de que se ocupam os livros de Samuel e dos Reis.

Agora, o título do livro que o leitor tem entre as mãos transforma a afirmação de Werner Keller numa pergunta, substituindo a certeza pela dúvida. É uma grande e justificada viragem.

3. Depois do rigoroso percurso desta obra, pela História do Israel Antigo, Francisco Martins conclui que a resposta à pergunta é tudo menos evidente. É inevitável reconhecer que responder simplesmente “sim” ou “não” empobrece a nossa compreensão não só do perfil e do horizonte da literatura bíblica, mas também da tarefa da reconstrução histórica.

A Bíblia tem “razão”, isto é, tem uma lógica na forma de se relacionar com a História. Antes de mais, é preciso ter consciência de que a rememoração do passado obedece não à simples curiosidade pelo que terá sucedido, mas a imperativos de ordem teológica.

A qualidade literária do testemunho bíblico influencia também, de forma decisiva, a perspectiva adoptada. Os géneros e as convenções literárias aos quais os textos aderem dão forma à arte bíblica de relatar o passado e devem (deviam!) também regular as nossas expectativas enquanto leitores.

O autor, um jovem jesuíta, é um investigador e já com um currículo notável que é, também, uma grande promessa. Nasceu em Lisboa, em 1983, e é jesuíta desde 2005. Foi ordenado sacerdote em 2015. Estudou Filosofia em Braga, Teologia em Madrid, Filologia Semita e História Antiga em Paris. É doutorado em Bíblia (Bíblia Hebraica/Antigo Testamento) pela Universidade Hebraica de Jerusalém (Israel). Atualmente, é investigador convidado na Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA). É professor de Literatura Bíblica na Universidade Gregoriana, em Roma, e membro da Associação Bíblica Portuguesa e da Society of Biblical Literature (EUA).

A Bíblia não é um manual de História, mas também não é um labirinto de enganos. Que seja a biblioteca de um povo, de muitas épocas e de vários géneros literários, é bastante consensual entre os estudiosos. Ler a Bíblia como literatura é fundamental para não lhe pedir o que não pode dar e acolher o que ela nos oferece de maravilhoso.

Este livro é, paradoxalmente, um grande presente de Natal!

 

 

17 Dezembro 2023

 



[1] Cadernos ISTA, nº 22 – 2009, Ano XIV, pp. 107-152

[2] Cf. In Memoriam Francolino Gonçalves, O.P. (1943-2017), Études Bibliques, 2022; Recebeu o Prémio 2021 da Academia Pedro Hispano, Casino Figueira. Nessa altura, apresentou o texto, Os Estudos Bíblicos hoje. Pluralidade dos métodos, das abordagens e dos resultados.

[3] Tenacitas, 2017 – original de 1967

[4] Temas e Debates, 2023

Três características da vocação do cristão - ALEGRIA, LUZ e VOZ - Pe. Manuel João, MC

 Três características da vocação do cristão - ALEGRIA, LUZ e VOZ

 

Ano B - 3º Domingo de Advento
João 1,6-8.19-28: “Endireitai o caminho do Senhor!”

 

O terceiro domingo do Advento é chamado “Domingo Gaudete”, a partir da primeira palavra que abre a celebração: Alegrai-vos sempre no Senhor! Repito, alegrai-vos! O Senhor está próximo!” (antífona de entrada, cf. Fl 4,4.5). No ambiente penitencial que caracteriza o tempo de Advento, este domingo traz-nos um convite singular à alegria. Na origem histórica do Advento, encontramos duas tradições diferentes: a da Gália e a de Roma. A primeira acentuava o aspecto penitencial, comparando o período do Advento com a Quaresma e, por isso, era chamado “Quaresma de São Martinho”, porque começava no dia seguinte à sua festa (11 de novembro) e durava 40 dias até ao Natal. A de Roma, pelo contrário, sublinhava o aspecto alegre da espera. Isto levou, com o tempo, à redução do Advento a 4 domingos, e não mais a 40 dias, e a um abrandamento do tom penitencial.

No centro do terceiro domingo, porém, permanece a figura de João Batista, que retoma o grito do profeta Isaías: “Endireitai o caminho do Senhor!”

Gostaria de tecer a minha reflexão em torno de três palavras que captam a mensagem da Palavra deste domingo: Alegria, Luz e Voz.

