1. Por
vezes, confunde-se um profeta com um adivinho. O verdadeiro profeta é sobretudo
uma pessoa que vive a graça da lucidez humana e divina na defesa do bem comum. Vê
o que a cegueira dos interesses instalados não quer ver nem deixa ver. A
denúncia da traição da aliança mística e da aliança social – duas caras da
mesma moeda - é o seu tema. Como diz Miqueias, a proposta de conversão exige a
instauração do direito e da justiça[1]. As
pessoas aduladoras dos poderosos gostam de ser chamadas profetas, mas são, apenas,
os seus lacaios.
Na missa de hoje, é dada a palavra ao
incómodo Amós que exerceu essa missão, aproximadamente, entre 760 e 745 a.C..
Ele reconhecia a convicção comum aos seus concidadãos, a relação especial entre
Iavé e o seu povo, mas tirava daí consequências diametralmente opostas: Deus
não é propriedade privada de Israel. Perante Deus, todos os povos estão em pé
de igualdade. O antigo Israel tinha, apenas, maiores responsabilidades morais e
uma maior exposição aos castigos pelas injustiças que provocava ou consentia[2].
No tempo da actuação profética de Amós, o
reino de
Israel tinha atingido o máximo da
sua prosperidade, mas o luxo dos ricos insultava a miséria dos oprimidos e o
esplendor do culto disfarçava a ausência de uma religião verdadeira. O seu
estilo era rude e simples, imagem típica de um homem do campo. Para ele, a
prática do povo eleito era pior do que a dos gentios e não se calava perante
essa situação.
Então, Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós: «Vai-te daqui,
vidente. Foge para a terra de Judá. Aí ganharás o pão com as tuas profecias.
Mas não continues a profetizar aqui em Betel, que é o santuário real, o templo
do reino». Amós respondeu a Amasias: «Eu não era profeta, nem filho de profeta.
Era pastor de gado e cultivava sicómoros. Foi o Senhor que me tirou da guarda
do rebanho e me disse: Vai profetizar ao
meu povo de Israel»[3].
Como
já tentei mostrar, várias vezes, nestas crónicas dominicais, o carpinteiro de
Nazaré não chamou os doze apóstolos para as delícias do poder nem para
aduladores e imitadores dos grandes deste mundo. Consta, no
Evangelho de S. Marcos proposto para este Domingo[4], que
Jesus os enviou, dois a dois, com poder
sobre os espíritos impuros e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a
não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com
sandálias e não levassem duas túnicas. Disse-lhes também: «Quando entrardes numa
casa, ficai nela até partirdes dali. Se não fordes recebidos em alguma
localidade, se os habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos
vossos pés como testemunho contra eles».
Não será esta uma proposta puramente utópica? Conheço um bispo que
sempre procurou mostrar que a utopia é o próprio realismo do profeta de Nazaré.
2. Já me tenho referido ao Ano
Raimon Pannikar, uma originalíssima figura da cultura e da religião da
Catalunha, que realizou, na sua pessoa e na sua obra imensa, a maior tentativa
de síntese entre o Oriente e o Ocidente.
Ao ler o texto do Evangelho de Marcos, lembrei-me de outro catalão que
fez 90 anos no mês de Fevereiro: Pedro Casaldáliga, chamado bispo descalço sobre a terra vermelha[5].
Durante 38 anos viveu e trabalhou no Brasil, primeiro como missionário claretiano e a partir de 1971, como bispo nomeado por Paulo VI. Não é uma cronologia, mesmo a de um bispo, que
define uma personalidade.
Pedro
Casaldáliga não adoptou a teologia da libertação como uma moda. Ele escolheu-a como
forma de vida e de actividade pastoral: Nada possuir, nada carregar, nada
pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar.
Quando
foi nomeado primeiro bispo da diocese, converteu sua casa, pequena, rural e
pobre, na sua sede episcopal, sede do seu povo, sobretudo dos mais
desfavorecidos, camponeses sem-terra, pobres, analfabetos e oprimidos por
coronéis e políticos.
Celebrava
a Eucaristia para os moradores no quintal da sua casa, entre as galinhas e, à
noite, deixava sua porta aberta para o caso de alguém, sem casa, precisar de
uma cama que estava sempre disponível. Andava de jeans e chinelos. Tinha duas mudas de roupa. Quando tinha de ir às
reuniões com o Episcopado, em Brasília, ia de autocarro, numa viagem de três
dias, pois esse era o meio de transporte da sua gente. Do aeroporto à sua casa,
em São Félix do Araguaia, só se chegava depois de 16 horas de estrada de terra.
Mais
tarde lembraria que, no início
da sua acção pastoral, faltava tudo: na saúde, na educação, na administração e
na justiça. Sobretudo, faltava, na população, a consciência dos próprios
direitos e a possibilidade de os reclamar. Acusado
de se interessar demasiado pelos problemas "materiais" dos pobres, respondia
que não concebia a dicotomia entre
evangelização e promoção humana. Decidiu, por isso, o caminho a
seguir. O seu lugar não era apenas ao lado dos camponeses sem-terra, mas também
o de construir escolas e centros de saúde.
3. Em 1988, o Vaticano convocou-o,
para que explicasse a sua proximidade à teologia da libertação e visitasse
o Papa João Paulo II, como já o devia ter feito.
Apresentou-se, então, em camisa, sem anel e com um colar indígena no pescoço.
Disse ao papa: Estou disposto a dar a
minha vida por S. Pedro, mas pelo Vaticano, é outra coisa. Ao sair do
encontro, declarou à imprensa: O papa escutou-me
e não me deu nenhuma repreensão. Poderia tê-lo feito, como também nós o podemos
fazer com ele. Acrescentou: O
Espírito Santo tem duas asas e a Igreja gosta mais de cortar a da esquerda.
No
momento em que se escolhem designers
para a indumentária e as insígnias episcopais e cardinalícias, seria bom não esquecer
as vozes, antigas e novas, que se interrogaram: sucessores de Pedro e dos Apóstolos
ou continuadores da era do imperador Constantino[6]?
Casaldáliga
não precisou desta lição sistematicamente esquecida. Quando a idade o obrigou a
apresentar a renúncia ao seu ministério, Roma não lhe pediu para esperar.
Casaldáliga fez só um pedido: ser um pároco ao serviço da diocese. Não teve
resposta. Foi um colaborador dos dois bispos que lhe sucederam.
Aos
noventa anos, vive onde sempre viveu, mas já não da mesma maneira. A sofrer de Parkinson, pouco mais lhe resta para
além da rotina habitual: cuidados físicos de manhã e, à tarde, leitura do correio,
sem poder responder a todas as mensagens de carinho que lhe enviam, porque já
tudo lhe custa.
Querido
S. Pedro Casaldáliga, reza por nós.
15. 07. 2018
[1]
Mq 6, 8
[2]
Francolino Gonçalves, Antigo Testamento e
direitos humanos, ISTA nº 6, 1998, p.40
[4]
Mc 6, 7-13
[5]
Título de uma mini-série que foi dedicada ao bispo Pedro Casaldàliga.
[6]
Cf. Yves Congar, O.P., Igreja serva e
pobre, ed Logos, Lisboa 1964, pp 65; 131 ss
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