domingo, 29 de julho de 2018

UMA RELIGIÃO INTELIGENTE Frei Bento Domingues, O.P.


1. Para António Damásio, “não temos qualquer relato científico satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar abertos e atentos quando decidimos abordar o desconhecido”[1].

Em certas formas de espiritualidade e de teologia, a modéstia não é a regra. Na orientação espiritual, não falta quem se julgue conhecedor da vontade de Deus e com capacidade de a discernir para si e para os outros. Implorar o Espírito Santo para acolher a sua luz é uma condição essencial para estarmos prontos a dar razão da nossa esperança, como recomenda S. Pedro[2]. Sem esse cuidado, seremos cegos guias de cegos. Pedir conselho é próprio de quem reconhece os seus limites. Daí a convencer-se que podemos coincidir, nas nossas opiniões, com a vontade de Deus, é presunção a mais.

Em teologia, sempre me agradou a extrema modéstia de Tomás de Aquino. Foi discípulo de Alberto Magno, assim chamado pelo seu saber enciclopédico e pela sua curiosidade insaciável. Tomás tinha uma consciência pedagógica mais apurada. Notava que os mais novos tinham dificuldade em seguir a multiplicidade de questões no campo científico, filosófico e teológico. Comentou Aristóteles e muitos livros da Bíblia, participou em muitas questões disputadas e não receava ser exposto à curiosidade dos estudantes acerca dos temas mais variados. Resolveu elaborar um imenso guião para principiantes. Acabou por ser muito apreciado pelos investigadores. Trata-se da Suma de Teologia.

Modesta era a sua própria ideia de teologia. Depois de expor o seu projecto, as suas exigências, o seu método e de estabelecer os argumentos humanos que apoiam a fé na existência de Deus, ao dizer vamos tentar saber como Deus é, suspende esse atrevimento: vamos saber como Deus não é[3]. A sua teologia é, sobretudo, uma anti-idolatria. Não atribuir a Deus e à sua vontade o que são construções nossas.

No final da vida, a partir da sua experiência mística, disse: tudo o que escrevi me parece palha. A teologia negativa livrou-o da idolatria das concepções teológicas. Não era cepticismo. Como cantou, no seu poema para a festa do Corpo de Deus, seguiu o princípio: atreve-te quanto puderes. Não tinha o culto da humildade ignorante, nem se contentava com repetir um credo ortodoxo. Escreveu: “é necessário que aqueles que buscam as raízes da verdade se apoiem em razões e se esforcem por saber como é verdade aquilo que afirmam. De outro modo, se o mestre se contenta com resolver a questão com o recurso a autoridades, poderá assegurar, sem dúvida, ao ouvinte, o que está certo na fé, mas este não adquire ciência nem compreensão e ficará de cabeça vazia”[4].

A teologia cristã e a verdadeira espiritualidade são fruto da mente e do coração no interior da dinâmica da fé teologal, cujo termo não são os artigos da fé, mas o infinito mistério de Deus amado e conhecido. A oração faz parte da investigação teológica, como mostrou Sto. Anselmo, na perspectiva de Sto. Agostinho: “Não procuro, Senhor, penetrar na tua profundidade… Mas quero compreender, ainda que seja um pouco, a tua verdade que o meu coração crê e ama. Não procuro compreender para crer, mas creio para compreender, pois, bem sei, se não creio, não compreenderei”[5].

Nunca podemos prescindir do conhecimento científico nem do questionamento filosófico. Se não virmos que, pelo lado de Jesus Cristo, corre a vida e o sentido último da nossa história, não poderíamos acolher a sua graça. A graça não substitui a natureza, antes a reforça.

Uma teologia sadia nasce e desenvolve-se dentro de uma espiritualidade aberta à acção evangelizadora. Uma prática evangelizadora exige e desenvolve uma vida e uma teologia mística. Karl Rahner insurgiu-se, com razão, contra uma teologia kerigmática que desprezava a investigação científica[6]. Uma teologia pastoral sem investigação é um engano. Uma teologia que pretende ser científica e não cheira a povo perde-se no vazio, como diz o Papa Francisco.

2. Não podemos crer sem interpretar. Edward Schillebeeckx, depois de todos os embates que teve com o Vaticano, mostrou que tinham interpretações diferentes das mediações humanas da fé. Elaborou, por isso, os pressupostos e a ciência da interpretação. Parte da experiência da fé na Bíblia, não como uma teologia da palavra, porque a palavra de Deus é a palavra dos seres humanos que falam de Deus.

Dizer, sem mais, que a Bíblia é a palavra de Deus, não corresponde à verdade. Só é a palavra de Deus indirectamente. Os escritos bíblicos são testemunhos de homens e mulheres de Deus, que viveram uma experiência e a exprimem. A sua experiência vem do Espírito e, neste sentido, pode dizer-se, com razão, que a Bíblia é inspirada, mas, ao mesmo tempo, é preciso não esquecer a mediação humana, histórica, contingente. Nunca existe encontro directo de Deus, só a sós, com o homem. Efectua-se sempre através de mediações. São os seres humanos que falam de Deus. Não aceitar mediações históricas é cair, necessariamente, no fundamentalismo[7].

3. Alegra-me que Aga Khan tenha dito que a religião ismaelita é uma religião inteligente. Tem como premissas a paz, o bem-estar, a sabedoria e o desenvolvimento[8]. Parece querer recuperar, na actualidade, o que foi uma das correntes criadoras do Islão medieval. Uma religião que não pensa, ou que só pensa o já pensado, cai inevitavelmente no fundamentalismo e na violência.