 

1. A ALEGRIA da liberdade!

 

Este terceiro domingo – dizíamos - é um convite forte, convicto e determinado a alegrarmo-nos porque o Senhor está próximo. Na verdade, na primeira leitura, encontramos a voz de um profeta anónimo, que mais tarde Jesus reivindicaria como sua, pregando na sinagoga de Nazaré: “O espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu e me enviou a anunciar a boa nova aos pobres, …a promulgar o ano da graça do Senhor. Exulto de alegria no Senhor, a minha alma rejubila no meu Deus”.
No salmo, encontramos o “magnificat” de Maria: A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador”. Na segunda leitura, é São Paulo que lança o apelo à alegria: “Vivei sempre alegres!


Mas o que dizer de João Batista? A austeridade da sua pessoa e a severidade da sua mensagem não parecem fazer dele um mensageiro da alegria, embora tenha sido o primeiro a alegrar-se com a chegada do Messias ainda no ventre da sua mãe. João dirá, no entanto, que é o amigo que “exulta de alegria à voz do noivo”, concluindo: “Agora esta minha alegria é completa” (João 3,29). Sobretudo, João recorda-nos que não há verdadeira alegria sem liberdade e sem despojamento

 

Qual é a alegria do cristão? Não é certamente a alegria alienante que atordoa, que anestesia.... Essa é uma falsa alegria que pretende esconder o vazio interior de uma vida sem sentido... e que actua como uma droga que facilmente conduz à dependência. A alegria do cristão provém, pelo contrário, de uma experiência singular: a de acolher “a boa nova”; a de nos sentirmos amados por Deus na nossa pequenez, como Maria; a de “não extinguir o Espírito”, que nos permite “examinar tudo e reter o que é bom”; a de ser livres como João!
O Advento é um tempo propício para redescobrir a fonte da água fresca e jorrante da alegria.

 

2. Uma luta sem tréguas entre a LUZ e as trevas!

 

A primeira obra de Deus foi a luz, e desde então a luz é uma prerrogativa do divino. João foi enviado como “testemunha da luz”. Jesus veio como “Luz do mundo”, mas as trevas não o aceitaram. Toda a história da humanidade e toda a nossa existência humana se desenrolam neste contexto dramático, quer estejamos conscientes disso ou não. Todos os nossos dias se desenrolam num confronto entre a Luz e as trevas. 

 

O Advento é um tempo propício para tomar consciência da presença das trevas em nós, nos nossos critérios de avaliação, nas nossas relações familiares, no local de trabalho, na sociedade... Sem discernimento, facilmente nos deixamos dominar, porque as trevas podem disfarçar-se de “anjos de luz”, de luzeiros do progresso, da razão, do iluminismo... O cristão traz dentro de si uma luz ameaçada pelas trevas. A nossa espera exige vigilância e um reabastecimento contínuo das nossas lâmpadas com o óleo da Palavra de Deus!
O Advento é um tempo propício para recuperarmos a nossa vocação de “testemunhas da luz”! 

 

3. Que VOZ ressoa em mim?

Quatro “vozes” ressoam nas leituras de hoje: a do Profeta, a de Maria, a de Paulo e a de João Batista. Todas elas têm uma coisa em comum: nelas ressoa a Palavra do Senhor. Cada um de nós, com tons e timbres diferentes, tem por missão ser como a Voz de João para anunciar o grande “Desconhecido” que está no meio de nós. Anunciá-lo no deserto da indiferença, do escárnio, da hostilidade... Todas as vocações na Igreja são diferentes, únicas, mas no fundo são todas a encarnação da única Voz, a de Cristo. João tem plena consciência da sua identidade. É por isso que recusa rótulos, não quer títulos, não reivindica protagonismo. A sua voz pertence à única Palavra, a do Logos.
O Advento é um tempo propício para tomar consciência de que o cristão é chamado a ter uma voz “diferente” no barulho ensurdecedor da sociedade. Uma voz que não se enquadra nas vozes da opinião de todos. Uma voz fora do coro! 

 

Para uma reflexão pessoal

Comparemos a nossa vocação com a de João:
1. Onde estão as nossas fontes de alegria? Dialoguemos com Cristo ou com Maria sobre as nossas alegrias e tristezas.
2. Que realidades ameaçam “apagar o Espírito” em nós e mergulhar-nos de novo nas trevas? Agradeçamos ao Senhor pela Luz da fé e pelas pessoas que trazem luz à nossa vida.
3. De quem somos porta-vozes no nosso modo de pensar, de falar e de nos comportarmos? Louvemos o Senhor pelas vozes que nos transmitem a sua Palavra.

