segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

A REFORMA DA IGREJA EXIGE A COLABORAÇÃO DE TODOS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Quando se pede, a certas pessoas, uma informação ou uma opinião, a resposta é sempre a mesma: não sei nem quero saber e tenho raiva de quem sabe.

 Se não fosse uma brincadeira, seria uma recusa definitiva de aprender. Quem nunca se engana pode repousar, para sempre, na sua ignorância. Sente-se dispensado de investigar, de estudar e também dispensa assessores. Ficará sempre infalivelmente ignorante.

Quando, no Vaticano I (1870), foi definida a chamada infalibilidade papal, para muitas pessoas, isto equivalia a dizer: sabe tudo e não precisa de aprender, de investigar e, como é crente, pensa que o Espírito Santo o defenderá de todo o erro. Alguém reagiu que, com tanta infalibilidade, já não seria preciso reunir mais concílios ecuménicos. As bibliotecas podiam ser queimadas e encerrar, definitivamente, todas as faculdades de teologia. Bastava uma central telefónica ligada à infalibilidade pontifícia.

Para quem tenha estudado essa decisão conciliar, sabe que não era esse o sentido, embora não deixe de levantar muitas interrogações que nunca foram respondidas de forma totalmente satisfatória[1]. No entanto, talvez não sejam essas discussões que mais preocupam o Papa Francisco.

Ele sabe que não sabe tudo e, por isso, não tem dificuldade em dizer não sei, mas instiga e encoraja, não paralisa, a investigação em todos os domínios. Como não sabe, procura escutar e fazer da escuta um comportamento eclesial. Dessa escuta recíproca, pode nascer uma nova forma de ser humano, de ser religioso, de ser cristão.  Sabe, por outro lado, que não pode fazer tudo sozinho e, por isso, não tem problema nenhum em rever as tarefas de uma Cúria em reforma e descentralizar o governo da Igreja para os bispos, para os párocos, para os leigos. O movimento sinodal é a pirâmide invertida. Como desejava Yves Congar desde o Vaticano II (1963-1965), o tridentinismo, mesmo com muitos ziguezagues, perdeu força, mas ainda não está totalmente vencido.

Não me admira que haja membros da Igreja Católica que recusem as novas orientações deste Papa. Também não me admira que seja considerado a figura de referência, para crente e não crentes, a nível mundial. Ele, porém, não cultiva a «devoção ao Papa». Não procura os aplausos e que as pessoas estejam centradas nele. Por isso, relançou o movimento eclesial de saída para todo o género de periferias. Em vez de aplausos, estimula as pessoas a centrarem-se nos doentes, nos pobres, nos refugiados, nos descartados.

2. Já muitos escreveram que este Papa pôs a Igreja a mexer. Para uns, já mexe de mais; para outros, era preciso um decreto de mudanças de estruturas e mentalidades, isto é, o contrário de uma reforma profunda que envolve mudanças interiores que façam da reforma o fruto de uma sementeira, onde há trigo e joio. O grão de mostarda pode tornar-se um arbusto, mas não é uma floresta. Um pouco de fermento, pode levedar toda a massa, mas é sempre em pequenas porções. São parábolas de esperança, não são dogmas.

Neste momento, já existem cristãos militantes, fervorosos, que começam a recear, depois do tempo da pandemia, propostas sobre propostas, com datas muito próximas umas das outras e em preparação simultânea: Jornada Mundial da Juventude 2023, Sínodo da Igreja 2023, Jubileu 2025 e, em Junho de 2022, o X Encontro Mundial das Famílias.

Estas experiências em curso, por si mesmas, não se contradizem nem se anulam, podem tornar-se todas formas de sinodalidade. O princípio básico, defendido pelo Papa Francisco e pela Comissão Teológica Internacional (CTI), já vem da Idade Média: o que diz respeito a todos deve ser tratado e aprovado por todos (Quod omnes tangit, ab omnibus tractari et approbari debet).

3. Este princípio desafia o paternalismo clerical que não será fácil sem uma reconsideração profunda da relação estrutural do bispo com o seu «rebanho». Isto é essencial na Igreja Católica.

Com a estruturação actual, o episcopado está, em grande medida, desvinculado da Igreja local. O teólogo dominicano Hervé-Marie Legrand vem chamando a atenção, desde há muito tempo, para um defeito que impede a plena realização da visão eclesial mais ampla do Vaticano II.

Legrand identificou duas teologias do episcopado concorrentes: uma baseada no serviço concreto de uma Igreja local; e outra que o vincula, simplesmente, ao colégio episcopal, sem qualquer relação visível a uma Igreja local, concreta.

A estrutura actual do episcopado atenuou, de forma dramática, a relação do bispo com a sua Igreja local. Tenha-se em conta que quase 40% dos bispos actuais – todos os diplomatas eclesiásticos ordenados, muitos burocratas do Vaticano e todos os bispos auxiliares – estão assignados a uma sede titular, isto é, a uma diocese que antes existia e que, hoje, já não existe! Deste modo, tecnicamente, cada bispo é ordenado para servir uma Igreja local, ainda que esta Igreja local não tenha nenhum membro vivo. Como poderá este costume não tornar trivial, insignificante, a relação do bispo com o seu «rebanho»?

A necessária relação do bispo com o seu «rebanho» encontra-se ainda mais debilitada pelo costume, praticamente universalizado, do século XIX, pelo qual, o Vaticano nomeia os bispos das dioceses com uma mínima participação das próprias Igrejas locais.

Esta prática, apesar do ensino conciliar em sentido contrário (LG 27), reforça a impressão de que os bispos são meros delegados do Papa. Por último, é preciso reconhecer a mudança de um bispo de uma sede para outra, por vezes, como uma forma de simples promoção eclesiástica.