Terá sido uma iniciativa inteligente a criação de um Estado judaico? Não irá aumentar o anti-judaísmo? Não será um Estado de exclusão?

Não ficam mal, a nenhuma religião que queira ser inteligente, as observações do Papa Francisco:

Uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé que não nos faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona é uma fé sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é uma fé que deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser sacudida.

Acrescenta também: existe o perigo real de deixar às gerações vindouras escombros, desertos e imundices[9].

Boas férias e até Setembro





29. 07. 2018



[1] A estranha ordem das coisas, Temas e Debates, Lisboa, 2017, p. 332
[2] 1P 3, 15-16; Rm 8, 26-27.
[3] S.Th., I, q.3, prólogo (cf. q. 12 e 13)
[4] Quodlibet, IV, q.9, a.3
[5] Proslogion, 1
[6] Karl Rahner, Le courage du théologien, Paris, Cerf, 1985, pp 43
[7] Maria Clara Bingemer, Experiência de Deus na contemporaneidade, Lisboa, Paulinas 2018. A autora teve em conta Karl Rahner, mas esqueceu-se de Edward Schillebeeckx, Je suis un théologien heureux, Paris, Cerf 1995.
[8] Revista do Expresso, 21.07.2018
[9] L’ Osservatore Romano, O clamor angustiado da terra, 12.07.2018, http://www.osservatoreromano.va/vaticanresources/pdf/POR_2018_028_1207.pdf

quinta-feira, 26 de julho de 2018

O acesso à experiência da fé, hoje!-V Fórum da UASP

V Fórum da UASP
O acesso à experiência da fé, hoje!
24 e 25 Novembro de 2018
Domus Carmeli – Fátima
Organização: Direcção da UASP em parceria com as Associadas
E-mail: uaaasp@gmail.com | www.uasp.pt | Facebook/UASP
PROGRAMA
 Sábado, dia 24 09h00 – Acolhimento 09h45 – Abertura do Fórum 10h00 – Leitura dos sinais dos tempos: dificuldades e oportunidades que a cultura actual oferece na comunicação da Fé, por José Milhazes (AAComboniano) 10h45 – Diálogo 11h00 – Pausa 11h30 – A transmissão da fé na geração 11h40 – … dos avós, por José Luís Ponte, (AASASB) 12h00 – … dos pais, por Manuel Leite (AASEspiritano) 12h20 – … dos filhos, por Fernando Capela (AASVReal) 12h40 – Diálogo 13h00 – Almoço 15h00 – Pela Palavra, “O Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro de Seus filhos, a conversar com eles” (DV 21), por D. Manuel Pelino 15h45 – Diálogo 16h00 – Pausa 16h30 – A Palavra anunciada e testemunhada pelas comunidades cristãs 16h40 – … Católicas, por Ir. Isolinda Tavares de Almeida 17h00 – … Ortodoxas, por Pe. Dmitriy Tkachuk 17h20 – … Reformadas, por Timóteo Cavaco 17h40 – Diálogo 19h30 – Jantar 21h00 – A Palavra celebrada com “arte e com alma”, Celebração/concerto pelo Coral Cantabo, dirigido por P. Artur Oliveira Dia 25 – Domingo
 09h00 – Pequeno-almoço
09h30 – A Palavra acolhida que se faz vida, por Pe. Pedro Ferreira, Provincial OCD 12h00 – Missa 13h00 – Almoço

NEM NAS FÉRIAS HÁ SOSSEGO-Frei Bento Domingues, O.P.


1. A narrativa bíblica do mito da criação não pertence ao mundo da ciência, mas ao da poética teológica. Não se situa, por isso, em competição com nenhuma teoria da origem e do desenvolvimento do universo. Confessa que de Deus apenas pode vir o bem e a beleza. Apresenta o Criador encantado com a sua obra, ritmada pelos dias e pelas noites, cheia de tudo o que é bom. Nesse poema, o ser humano – homem e mulher – é a coroa da terra, imagem do infinito mistério do amor. Ao sétimo dia, Deus repousou para celebrar a obra admirável da vitória sobre o caos[1]

É uma astuciosa metáfora da legitimação religiosa do descanso semanal: “Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que há neles, mas no sétimo dia descansou” [2].

Estamos perante a sacralização de uma grande instituição civilizacional. O ser humano não existe só para trabalhar. Precisa de tempo para viver e exprimir muitas outras dimensões da sua vida. A abertura a Deus revela a transcendência de todos os seres humanos, sujeitos de direitos e deveres continuamente ameaçados.

Nada, porém, está automaticamente garantido na Casa Comum, como lembrou o Papa Francisco na Laudato SI.

Sem opções éticas para regular os dias e as noites, as relações interpessoais, familiares, sociais, económicas, políticas e religiosas, estamos ameaçados de voltar ao caos.

O universo humano é uma associação frágil de natura e cultura. A vontade de tudo controlar, a obsessão da lei, de tudo regulamentar de uma vez para sempre, a perda do sentido do humor, do dever sem prazer, tornam a vida, uma neura.

Quando as instituições humanas são apresentadas como realizações da vontade de Deus caem na idolatria escravizante. O grande dia da divina liberdade é transformado numa prisão sacralizada.