 

P. Manuel João Pereira Correia
Verona, 15 de dezembro de 2023

p.mjoao@gmail.com

  

domingo, 10 de dezembro de 2023

SERÁ POSSÍVEL MUDAR? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1.  Dado o pressuposto católico do destino universal dos bens deste mundo, somos obrigados a perguntar: serão possíveis mudanças de benefício para todos?  É urgente esta pergunta no começo deste Advento marcado pela persistência do terrorismo, da destruição, da miséria e da repetição ineficaz dos apelos à paz.  São muitas as pessoas a confessar o seu desalento e os habituais “profetas da desgraça” continuam a repetir que todas as tentativas de mudança acabam quase sempre em fracasso.

Há precisamente 75 anos (10.12.1948) que foram proclamados os Direitos Humanos. Muitos dizem: foram proclamados, mas não foram nem são respeitados. Essa conclusão rotunda esquece o que já foi e está a ser conseguido. É verdade que o espectáculo do mundo, das guerras, da exploração e tráfico de pessoas pode levar-nos, precisamente, ao desânimo, mas também pode despertar novos grupos e movimentos de esperança activa.

 No dia em que chegássemos à conclusão de que nada vale a pena, é porque tínhamos desesperado de sermos humanos e desesperado de sermos cristãos. O que confessamos todos os Domingos é que, embora tenhamos falhado em muita coisa, não desistimos de viver e lutar por mais alegria na vida. Cada Domingo pode significar uma ressurreição de seres limitados e pecadores que nós somos. Isto também significa que não aceitamos derrotas definitivas.

Neste Domingo, celebramos algo de extraordinário. S. Marcos refere um acontecimento impressionante. Jesus de Nazaré, filho de um carpinteiro, abandonou essa profissão familiar na procura de um caminho para a transformação do mundo que conhecia, mundo de judeus de muitas tendências e de pagãos do Império Romano. Nas suas buscas, encontrou-se com o movimento do extraordinário João Baptista que proclamava que era preciso mudar radicalmente e pedia aos seus seguidores, em sinal dessa vontade de mudança, que consentissem em ser baptizados no rio Jordão, a sede desse amargo movimento.

Este encontro deve ter sido mesmo real porque vem narrado, de formas diferentes é certo, pelos quatro evangelistas e com testemunhas nos Actos dos Apóstolos. S. Marcos é muito sóbrio e vai directo ao essencial. Jesus, tendo entrado nesse movimento, foi baptizado como muitos outros. Mas S. Marcos sublinha que Ele, ao sair da água, viu os céus abertos e o Espírito, como uma pomba, descer sobre ele. Uma voz do céu declarou: Tu és o meu Filho amado, em ti me reconheço.

Esta experiência mística mostra-lhe a insuficiência do movimento religioso e moral do seu mestre João Baptista e é tão forte essa experiência que o impele a um caminho diferente, novo. A raiz da mudança é o próprio Espírito de Deus. Larga tudo e passa quarenta dias de retiro no deserto. Aí, começam outros problemas. Dizem os evangelistas que foi tentado pelo diabo, com expressões do antigo messianismo que o desviavam do seu novo caminho, isto é, tentado pelo poder económico, pelo poder político e pelo poder religioso para formar o seu reino e o reino dos discípulos.

Ele venceu radicalmente essas tentações. Os discípulos que convocou estavam tão imbuídos do messianismo que Ele rejeitava, que não viram, no apelo de Jesus, a novidade que Ele representava. Viram apenas uma oportunidade fantástica de serem os ministros do reino que ambicionavam.

2. Hoje, na Igreja Católica, pratica-se legitimamente o baptismo de crianças e de adultos. O de adultos pressupõe a conversão a Jesus e ao seu projecto de mudança universal. O das crianças deu origem a muitas confusões que alimentaram, na Cristandade, uma desvalorização da condição humana amada de Deus, antes de qualquer baptismo. Pode, no entanto, ter uma interpretação muito bela. Deus não espera que sejamos capazes de O reconhecer e amar para gostar de nós, todos, absolutamente todos, baptizados ou não. O amor de Deus é sem motivo e anterior ao nosso reconhecimento. Ama-nos porque Ele é amor, como diz S. João.

É normal que os pais, verdadeiramente cristãos, desejem para os filhos o que têm de melhor, o reconhecimento de sermos amados, desde sempre e para sempre. Quando se incriminam os pais que baptizam os seus filhos sem o consentimento deles, também deviam ser incriminados por os alimentar desde que nascem, cuidarem da sua higiene e inscrevê-los na escola. Quando as crianças são baptizadas só para cumprirem um costume local ou familiar, sem compromisso de os ajudarem a descobrir e a viver do Espírito de Cristo, atraiçoam a verdade do baptismo das crianças. As crianças baptizadas devem ser educadas a desenvolver todas as suas capacidades, a encontrarem um caminho de realização, não para vencerem na vida, não para serem pessoas dominadas pela vontade de poder económico, político ou religioso, mas para se tornarem cada vez mais competentes para servir os que mais precisam de ajuda e para contribuírem com uma nova economia e uma nova política e uma fé capaz de vencer todos os obstáculos.