Uma das convicções mais partilhadas do cristianismo primitivo referia-se ao direito da Igreja local participar na nomeação do seu bispo, quer por eleição ou aclamação. Num dos primeiros textos que incluem um ritual de ordenação, do século III, atribuído frequentemente a Hipólito de Roma, Tradição Apostólica, encontramos uma insistência em que o bispo seja eleito pelo seu povo. Quase dois séculos mais tarde, o Papa Celestino I (422-432) ainda podia declarar: Não se imponha ao povo um bispo que ele não quer. O Papa Leão Magno (440-461) insistia: Quem preside a todos deve ser eleito por todos.

Esta antiga convicção deveria inspirar uma reflexão sobre a prática actual da nomeação dos bispos e encontrar mecanismos, mais explicitamente sinodais, para incluir os fiéis nos processos de discernimento das nomeações episcopais.

Uma ordenação episcopal não deveria ser uma promoção honorífica ou eclesiástica, mas um chamamento à liderança pastoral de uma Igreja local. Nem mais nem menos[2].

Um Papa, que não sabe nem pode tudo, não dispensa ninguém de participar na construção da sociedade e da Igreja: o que diz respeito a todos deve ser tratado e aprovado por todos.

P.S.: A loucura da guerra e das ameaças de mais guerra regressaram à Europa. Precisamos de todos para fazer a paz.

 

 

27 Fevereiro 2022

 



[1] Cardinal Yves Congar, Église et Papauté. Regards historiques, Cerf, Paris, 2002, pp. 307-315

[2] Cf. Richard R. Gaillardetz, La forma sinodal del ministerio y del orden en la Iglesia, in Selecciones de Teología, nº 240, 2021, pp. 293-300. Ver também

domingo, 6 de fevereiro de 2022

DESCOBRIR A MÚSICA DO EVANGELHO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. É uma banalidade dizer que os Evangelhos provocaram grandes músicos a produzir obras imortais. Como veremos, o Papa Francisco deseja que todos descubram a música do Evangelho, em todas as manifestações da vida.

O Cardeal Jorge Mario Bergoglio, jesuíta, foi eleito Papa a 13 de Março de 2013 e escolheu Francisco de Assis, como inspiração, para o seu pontificado. A razão desta escolha surpreendente não era o de reconduzir a Igreja à Idade Média. Mostrava, pelo contrário, que Francisco de Assis era a figura mais actual do que ele desejava ser e fazer: viver a alegria do Evangelho fora dos esquemas do poder clerical. Francisco não era pobre, fez-se pobre e nunca quis ser clérigo. Era pelo exemplo que queria fazer, de uma Igreja em ruínas, uma nova esperança de liberdade e alegria. O Evangelho, longe de asfixiar o poeta, abria-lhe o mundo como um hino cósmico.

O Papa Francisco não o escolheu para o imitar. As imitações são a negação da criatividade. O santo de Assis tornou-se, para ele, a referência simbólica da reforma da Igreja do século XXI, na escuta atenta a todos os mundos. Um símbolo não é uma receita. É o contrário. Dá que pensar, dá que sonhar e abre, com humor, várias possibilidades e caminhos de futuro.

2. A inspiração de S. Francisco de Assis não foi um devaneio dos começos que, depois, se iria evaporando. Em 2020, o Papa fez, a este respeito, uma confissão que não pode ser ignorada e que passo a transcrever: «Fratelli Tutti, escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se aos seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si. Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.

«Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, S. Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.

«Na sua vida, há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egipto. A mesma exigiu dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor era proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as dificuldades e perigos, S. Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando estiverdes entre sarracenos e outros infiéis (...), não façais litígios nem contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus. No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou contenda e também viver uma submissão humilde e fraterna, mesmo com quem não partilhasse a sua fé.

«Não fazia guerra dialéctica impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus; compreendera que Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus[1]. Foi assim pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna, pois só o ser humano que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas para as ajudar a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai. Naquele mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas»[2].

3. Estas páginas luminosas são, de facto, uma encíclica extraordinária, sobre a fraternidade e a amizade social. Só posso recomendar a sua leitura atenta. Não só para a ler, mas para ser uma fonte de prática social, política, económica e religiosa. Apesar da miopia de certo racionalismo, as várias religiões, em diálogo, podem ser uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da justiça na sociedade.

«Embora a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor nem deixar de despertar as forças espirituais que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral.

«Como cristãos, não podemos esconder que, se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher. Outros bebem de outras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, para o pensamento cristão e para a acção da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos»[3].

O próprio Papa, ao fazer oito anos de pontificado, deslocou-se a Assis para, junto do túmulo de São Francisco, na véspera da sua Memória litúrgica (3. 10. 2020), assinar não apenas a encíclica, mas mostrar a fonte que a inspirou.

Falta ao Papa Francisco ter a atitude que o santo de Assis teve para com as mulheres, na figura de Santa Clara. Francisco e Clara vibravam com a mesma música do Evangelho. Tem uma desculpa. O Papa João Paulo II talvez tenha exorbitado, ao declarar que as mulheres nunca podiam prestar o serviço que os homens prestam, na Eucaristia, ao povo de Deus.

Espero que o Sínodo de toda a Igreja mostre o que o Papa Francisco declarou no seu programa de pontificado: o que sempre assim foi, não tem de ser sempre assim.

 

 

06. Fevereiro. 2022



[1] 1 Jo 4, 16

[2] Fratelii Tutti, nº 1-4

[3] Ibidem, cf. nº 271-277