2. Jesus de Nazaré, ao apresentar-se como o profeta do Reino de Deus, identificou-o com o advento do reino da libertação e da alegria. Teve, por isso, de enfrentar a escrupulosa regulamentação rabínica do Sábado, pois o seu resultado era terrível: nesse dia, os animais tinham mais sorte do que os seres humanos[3]. Jesus resolveu atacar essa perversão, mediante uma sistemática provocação. O chefe de uma sinagoga, indignado com a atitude de Jesus, virou-se para a multidão e disse: há seis dias de trabalho, vinde nesses dia e não no dia de Sábado.

Os narradores do Evangelho são unânimes: era ao Sábado que Jesus fazia o que a religião oficial proibia. Nós, os cristãos, julgamos que é um assunto ultrapassado. É, apenas, uma questão judaica. Fazemos muito mal em reagir assim.

A razão apresentada por Jesus, para fundamentar as suas atitudes, era radical: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. Atacava, assim, o fundamentalismo religioso para todos os tempos e lugares. Deus nunca pode ser invocado para a infelicidade. Não se pode louvar a Deus sem cuidar da libertação, da cura e da alegria dos afectados pelo sofrimento.

As atitudes de Jesus, em relação às prescrições do Sábado, questionam a nossa miopia: as leis e os regulamentos das Igrejas são para o ser humano ou é o ser humano para essas leis?

Muitas das controvérsias, antes, durante e depois do Vaticano II, esquecem esse dado elementar. Não são as leis eclesiásticas que mandam no Evangelho de Jesus. É este que questiona, permanentemente, as leis que inventamos: fazem bem ou mal à libertação dos cristãos? São para fazer desabrochar a nossa alegria ou para nos mergulhar na tristeza?

O enunciado de Jesus tem um alcance filosófico e teológico muito mais amplo, diria, universal. Todas as instituições têm de ser submetidas a esta interrogação: servem ou atraiçoam o desenvolvimento humano?

3. Não pretendo, com a contenda do Sábado, desvalorizar o significado dessa instituição civilizacional. O texto de S. Marcos, seleccionado para a Missa deste domingo, manifesta, pelo contrário, que o próprio Jesus sentiu necessidade de férias para si e para os seus colaboradores: Vinde, retiremo-nos para um lugar deserto e descansai um pouco.

Eram tantos os que iam e vinham, que nem tinham tempo para comer. Foram, pois, de barco, para um lugar isolado, sem mais ninguém. Por desgraça, ao vê-los afastar, muitos perceberam para onde iam. De todas as cidades acorreram, a pé, àquele lugar, e chegaram primeiro do que eles. Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas[4], e lá foram as férias!

Não teve mais sorte com as tentativas de férias no estrangeiro, em Tiro e Sídon. O mesmo evangelista conta que, no território de Tiro, Jesus entrou numa casa e não queria que ninguém soubesse. Não conseguiu. Uma gentia, siro-fenícia de origem, lançou-se aos seus pés e pedia-lhe que expulsasse, da filha, o demónio.

Para entender o desenvolvimento deste texto, importa saber que os judeus tratavam os estrangeiros como cães. Aliás, na versão de Mateus, Jesus esclarece que a sua missão se limitava às ovelhas perdidas da casa de Israel. Por isso, não era justo que se tomasse o pão dos filhos para o lançar aos cachorros.

Neste caso, Marcos é mais simpático: «Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos.»  A mulher não quer saber dessas histórias e diz simplesmente: «Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos».

Jesus ficou rendido: vai, o demónio saiu de tua filha.

A versão de Mateus é diferente e passa-se em público. Jesus reconheceu o ridículo da sua estúpida displicência: «Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se como desejas». Como já tinha dito a um centurião romano: em Israel, nunca vi tanta fé!

Estas reacções, nas suas idas ao estrangeiro, manifestam que também Jesus tinha sido moldado por uma cultura preconceituosa, mas estava aberto ao espanto e à mudança. Em Tiro e Sídon, encontrou o que não podia esperar.

É Domingo, não é Sábado. Não nos podemos conformar com o mundo que temos. Dizemos que somos filhos da ressurreição e não do conformismo. Temos de o provar. Como?



22.07.2018



[1] Gn 1; 2, 1-3
[2] Ex 20, 8-11
[3] Lc 13, 10-17; 14, 1-6; Mt 12, 9-14; Mc 2, 23ss; Jo 5, 8-18
[4] Mc 6, 30-34

MAFARRICO - Laureano - 1959


  Mafarrico



A vinha do verde vinho

Traz a verdade ao de cima

A pinha do verde pinho

Só de olhá-la nos anima.



Viu-se na televisão

A famosa discussão

Que se deu no Parlamento

Provocada por conflitos

Acesos nesse momento

Que trouxe à baila os palitos.



Protestava o deputado

Invocando mil razões

Contra as argumentações

Do ministro que, zangado,

Não gostando dos protestos,

Não economizou gestos

E nem deles fez segredos,

Levantou sobre a cabeça

Os indicadores – os dedos –

Num sinal que disse tudo,

Não é coisa que se esqueça.

O povo, primeiro mudo,

Logo fez a tradução

De tal gesto estranho e raro,

Desatando a rir, é claro.

Resultado: a demissão.



Das hilariantes cenas

Que a Assembleia produziu,

Exibir o par de antenas,

Coisa que nunca se viu,

Não dá muito boa imagem,

Mas é acto de coragem

 – coragem a dois por cento,

Como se pode entender,

Pois coragem a valer

É o que falta em São Bento.



Fez lembrar um mafarrico,

Porém, convencido fico

De que há por lá muitos mais,

Mas não querem dar sinais.