3. Contra todo o derrotismo, este tempo testemunha, com a eleição do Papa Francisco, que é possível mudar. Ele acredita na Alegria do Evangelho como oferta divina a todos os seres humanos, crentes e não crentes, a todos. É essa mudança para o reino da alegria que ele procura viver e testemunhar, dentro e fora da Igreja. Ele já aprendeu e testemunhou, perante a Igreja e o mundo, como é difícil trabalhar pela mudança, dadas as resistências e as traições que é preciso enfrentar. O importante é não desistir. Podemos não ver os frutos de todos esses trabalhos, pela justiça, pela paz e pela integridade da criação, mas o que é realizado nessa direcção ficará sempre como testemunhos a desafiar o futuro e a ser retomados pelas novas gerações.

Neste sentido, não podemos considerar inúteis textos como o que assinou com o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabby (2019), o grande Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da convivência comum. Este texto parece que serviu de ensaio para a marcante Encíclica Fratelli Tutti (2020). O que sempre procura é semear esperança, para que não se desista de sonharmos juntos e trabalharmos para um futuro melhor. Francisco ficará sempre como o Papa que não finge que sabe tudo, que não recorre à chamada infabilidade pontifícia para enfrentar os grandes problemas da humanidade e da Igreja Católica. Ele próprio explicou como convoca cientistas, filósofos e teólogos para indicar os caminhos a percorrer. E não só. O método escolhido para a preparação e realização do sínodo mostra que precisa de todos, mulheres e homens, jovens e adultos, seguindo o bom princípio: o que a todos diz respeito, deve ser tratado por todos.

O Papa Francisco não é eterno e os cínicos continuarão a dizer: vai morrer e nem o mundo nem a Igreja mudaram como ele desejava. Isso significa apenas que dos cínicos não podemos esperar nada. Pertence às novas gerações tornarem-se cada vez mais competentes e mais generosas. É de pessoas que vivem para servir e não para dominar que o presente e o futuro precisam. Esse caminho não engana.

 

 

10 Novembro 2023

sábado, 9 de dezembro de 2023

Ir de começo em começo! - Pe. Manuel João, MC

 Ir de começo em começo!

 

Ano B - 2º Domingo do Advento 
Marcos 1,1-8: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas!

 

Estamos percorrendo o caminho do Advento, ao encontro de “Aquele que vem”. Chegámos à segunda das quatro etapas deste caminho, ou seja, ao segundo domingo.

 

Um grito no deserto!

Hoje a Palavra torna-se um GRITO que quer romper a nossa surdez. Na primeira leitura, Deus ordena ao seu profeta que grite. Não se trata de um grito de cólera, mas de consolação. Deus quer falar ao coração do seu povo: “Falai ao coração de Jerusalém e dizei-lhe em alta voz que terminaram os seus trabalhos”

Há um “evangelho” urgente a comunicar: “Sobe ao alto dum monte, arauto de Sião! Grita com voz forte, arauto de Jerusalém! Levanta sem temor a tua voz e diz às cidades de Judá: Eis o vosso Deus”. O mesmo grito ressoa no Evangelho: “Uma voz clama no deserto: ‘Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’”Este grito ressoa no DESERTO. No “deserto” da nossa vida, onde predominam a esterilidade, a mediocridade e a insatisfação. Este grito quer trazer frescura e novidade à nossa vida!

 

As três figuras do Advento

A liturgia apresenta-nos três figuras típicas para o tempo do Advento. 


1) A primeira é o PROFETA ISAÍAS. Já o terão adivinhado, pois encontramo-lo repetidamente nas leituras do Advento. O seu anúncio é jubiloso, ele traz-nos “boas novas”. É o profeta que, vários séculos antes, anuncia a vinda do Messias.
Três palavras resumem a sua mensagem: PROMESSA, ALEGRIA e ESPERANÇA!

Parece-me oportuno refletir sobre a nossa vida cristã tomando estas três palavras como ponto de referência.
- Continuo a acreditar nas promessas de Deus ou sinto-me desiludido? Espero o seu cumprimento com ansiedade ou como quem espera o autocarro? 
O Advento é o tempo em que Deus renova as suas promessas!
- Qual é o nível de alegria na minha vida? Predomina talvez a tristeza e a amargura de coração depois de ter buscado alegrias efémeras?
O Advento é um convite a procurar as verdadeiras alegrias da vida!
- Posso dizer que sou uma pessoa com esperança? Dá um nome à tua esperança. 
O Advento é um tempo para crescer na esperança!