Oh, que desvariação

No coruto da nação!



Lauro Portugal, Versos Desvariados  (prep.)

Família, a boa notícia - Silva Araújo in D M

1.O IX Encontro Mundial das
Famílias realiza-se em Dublin,
de 21 a 26 de agosto. Tem
por tema «O Evangelho da Família:
Alegria para o mundo».
É vontade do Papa Francisco
que «as famílias tenham a possibilidade
de aprofundar a sua reflexão e a
sua partilha sobre o conteúdo da Exortação
Apostólica A Alegria do Amor.
E acrescenta: «Seria possível questionar-
se: O Evangelho continua a ser alegria
para o mundo? E mais ainda. A família
continua a ser uma boa notícia para
o mundo de hoje?»
Salienta depois a importância do amor,
escrevendo: «Desejo pôr em evidência como
é importante que as famílias se interroguem,
frequentemente, se vivem a
partir do amor, para o amor e no amor.
Concretamente, isto significa doar-se,
perdoar-se, não perder a paciência, antecipar
o outro, respeitar-se. Como seria
melhor a vida familiar, se cada dia vivêssemos
as três simples palavras: «com licença
», «obrigado» e «desculpa»!
2. A fim de preparar o encontro foi elaborado
um conjunto de sete catequeses
que, partindo do texto bíblico da perda
e encontro de Jesus no templo, versam
os temas: as Famílias de hoje; as Famílias
à luz da Palavra de Deus; o Grande Sonho
de Deus; o Grande Sonho para todos;
a cultura da vida; a cultura da esperança;
a cultura da alegria.
Redigidas a pensar nos participantes
do referido encontro, constituem
temas para refletir por quem nele participa
e por quem o não pode fazer;
antes e depois do encontro. São muito
atuais. O Grupo de Reflexão Cristã
com quem me encontro periodicamente
decidiu já, na próxima reunião, partilhar
a reflexão que cada um dos elementos
vai fazer com base na primeira
dessas catequeses.
3. Perante situações de crise, que não
são de agora, é importante que os membros
da família saibam como reagir. Não
há casais perfeitos nem famílias perfeitas.
Impõe-se que todos façam um esforço
por se aperfeiçoarem.
4. O Papa acentua a importância do
amor na família. E o que é o amor?
Esta é uma pergunta que todos temos
o dever de nos fazer, porque o conceito
de amor anda muito adulterado. Confunde-
se amor com atração sexual.
Dessa mentalidade se fez eco Augusto
Gil, ao escrever: «O amor em quem
aparece/dizem que faz maravilhas./
Eu nunca vi que fizesse/mais do que
filhos e filhas».
Hoje – o decréscimo da natalidade
o demonstra – em muitos casos nem
filhos e filhas faz. Não passa de exploração
sexual do outro. E quando esta
atinge a saturação, muda-se de parceiro.
5. É urgente, em muitos casos, reabilitar
a palavra amor. Dar-lhe o significado
que realmente deve possuir:
a procura do bem do outro; o sentir-se
responsável pela felicidade do outro, e
não o metê-lo em sarilhos; o viver para
o outro e não à sua custa.
O verdadeiro amor implica renúncia
ao próprio egoísmo. Muitas vezes
exige o sacrifício da própria vontade,
quando esta colide com o legítimo
bem do outro.
Amar é reconhecer no outro a dignidade
de ser humano e de filho de
Deus. É trata-lo como pessoa e não como
objeto que se usa ou se aluga. É ver
no outro um ser igual a si em dignidade
e em direitos. É dialogar com o outro
e não passar a vida a dar-lhe ordens.
Amar é aceitar o outro como ele é:
com as suas qualidades e os seus defeitos.
É fixar-se nas qual idades e ser
compreensivo em relação às limitações.
É, com amor, sem qualquer espécie
de paternalismo lamechas, ajudar
o outro a ser cada vez melhor, a superar-
se. Alegrar-se com os seus êxitos e
encorajá-lo (não humilhá-lo) quando
surgem os fracassos.
6. Há jovens cristãos que, à hora de
decidirem, preferem a simples união
ou o casamento meramente civil, por
medo de assumirem compromissos para
sempre. Ignoram, por certo, o valor
da graça sacramental.
Mas este medo pode ter por base o
mau exemplo recebido de casais que
se aguentam mas se não amam. Que
coexistem mas não convivem. Que,
em vez de se amarem, se ignoram ou
até se infernizam, com agressões físicas
ou verbais.
7. Sai este texto no Dia dos Avós. Para
todos eles, a minha homenagem.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Quem se preocupa com a intolerância anti-religiosa? D M

1.O crente não tem de ser anti-ateu. Será que o ateu terá
de ser anticrente?
Sucede que a novidade hoje já não é o ateísmo; é a
atitude anti-religiosa. O que mais impressiona actualmente
não é haver quem não tenha fé; é haver quem
hostilize quem pretende viver a fé que tem.
2. O regresso da intolerância – assinalado recentemente por
Lídia Jorge – não é um exclusivo da religião.
A intolerância vai assumindo também uma feição cada vez
mais anti-religiosa.
3. No ocidente, esta intolerância não é feita através de uma perseguição
declarada. Ela é tecida sobretudo através de condicionamentos
e depreciações.
Na hora que passa, a religião não é abertamente combatida.
Mas a sua expressão é crescentemente limitada e teimosamente
retorcida.
4. Polarizado o tempo em torno do instante, o perene da mensagem
tende a ser zurzido como retrógrado, desfasado.
As manifestações de fé são, muitas vezes, truncadas e distorcidas.
Há quem as apresente com um ar escarnecedor e zombeteiro.
5. À semelhança dos outros poderes, também o poder mediático
não é favorável à religião.
Em nome de uma presumida neutralidade, opta-se geralmente
por um silenciamento. Este é pontualmente quebrado para expor
aspectos marginais. Ou então – como tem sucedido ultimamente
– para explorar «ad nauseam» algumas fragilidades.
6. Acontece que, dada a sua capacidade para influenciar, os
«media» acabam por formatar a sensibilidade das pessoas acerca
da religião.
São muitos os que validam a mais improvável informação sem
cuidar de conferir a respectiva veracidade.
7. Quem lê os documentos da Igreja? Quando muito, lê-se o
que é dito – e mostrado – sobre tais documentos.
Sem nos apercebermos, não debatemos o que dizem directamente
os Padres, os Bispos e o Papa. Passamos o tempo a discutir o
que sobre eles passa nos jornais, nas televisões e nas redes sociais.
8. Dir-se-á que é a realidade, a que temos de nos habituar.
O problema é que aquilo que é veiculado parece partir de arquétipos
e preconceitos anti-religiosos.
9. Quantas não são as vezes em que temos de coar o que nos
é transmitido, encaminhando os interlocutores para o encontro
com a realidade e com as fontes?
Mas há sempre quem tome uma possibilidade como um facto
consumado. E não falta sequer quem transforme uma mera suspeita
numa definitiva – e impiedosa – sentença.
10. Acresce que nesta intolerância quase ninguém repara.
O direito de não crer é indiscutível. Mas será que o dever de
respeitar quem crê é menos sagrado?
José António Teixeira - Teólogo in Diário do Minho

domingo, 15 de julho de 2018

Jantar mensal do grupo de Viseu- Passado Dia 14

Houve reencontro, houve convívio e muita alegria. Parabéns

SEM MITRA NEM SOLIDÉU Frei Bento Domingues, O.P.


1. Por vezes, confunde-se um profeta com um adivinho. O verdadeiro profeta é sobretudo uma pessoa que vive a graça da lucidez humana e divina na defesa do bem comum. Vê o que a cegueira dos interesses instalados não quer ver nem deixa ver. A denúncia da traição da aliança mística e da aliança social – duas caras da mesma moeda - é o seu tema. Como diz Miqueias, a proposta de conversão exige a instauração do direito e da justiça[1]. As pessoas aduladoras dos poderosos gostam de ser chamadas profetas, mas são, apenas, os seus lacaios.

Na missa de hoje, é dada a palavra ao incómodo Amós que exerceu essa missão, aproximadamente, entre 760 e 745 a.C.. Ele reconhecia a convicção comum aos seus concidadãos, a relação especial entre Iavé e o seu povo, mas tirava daí consequências diametralmente opostas: Deus não é propriedade privada de Israel. Perante Deus, todos os povos estão em pé de igualdade. O antigo Israel tinha, apenas, maiores responsabilidades morais e uma maior exposição aos castigos pelas injustiças que provocava ou consentia[2].

 No tempo da actuação profética de Amós, o reino de Israel tinha atingido o máximo da sua prosperidade, mas o luxo dos ricos insultava a miséria dos oprimidos e o esplendor do culto disfarçava a ausência de uma religião verdadeira. O seu estilo era rude e simples, imagem típica de um homem do campo. Para ele, a prática do povo eleito era pior do que a dos gentios e não se calava perante essa situação.

Então, Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós: «Vai-te daqui, vidente. Foge para a terra de Judá. Aí ganharás o pão com as tuas profecias. Mas não continues a profetizar aqui em Betel, que é o santuário real, o templo do reino». Amós respondeu a Amasias: «Eu não era profeta, nem filho de profeta. Era pastor de gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: Vai profetizar ao meu povo de Israel»[3].

Como já tentei mostrar, várias vezes, nestas crónicas dominicais, o carpinteiro de Nazaré não chamou os doze apóstolos para as delícias do poder nem para aduladores e imitadores dos grandes deste mundo. Consta, no Evangelho de S. Marcos proposto para este Domingo[4], que Jesus os enviou, dois a dois, com poder sobre os espíritos impuros e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. Disse-lhes também: «Quando entrardes numa casa, ficai nela até partirdes dali. Se não fordes recebidos em alguma localidade, se os habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés como testemunho contra eles».

Não será esta uma proposta puramente utópica? Conheço um bispo que sempre procurou mostrar que a utopia é o próprio realismo do profeta de Nazaré.

 2. Já me tenho referido ao Ano Raimon Pannikar, uma originalíssima figura da cultura e da religião da Catalunha, que realizou, na sua pessoa e na sua obra imensa, a maior tentativa de síntese entre o Oriente e o Ocidente.

Ao ler o texto do Evangelho de Marcos, lembrei-me de outro catalão que fez 90 anos no mês de Fevereiro: Pedro Casaldáliga, chamado bispo descalço sobre a terra vermelha[5].

Durante 38 anos viveu e trabalhou no Brasil, primeiro como missionário claretiano e a partir de 1971, como bispo nomeado por Paulo VI. Não é uma cronologia, mesmo a de um bispo, que define uma personalidade.

Pedro Casaldáliga não adoptou a teologia da libertação como uma moda. Ele escolheu-a como forma de vida e de actividade pastoral: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar. 