 

2) O segundo protagonista é João Batista, figura central do evangelho do segundo e terceiro domingos do Advento. João recorda-nos que a nossa espera não é passiva, mas ativa. Convida-nos a “preparar o caminho do Senhor”. O Advento implica pôr-se de novo a caminho, sair da condição de escravidão, de “exílio”, para encontrar o Senhor.

João é um profeta forjado no deserto: franco, áspero e severo. É como que a “reencarnação” de Elias, o profeta de fogo. Não é uma personagem simpática para as autoridades religiosas e políticas, que o consideram um provocador e um visionário. No entanto, a sua austeridade e a sua pregação atraem multidões que o consideram um profeta e se fazem batizar por ele no Jordão, confessando os seus pecados.

João Batista convida à CONVERSÃO. Mas este apelo penitencial tem uma conotação de “boa nova”, porque nos diz que é possível renascer e começar de novo. Deus oferece-nos um NOVO COMEÇO. “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”, assim começa o evangelho de hoje. É o início dos “novos céus e a nova terra, onde habitará a justiça”, de que fala S. Pedro na segunda leitura. 
Existe a possibilidade de um novo começo. A vida cristã, aliás, é um “ir de começo em começo, por começos que não têm fim” (Gregório de Nissa). Queremos recomeçar por um caminho novo ou continuar no antigo? 

 

3) A terceira figura é a Virgem Maria. O Advento é o tempo mariano por excelência. Maria é a Virgem da espera, que antecipa a “Marana tha” (Vem, Senhor!) da Esposa. A sua aparição no Advento surge com a festa da sua Imaculada Conceição, a 8 de dezembro (nove meses antes da data em que celebramos o seu nascimento, a 8 de setembro). Reencontrá-la-emos no quarto domingo do Advento. É uma presença discreta, como a de Deus que actua na nossa vida. A associação da sua imaculada conceição com a conceição virginal de Jesus é uma misteriosa alusão ao Natal: somos chamados a ser gerados pelo Espírito e a gerar Cristo nas nossas vidas através do mesmo Espírito. Como Ela!

 

Para uma reflexão semanal

Proponho refletir sobre um conhecido texto de São Bernardo sobre a tríplice vinda de Cristo.

Conhecemos uma tríplice vinda do Senhor. Entre a primeira e a última há uma vinda intermediária. Aquelas são visíveis, mas esta, não. Na primeira vinda o Senhor apareceu na terra e conviveu com os homens. Foi então, como ele próprio declara, que viram-no e não o quiseram receber. Na última, todo homem verá a salvação de Deus (Lc 3,6) e olharão para aquele que transpassaram (Zc 12, 10). A vinda intermediária é oculta e nela somente os eleitos o vêem em si mesmos e recebem a salvação. Na primeira, o Senhor veio na fraqueza da carne; na intermediária, vem espiritualmente, manifestando o poder de sua graça; na última, virá com todo o esplendor da sua glória.
Esta vinda intermediária é, portanto, como um caminho que conduz da primeira à última: na primeira, Cristo foi nossa redenção; na última, aparecerá como nossa vida; na intermediária, é nosso repouso e consolação.
Mas, para que ninguém pense que é pura invenção o que dissemos sobre esta vinda intermediária, ouvi o próprio Senhor: Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos a ele (cf. Jo 14,23)...
Se assim guardares a palavra de Deus, certamente ela te guardará. Virá a ti o Filho em companhia do Pai, virá o grande Profeta que renovará Jerusalém e fará novas todas as coisas. Graças a essa vinda, como já refletimos a imagem do homem terrestre, assim também refletiremos a imagem do homem celeste (1Cor 15,49). Assim como o primeiro Adão contagiou toda a humanidade e atingiu o homem todo, assim agora é preciso que Cristo seja o senhor do homem todo, porque ele o criou, redimiu e o glorificará.

 

P. Manuel João Pereira Correia
Verona, 8 de dezembro de 2023

 

domingo, 3 de dezembro de 2023

ADVENTO EXIGE VIGILÂNCIA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Começamos hoje a celebração litúrgica do Advento. É um fervoroso convite a entrar neste tempo de vigilância para estarmos atentos ao Deus que vem a toda a hora, a todo o momento, na vida das pessoas, na vida do mundo, embora nós não nos demos conta, se não estivermos atentos. A própria liturgia do Domingo existe para romper com essa desatenção ao permanente advento de Deus, na evolução da natureza e da história humana.