Quando foi nomeado primeiro bispo da diocese, converteu sua casa, pequena, rural e pobre, na sua sede episcopal, sede do seu povo, sobretudo dos mais desfavorecidos, camponeses sem-terra, pobres, analfabetos e oprimidos por coronéis e políticos.

Celebrava a Eucaristia para os moradores no quintal da sua casa, entre as galinhas e, à noite, deixava sua porta aberta para o caso de alguém, sem casa, precisar de uma cama que estava sempre disponível. Andava de jeans e chinelos. Tinha duas mudas de roupa. Quando tinha de ir às reuniões com o Episcopado, em Brasília, ia de autocarro, numa viagem de três dias, pois esse era o meio de transporte da sua gente. Do aeroporto à sua casa, em São Félix do Araguaia, só se chegava depois de 16 horas de estrada de terra.

Mais tarde lembraria que, no início da sua acção pastoral, faltava tudo: na saúde, na educação, na administração e na justiça. Sobretudo, faltava, na população, a consciência dos próprios direitos e a possibilidade de os reclamar. Acusado de se interessar demasiado pelos problemas "materiais" dos pobres, respondia que não concebia a dicotomia entre evangelização e promoção humana. Decidiu, por isso, o caminho a seguir. O seu lugar não era apenas ao lado dos camponeses sem-terra, mas também o de construir escolas e centros de saúde.

3. Em 1988, o Vaticano convocou-o, para que explicasse a sua proximidade à teologia da libertação e visitasse o Papa João Paulo II, como já o devia ter feito. Apresentou-se, então, em camisa, sem anel e com um colar indígena no pescoço. Disse ao papa: Estou disposto a dar a minha vida por S. Pedro, mas pelo Vaticano, é outra coisa. Ao sair do encontro, declarou à imprensa: O papa escutou-me e não me deu nenhuma repreensão. Poderia tê-lo feito, como também nós o podemos fazer com ele. Acrescentou: O Espírito Santo tem duas asas e a Igreja gosta mais de cortar a da esquerda.

No momento em que se escolhem designers para a indumentária e as insígnias episcopais e cardinalícias, seria bom não esquecer as vozes, antigas e novas, que se interrogaram: sucessores de Pedro e dos Apóstolos ou continuadores da era do imperador Constantino[6]? 

Casaldáliga não precisou desta lição sistematicamente esquecida. Quando a idade o obrigou a apresentar a renúncia ao seu ministério, Roma não lhe pediu para esperar. Casaldáliga fez só um pedido: ser um pároco ao serviço da diocese. Não teve resposta. Foi um colaborador dos dois bispos que lhe sucederam.

Aos noventa anos, vive onde sempre viveu, mas já não da mesma maneira. A sofrer de Parkinson, pouco mais lhe resta para além da rotina habitual: cuidados físicos de manhã e, à tarde, leitura do correio, sem poder responder a todas as mensagens de carinho que lhe enviam, porque já tudo lhe custa.

Querido S. Pedro Casaldáliga, reza por nós.

15. 07. 2018



[1] Mq 6, 8
[2] Francolino Gonçalves, Antigo Testamento e direitos humanos, ISTA nº 6, 1998, p.40
[3] Amós 7, 12-15 
[4] Mc 6, 7-13
[5] Título de uma mini-série que foi dedicada ao bispo Pedro Casaldàliga.
[6] Cf. Yves Congar, O.P., Igreja serva e pobre, ed Logos, Lisboa 1964, pp 65; 131 ss

quarta-feira, 11 de julho de 2018

GRUPO DE VISEU - JANTAR MENSAL DE JULHO DIA 14

Confirmar presença até ao meio dia de 6ª feira.
Podes confirmar a presença site ex-seminaristas combonianos ou para o Amaral, Eduardo ou Sá.
O jantar e ponto de encontro é no café/restaurante do Zé Luis ás 20.00 de sábado, dia 14.

Em meu nome e em nome da Associação dos Antigos Alunos Combonianos
Desejo-vos um Bom Jantar e muita confraternização.
A Pinheiro

domingo, 8 de julho de 2018

NÃO HÁ MILAGRES? (2) Frei Bento Domingues, O.P.


1. O mal resulta da ausência de um bem que deveria existir, seja na natureza, seja no agir humano. A serenidade desta lucidez metafísica tem um inconveniente: ou é linguagem de robot para robots ou um insulto a quem sofre. As ciências estudam as causas desses disfuncionamentos, os processos de os evitar e os remédios da sua cura. Dizem-me que a imortalidade está no horizonte lógico da ciência. A promessa da longevidade e da juventude ilimitadas vai de encontro ao nosso desejo de viver bem, com saúde e sem envelhecimento. Esta conjectura agradável não pode evitar interrogações de carácter social, político, económico, cultural e ético. Os pós-humanistas julgam que essa hora chegará mais depressa do que se imagina. Até lá, mais vale encarar o facto de uma existência limitada que privilegia os laços da amizade e da solidariedade efectiva. A história do sofrimento dos inocentes deita para o caixote do lixo qualquer especulação sobre o mal.

Repete-se, desde Epicuro (séc. III a. C), dos modos mais diversos, que Deus e o mal não podem coabitar. O mal é um escândalo e um problema para qualquer ser humano, mas especialmente para quem é religioso. Um mundo com mal e sem Deus talvez fosse menos problemático, pois ou Deus quer eliminar o mal e não pode, ou pode e não quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer é mau.