Este ano, no pátio da igreja de Santa Isabel, foi antecipada uma nova forma de evocação do Advento. Vários grupos inter-religiosos participaram numa vigília para acolher e questionar a COP28 (28ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima).

Organizada em parceria com a Rede Cuidar da Casa Comum, esta vigília prolongou-se por 13 horas, tantas quantos os dias da Conferência do Dubai. Durante a vigília, houve colóquios, debates, música, poesia com pessoas de várias expressões religiosas. Pode e seria bom ser replicada noutros locais.

Foi a perspectiva da citada COP28 do Dubai, iniciada a 30 de Novembro (2023), que tinha motivado o Papa Francisco a escrever a Exortação Apostólica Laudate Deum sobre a crise climática, que regista uma intensa carga política.

Segundo o Papa, é impossível esconder a coincidência dos fenómenos climáticos negativos e globais com o crescimento acelerado das emissões de gases com efeito estufa, sobretudo a partir de meados do século XX. A esmagadora maioria dos estudiosos do clima defende esta correlação, sendo mínima a percentagem daqueles que tentam negar esta evidência.  Infelizmente, a crise climática não é propriamente uma questão que interesse às grandes potências económicas, preocupadas em obter o maior lucro ao menor custo e no mais curto espaço de tempo possíveis. Vejo-me obrigado a fazer estas especificações, que podem parecer óbvias, por causa de certas opiniões ridicularizadoras e pouco racionais que encontro mesmo dentro da Igreja Católica (nº13 e 14).

No momento em que comecei a escrever esta crónica, dispunha do programa da participação do Papa Francisco na COP28. Ele próprio tinha informado: vou para o Dubai a 1 de Dezembro até ao dia 3, que é o começo da celebração do Advento litúrgico. Esta viagem não acontecerá como estava prevista.

O Papa, desde sábado (25), encontrava-se num estado gripal, com uma inflamação do sistema respiratório. Por meio de um comunicado, a Sala de Imprensa do Vaticano declarou: O quadro clínico geral melhorou, mas os médicos pediram ao Papa que não fizesse a viagem planeada para os próximos dias por ocasião da Cop28. Francisco concordou com grande pesar. Entretanto, seriam definidas as modalidades da participação da Santa Sé na Conferência das Partes.

O comunicado insistia em que o Papa e a Santa Sé continuavam dispostos a fazer parte das discussões que ocorrerão nos próximos dias. Ficaram em aberto as modalidades que essa participação poderá revestir.

Francisco seria o primeiro Papa a discursar numa COP, tendo lançado um desafio aos participantes, na já referida Exortação Apostólica, publicada a 4 de Outubro 2023. O convite para a sua participação na cimeira do clima foi feito pelo presidente dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed bin Zayed Al Nahyan. Bergoglio esclareceu os motivos que o levavam a Dubai: «Não podemos renunciar ao sonho de que a COP28 leve a uma decidida aceleração da transição energética, com compromissos eficazes que possam ser monitorizados de forma permanente. Esta Conferência pode ser um ponto de viragem».

Francisco já tinha estado em Abu Dhabi, em Fevereiro de 2019, por ocasião da assinatura do célebre documento sobre a Fraternidade Humana para a Paz Mundial com Ahmad Al-Tayyeb, o grande imã da Universidade e Mesquita al-Azhar. Talvez se possa dizer que foi o grande ensaio da Encíclica Fratelli Tutti (2020), um dos textos mais marcantes deste Papa.

2. Neste tempo de Advento, não podemos esquecer o paradoxo apontado por Clara Raimundo[1]. Este ano não haverá festejos do Natal na cidade onde, segundo a tradição cristã, nasceu Jesus. Se o paradoxo é enorme, não é tão grande como a tristeza e a dor que pairam nas ruas de Belém, na Cisjordânia, e que se revelam nos semblantes dos poucos que as percorrem. «Belém, como qualquer outra cidade palestiniana, está de luto e triste… Não podemos comemorar enquanto estivermos nesta situação», afirma Hanna Hanania, presidente da câmara cessante. O município decidiu, assim, cancelar os eventos de Natal e retirar todas as decorações da cidade. Unindo-se ao apelo dos Patriarcas e Líderes das Igrejas de Jerusalém, Hanania pede a todos que se concentrem na oração: «Rezaremos a Deus para que haja paz, na terra da paz».

No dia 26 do mês passado, o Papa lembrou, no Angelus, que a atormentada Ucrânia comemorou o Holodomor, o genocídio provocado pelo regime soviético que causou a morte de milhões de pessoas por fome, há 90 anos. Essa ferida lacerante, em vez de sarar, torna-se ainda mais dolorosa com as atrocidades da guerra que continua a fazer sofrer aquele querido povo.

Por todos os povos dilacerados pelos conflitos, continuemos a rezar sem nos cansarmos, porque a oração é a força da paz que quebra a espiral do ódio, rompe o ciclo da vingança e abre caminhos de reconciliação que não se esperam.

Hoje, damos graças a Deus porque finalmente há trégua entre Israel e a Palestina e alguns reféns foram libertados. Rezemos para que todos eles sejam libertados o mais depressa possível, rezemos para que entre mais ajuda humanitária em Gaza e para que se insista no diálogo: é a única via, a única via para a paz. Aqueles que não querem o diálogo não querem a paz.

Francisco confessa que em Israel e na Palestina, além de todas as atrocidades da guerra, fomos para além das guerras: isto não é guerra, isto é terrorismo. Por favor, avancem para a paz, rezem pela paz.

3. Já foi dito, já foi escrito que, fora do diálogo, não há paz, não há salvação[2]. Ora, o tempo em que nos encontramos não é propriamente de diálogo, de democracia participada. É talvez, como diz Nuno Severiano Teixeira, «atravessado por uma onda populista transnacional que atravessa a Europa e a América e é consequência de uma globalização desregulada, do descontentamento dos seus perdedores e da crise de representação política, isto é, da incapacidade de os partidos tradicionais representarem essas populações e responderem aos seus problemas»[3].

Se Advento significa vigilância, não podemos fazer de conta que isto não tem nada a ver connosco nem com as nossas Igrejas. Celebrar o Advento de Deus, no devir da natureza e da história humana, história de que Ele faz parte no espantoso mistério da Incarnação, não devemos estranhar que o Papa, em Laudate Deum, tenha sido tão forte na dimensão política desse documento, louvada por uns, lamentada por outros.   

 

 

03 Dezembro 2023



[1] Cf. 7Margens, 27.11.2023

[2] Cf. Frei Bento Dominges, O.P., Fora do diálogo não há salvação, Público, 23.01.2022

[3] Cf. Nuno Severiano Teixeira, O Trump holandês, Público, 29.11.2023; cf. também João Gomes Cravinho, Médio Oriente: realismo, diplomacia e esperança, Público, 28.11.2023

sábado, 2 de dezembro de 2023

O Senhor vem de noite! - Pe. Manuel João , MC

 O Senhor vem de noite!

 

Ano B - Advento - 1º Domingo


Marcos 13,33-47: O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!

Com o primeiro domingo do Advento começa o ano litúrgico “B”, durante o qual teremos como guia o evangelista Marcos, particularmente nos domingos do Tempo Comum. Ao longo de doze meses, reviveremos os mistérios da vida do Senhor. Cada ciclo litúrgico começa com o tempo do Advento, composto por quatro domingos que nos preparam para o Natal.

Advento, do latim Adventus, significa vinda. De que vinda se trata? Pensamos espontaneamente na do Natal. De facto, preparamo-nos para celebrar a memória do nascimento de Jesus. Mas, na realidade, o novo ano litúrgico enxerta-se no ponto de chegada do anterior, retomando a atitude do cristão que se orienta para o futuro. Deus vem do futuro! Um futuro que não deve ser temido, mas desejado, porque não é o fim, mas a meta da nossa vida, a realização das suas promessas. É por isso que, no evangelho de hoje, ouvimos a conclusão do discurso escatológico de Jesus, segundo o evangelho de Marcos. O primeiro domingo do Advento faz sempre eco à última invocação da Igreja que espera o seu Esposo: “Maràna tha! Vem, Senhor” (Apocalipse 22,20). 

O cristão vive no “entretanto”, entre duas vindas: a vinda de Cristo na carne e o seu regresso na glória. É por isso que o primeiro domingo do Advento renova o convite à vigilância,repetido quatro vezes no evangelho de hoje: “Acautelai-vos e vigiai!... O Senhor, antes de partir, deu plenos poderes aos seus servos, atribuindo a cada um a sua tarefa, e mandou ao porteiro que vigiasseVigiai, portanto!... O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!”.

 

Uma vinda durante a noite!

Segundo a tradição rabínica, há quatro grandes noites: a noite da criação, quando Deus cria a luz (Génesis 1,3); a segunda noite, quando Deus faz a aliança com Abraão (Génesis 15); a terceira é a noite do Êxodo, da Páscoa da libertação da escravidão do Egipto (Êxodo 12,42); a quarta é a noite de Israel à espera do Messias que vem instaurar o mundo novo. O evangelista Marcos divide esta quarta noite em quatro partes, segundo o costume romano: o anoitecer, a meia-noite, o cantar do galo e a madrugada. 
Vigiai, portanto, visto que não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se de manhãzinha”.