 Nunca me impressionou muito essa conversa centrada num Deus encurralado pela lógica totalitária, sem espaço para a responsabilidade humana. 

        O que mais me espanta é a nossa falta de juízo e de bondade. Somos testemunhas de guerras horrorosas. Sabemos que, na maioria dos casos, foram e são, a todos os níveis, frutos do desejo de pessoas e grupos possessos da vontade de dominação económica, política, cultural e religiosa. Em última análise, a resposta à graça da livre conversão à boa e imaginativa hierarquização dos nossos desejos pode ajudar a diminuir a loucura mundana. Encarar a vida como o desenvolvimento de todos os talentos para ajudar, de modo competente, as capacidades dos que não tiveram oportunidades, é talvez um bom caminho para a nova civilização proposta pelo Papa Francisco. Para ele, o mal não é um problema teórico, mas um desafio a enfrentar mediante a praxis humana solidária, cristã. Daí nasce a fonte divina e humana dos verdadeiros milagres.  

2. Diz-se que não há testemunhos do riso de Jesus, mas abundam as referências ao seu requintado humor. O texto escolhido para a liturgia do Domingo passado[1] e o proposto para hoje[2], colocam a questão dos milagres de forma tão pouco convencional que importa analisar.  

No primeiro, numa única narrativa, entre o trágico e o cómico, acontecem dois “milagres” muito improváveis. Segundo o Novo Testamento, o grupo dos fariseus – sobretudo os chefes das sinagogas – não via com bons olhos as inovações do Nazareno. Ora, nesse texto, é precisamente um chefe de sinagoga, chamado Jairo, a pedir, com insistência, a intervenção de Jesus para salvar a sua filha que estava a morrer: vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva. Jesus não se fez rogado e acompanhou o pai da criança, seguido de grande multidão que o apertava por todos os lados. Entretanto, uma mulher extremamente doente que, há doze anos, sofria muito nas mãos de vários médicos e gastara todos os seus bens sem ter obtido qualquer resultado, antes piorava cada vez mais, tendo ouvido falar de Jesus, veio por entre a multidão e tocou-lhe no manto, dizendo consigo: se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada. E ficou.

Não foi um gesto supersticioso, foi um puro acto de fé, isto é, de confiança absoluta.

É verdade que a narrativa é cómica: quando Jesus pergunta quem me tocou, apertado pela multidão, os discípulos acham a pergunta descabida. De facto, Jesus sentiu que algo aconteceu no seu próprio corpo e a mulher, assustada e a tremer pelo que lhe tinha acontecido, disse a verdade. Jesus nem sequer diz que a curou: minha filha a tua fé te salvou. Ao dizer isto, Jesus exprimiu o mais íntimo da relação entre Deus e o ser humano. A coincidência de dois movimentos: o desejo de Jesus de curar – era a sua maneira de viver – e o desejo da mulher de ser curada. A salvação realiza-se no encontro desses dois movimentos. A fé salva porque é a entrega confiante ao amor que a precede. É o abraço de dois desejos: de Deus e da criatura. É, por isso, um exercício de liberdade. Deus deseja, mas não obriga ninguém a reconhecê-lo nos seus sinais.

Quando Jesus diz à mulher foi a tua fé que te salvou, até parece que ele não fez nada. Não é verdade. Como diz o narrador, do corpo de Jesus saiu uma energia real que ele próprio estranhou. Essa graça encontrou-se com um desejo ardente e desesperado. Sem este desejo da mulher Jesus não podia nada.

3. No meio da confusão, vem a notícia da casa de Jairo: a tua filha morreu, não incomodes mais o Mestre.

Jesus ao chefe da sinagoga: Não temas, basta que tenhas fé. Seguido de Pedro, Tiago e João, vendo grande alvoroço com gente que chorava e gritava, atreve-se a uma provocação que até parecia de mau gosto: a menina não morreu, está a dormir. Riram-se dele. Levando consigo o pai e os referidos discípulos, entrou no local onde ela jazia. Pegou-lhe na mão e disse: Menina, eu te ordeno, levanta-te. Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar, pois já tinha doze anos. Ficaram todos muito maravilhados. Jesus recomendou-lhes, insistentemente, que ninguém soubesse do caso e mandou dar-lhe de comer.

Noutros casos, as pessoas que reconheciam em Jesus uma energia estranha atribuíam-na a uma possessão diabólica porque ele não era um observante de convenções religiosas[3].

É essa a questão deste Domingo. Jesus foi à sua terra acompanhado dos discípulos. Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes interrogavam-se acerca da origem das suas palavras e acções prodigiosas, mas ficavam de fora. Porque seria? O conhecimento do estatuto modesto deste carpinteiro e da sua numerosa família secava qualquer interrogação de fundo. O conhecimento que tinham de Jesus era uma ignorância acerca da significação inovadora do que Ele andava a fazer e a dizer. Ao preferirem continuar num ram-ram sem surpresas e sem novos horizontes, ficaram onde sempre estiveram. O ritual foi cumprido e nada aconteceu. Ao contrário do Domingo passado, Jesus ficou espantado com a falta de fé daquela gente.

Nas celebrações actuais da Eucaristia, para que algo aconteça de inovador, é preciso deixar-se convocar para a participação na reforma pessoal, da Igreja e da sociedade. Sem esse desejo activo, Cristo nada pode fazer. Os rituais são cumpridos, mas se as instituições da Igreja continuarem no seu ram-ram e a ignorar os desafios do Papa Francisco, que se pode esperar?