 

Por que é que Jesus insiste tanto na vigilância? Porque o Senhor vem de noite! Diríamos que Deus prefere a noite, imagem do mistério da sua aparente ausência, para actuar na história e na nossa vida. É por isso que devemos estar vigilantes para captar a visita de Deus e discernir a sua ação. Nesta “noite” de Deus, tempo da nossa responsabilidade, corremos o risco de ser facilmente dominados pelo sono.

Mas existe também a nossa “noite”! Se a “noite de Deus” representa a sua presença misteriosa, que só a fé pode perceber, o que representa a nossa “noite”? O profeta Isaías apresentou-a de uma forma simbólica muito forte: “Éramos todos como um ser impuro, as nossas ações justas eram todas como veste imunda. Todos nós caímos como folhas secas, as nossas faltas nos levavam como o vento. Ninguém invocava o vosso nome, ninguém se levantava para se apoiar em Vós, porque nos tínheis escondido o vosso rosto e nos deixáveis à mercê das nossas faltas”. (primeira leitura). 

Cada um de nós tem, aliás, a sua “noite”. A noite da doença, do sofrimento, da solidão, do medo do futuro, da rutura das relações familiares, da precariedade, do pecado, do cansaço, da insatisfação, da desilusão, do desânimo... Deus vem na noite para habitar e iluminar as nossas longas noites de inverno!

 

Ordena ao teu porteiro que vigie!

E mandou ao porteiro que vigiasse!”. Quem é este porteiro? Jesus refere-se certamente aos dirigentes da comunidade, mas podemos também aplicá-lo a nós. O porteiro é a consciência do cristão que, particularmente neste tempo de Advento, é chamada à vigilância para discernir a vinda do Senhor. Tantas coisas, sentimentos, realidades, pessoas, desejos ... batem à porta do nosso coração. O “porteiro” deve estar atento para não deixar entrar o inimigo que traz sementes de morte. São Paulo adverte-nos que “até Satanás se pode disfarçar de anjo de luz” (2 Coríntios 11,14). Ao invês, o “porteiro” deve abrir ao que é fonte de nova vitalidade e, sobretudo, perceber os sinais da vinda do Senhor: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, virei a ele, cearei com ele e ele comigo” (Apocalipse 3,20). Não somos tanto nós que vamos ao seu encontro, mas é ele que vem ao nosso encontro. É por isso que Isaías, na primeira leitura, invoca a sua vinda: ““Voltai, por amor dos vossos servos e das tribos da vossa herança. Oh se rasgásseis os céus e descêsseis!”

 

Reflexão para a semana 

Aproxima-se a festa da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro. A Virgem Maria é a figura típica do tempo do Advento. Convido-vos a meditar sobre esta oração de Dom Tonino Bello.

Santa Maria, Virgem da espera, dai-nos do vosso azeite porque as nossas lâmpadas se apagam. As nossas reservas esgotaram-se. Não nos mandeis para outros fornecedores. Reavivai nas nossas almas o antigo fervor que ardia em nós, quando bastava a mais pequena coisa para nos fazer saltar de alegria...
Se hoje já não sabemos esperar, é porque a esperança se esgotou. As suas fontes secaram. Sofremos uma profunda crise de desejo. E, já fartos dos milhares de falsas promessas, arriscamo-nos a não esperar mais nada, nem mesmo daquelas promessas de um outro mundo que foram assinadas com sangue pelo Deus da aliança...
Santa Maria, virgem da espera, dai-nos uma alma vigilante. Infelizmente, muitas vezes sentimo-nos mais filhos do crepúsculo do que profetas do advento. Sentinela da manhã, despertai em nossos corações a paixão dos jovens anúncios para os levarmos ao mundo, que já se sente velho. Trazei-nos, finalmente, a harpa e a cítara, para que, convosco, sentinela da manhã, despertemos a aurora.
Perante as mudanças que abalam a história, fazei-nos sentir na pele o ardor dos começos. Fazei-nos compreender que não basta acolher: é preciso esperar. Acolher é por vezes um sinal de resignação. A espera é sempre um sinal de esperança. Fazei de nós, portanto, ministros da espera. E que o Senhor que vem, virgem do Advento, nos surpreenda, também pela vossa cumplicidade materna, com a lâmpada na mão".

P. Manuel João Pereira Correia
Verona, 1 de dezembro de 2023

P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com