Alguns julgam-se heróis da mudança pelo regresso ao que julgam ser a Santa Missa de Sempre, que nunca existiu como missa de sempre. Andam para trás para se realizarem como estátuas de sal, fruto de uma incurável miopia[4].

08.07.2018



[1] Mc 5, 21-43
[2] Mc 6, 1-6
[3] Mc 3
[4] Jo 9

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Alegrai-vos e exultai - Anselmo Borges

1. Estava eu numa aula sobre uma compreensão holística de saúde e, dirigindo-me a uma aluna, perguntei: "Gostava de ser santa, não gostava?" E ela, aflita e cortante: "Não, nem pensar nisso!". Acrescentei: "No entanto, se pensar bem, é isso que todos queremos ser." E comecei a explicar, começando pelo tema em questão: o da saúde. Eu estou bem, mas bastaria uma unha encravada no dedo mindinho do pé esquerdo para já me sentir mal. A saúde está no funcionamento harmónico de todos os órgãos do corpo. Mas não basta, pois se eu não me der bem comigo, também me sinto mal. Há gente que não pode ver certas pessoas, só de vê-las ficam doentes. Para estar são, é necessária uma relação boa com os outros. E se o que há para contemplar for apenas lixeiras? A saúde requer também uma relação bela e sadia com a natureza. Ah, e com a transcendência... Isso é dito, aliás, nas próprias palavras, no seu étimo. Saúde vem do latim salute, que significa simultaneamente saúde e salvação. Neste contexto de saúde em sentido holístico, são e santo estão em união estreita, como se constata nas línguas anglo-saxónicas: saúde (health, em inglês) em conexão com holy - santo, e, em alemão, heilen - curar --, em conexão com heilig - santo - e Heil - salvação e são; também em português, há a mesma ligação entre são e santo, de tal modo que se diz, por exemplo, um homem são e São João, para dizer que o santo só pode ser um ser humano autêntico, íntegro e pleno. O inglês e o alemão remetem para the whole, o todo holisticamente considerado, isto é, o todo que é mais do que a soma das partes. O mal é que, quando se pensa em santos, se pensa em gente estranha, do "outro mundo", que se dá muito mal com a vida e que se encontram nos altares, torcidos, a olhar de lado e
2. Foi isto que o Papa Francisco veio dizer numa bela Exortação, com o título acima: "Alegrai-vos e exultai" - todos os grandes textos de Francisco estão sob o desígnio da alegria. Porque o Evangelho é uma notícia boa e felicitante. A Exortação é sobre a santidade. E lá está: todos são chamados à santidade, isto é, à plenitude, à perfeição, à alegria, na vida do quotidiano. Deus "pede tudo e, em troca, oferece a felicidade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, aguada e liquefeita" (etimologicamente, medíocre significa o que não subiu até ao cimo, pois ficou a meio da montanha; aguado: vinho adulterado com água; liquefeito, sem solidez, como reflectiu Zygmunt Bauman). "Ser santo não significa revirar os olhos nem viver em êxtase." "O santo não é uma pessoa excêntrica, distante, que se torna insuportável pela sua vaidade, negativismo e ressentimento". "Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade está reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra. És uma consagrada ou um consagrado? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado? Sê santo, amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa. És um trabalhador? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos. És progenitor, avô ou avó? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. És investido em autoridade? Sê santo, lutando pelo bem comum, renunciando aos teus interesses pessoais". Aquela mãe ou aquele pai rumam à santidade quando, em casa, "o seu filho reclama a sua atenção para falar das suas fantasias" e eles, embora cansados, "sentam-se ao seu lado e escutam com paciência e carinho". Francisco defende o que chama a "classe média da santidade", os santos "ao pé da porta", eles vivem perto de nós e são reflexos da presença de Deus: "Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir". "Não tenhas medo da santidade. Não te tirará forças nem vida nem alegria. Não tenhas medo de apontar para mais alto, de te deixares amar e libertar por Deus. A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça de Deus."
A vida é uma missão, que se cumpre na contemplação e na acção. O que não santifica é "um compromisso movido pela ansiedade, o orgulho, a necessidade de aparecer e dominar", "as novidades contínuas dos meios tecnológicos, o fascínio de viajar, as inúmeras ofertas de consumo", menosprezando os momentos de quietude, solidão e silêncio para estar consigo e diante de Deus, ou quando "tudo se enche de palavras, prazeres epidérmicos e rumores a uma velocidade cada vez maior; aqui não reina a alegria, mas a insatisfação de quem não sabe para que vive".
O santo não está nas "redes de violência verbal através da Internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital", procurando "compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança". "Se vivermos tensos, arrogantes diante dos outros, acabamos cansados e exaustos. Mas, quando olhamos os seus limites e defeitos com mansidão, sem nos sentirmos superiores, podemos dar-lhes uma mão e evitamos energias em lamentações inúteis." Por outro lado, a santidade nada tem a ver com "um espírito retraído, tristonho, amargo, melancólico ou um perfil sumido, sem energia. O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor." Porque, mesmo nos momentos mais difíceis, momentos da cruz, nada pode destruir a alegria sobrenatural, que "sempre permanece pelo menos como um feixe de luz que nasce da certeza pessoal de, não obstante o contrário, sermos infinitamente amados por Deus".
Padre e professor de Filosofia
de modo esquisito... Então, a jovem disse: "Sim, pensando bem...".

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