domingo, 30 de abril de 2023

VIVER NAS FRONTEIRAS Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. O Papa Francisco tem um sentido muito agudo do tempo. Repete que já não estamos em regime de Cristandade. Estamos a viver, não simplesmente uma época de mudanças, mas uma mudança de época e lembra a afirmação de Newman: aqui, na terra, viver é mudar.

Não se trata de procurar a mudança pela mudança nem de seguir as modas, mas é preciso ir recuperando o tempo perdido. Assumiu a observação do Cardeal Martini: a Igreja ficou atrasada duzentos anos[1].

Já, há cinquenta anos, havia quem chamasse a atenção para as resistências à mudança das congregações e ordens religiosas: ou se renovam ou morrem dentro de 150 anos. Bergoglio não se resigna.

Depois de todas as mudanças na preparação do Sínodo 2023-24, na passada quarta-feira, deu um salto histórico. Por muito que digam o contrário, podem manter a designação Sínodo dos Bispos, mas, de facto, é o Sínodo de toda a Igreja: leigos – mulheres e homens – padres e bispos, religiosos e religiosas, jovens e adultos, todos com direito a voto, embora em proporções diferentes. Isto é apenas um começo, mas sem começar não se abre caminho.

Neste Domingo de oração pelas vocações, o Papa insistiu que se trata sempre de vocações com carismas diferentes, mas todas para servir as comunidades e a missão de toda a Igreja a partir das periferias.

Neste contexto, um amigo manifestou-me a surpresa de ler uma mensagem do Cardeal Tolentino de Mendonça a propósito da morte de uma monja dominicana, Mary John, O.P. (22.04.2023). Apesar da notícia ser bastante desenvolvida, queria saber o que representava essa monja e as suas companheiras para um cardeal gastar o seu precioso tempo a evocar essa memória.

Pessoalmente, fiquei muito grato que, nesta quadra da Páscoa, não fosse esquecida a história de uma experiência monacal que tinha sido desenvolvida, durante quatro décadas, no Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas, no Lumiar, em Lisboa.

Os jornalistas António Marujo e Manuel Rodrigues Vaz procuraram entender a originalidade desse fenómeno inovador de vida monacal[2]. Os seus testemunhos continuam um lugar de referência para quem desejar compreender porque razão o Cardeal Tolentino não quis deixar passar em claro uma data que não pode apagar essa original forma de Vida Religiosa.

À medida que o tempo passa – diz Tolentino – «compreendemos melhor o alcance profético da opção que aquelas mulheres cristãs fizeram interpretando os desafios do Concílio Vaticano II, arriscando viver entre nós, de forma fraterna e criativa, um cristianismo de acolhimento, de relação e de futuro. Elas foram, como diz Jesus, vinho novo em odres novos (Mateus 9,17). Escolheram habitar a fronteira não como um lugar de tensão e hostilidade, mas como uma prática humilde de escuta e de reconhecimento. Quando fecho os olhos, vejo-as às quatro sentadas à soleira daquilo que desejamos seja o futuro da Igreja e do mundo».

2. O que será isso de viver na fronteira para desejar que seja esse o futuro da Igreja e do mundo?

Num Capítulo Geral dos Dominicanos, insistiu-se muito que os lugares da pregação eram as fronteiras, as diversas fronteiras da vida humana social e cultural. Mas não se pode pregar nas fronteiras e viver em quadros institucionais intocáveis. Daí, a importância de uma vida democrática no interior da Igreja sempre em reforma.

As Constituições dos diferentes ramos da vida dominicana são revistas periodicamente. A pregação na fronteira exige viver no que nunca tinha sido experimentado. S. Domingos fundou a Ordem dos Pregadores começando pelas mulheres, chamando-lhes santa pregação (1206). Romper com certas formas de clausura não estava, portanto, em contradição com a vida monacal. Era uma evolução indispensável e que o Vaticano II possibilitou.

Como diz o Cardeal Tolentino, «uma das preocupações das Monjas do Lumiar foi que a experiência que viviam se propagasse na diversidade dos itinerários, das formas de existência e das vocações. O mosteiro continuava para além dele mesmo. E, de facto, fizeram-nos a todos herdeiros de uma pergunta que se mantém em aberto: como continuar e multiplicar a beleza e a autenticidade do que ali se viveu?».

Numa comunidade, as tarefas são divididas. Antes de ter sido recebida como monja, Mary John era tradutora em Itália, numa estrutura militar da NATO. Encarregada de anotar o itinerário do Mosteiro, no horizonte internacional da Ordem Dominicana e do pulsar da Igreja, ajudava a ver que o caminho que ali se trilhava estava em sintonia com as raízes da experiência monástica, mas também com o presente. A sua competência como tradutora não foi desperdiçada. Tornou-se, até, uma das principais tradutoras de Yves Congar O.P. O seu nome continua a figurar nas actuais edições inglesas e americanas da obra deste famoso teólogo e grande obreiro do Vaticano II.

Quando se pergunta, como continuar e multiplicar a beleza e a autenticidade do que ali se viveu, importa informar que não está tudo perdido. Os Encontros do Lumiar não foram apenas o momento da sua realização. Foram programados, ano após ano, não só com uma temática multifacetada, mas também com a exigência e o compromisso de que tudo fosse publicado. Frei Mateus Peres, Frei José Augusto Mourão, o padre Tolentino e, sobretudo, a dedicação insubstituível das monjas garantiram que esse património possa continuar a ser visitado e estudado. Não conheço, em língua portuguesa, nada que se possa comparar aos itinerários espirituais, teológicos e pastorais destes Encontros.

3. Os Encontros do Lumiar eram abertos a um público heterogéneo de crentes e não crentes. Começavam com uma conferência, seguia-se um espaço muito belo de debate entre o público e os intervenientes, com tempo para o convívio, saboreando um chá e um bolo, e culminando com a celebração da Eucaristia. De facto, como já dissemos, o mosteiro continuava para além dele mesmo, na vida familiar e profissional dos participantes. Ajudavam a viver e a testemunhar o Evangelho em todas as fronteiras. Nestes Encontros, as monjas possibilitavam as mais diversas formas de vida cristã. Elas e os programadores e frequentadores não constituíam um mundo à parte. Eram uma nova forma de viver numa Igreja aberta a muitos mundos, a muitas fronteiras.

Foram quatro décadas de uma grande variedade de experiências com o contributo de historiadores, de pessoas do cinema, do teatro, da literatura, da filosofia, das ciências, da exegese bíblica, de diversas expressões e buscas espirituais.

De facto, o Cardeal Tolentino – um dos grandes intervenientes nos Encontros dos últimos anos – foi testemunha que a vida da Igreja não está só na ilusão das grandes manifestações com os seus êxitos e fracassos. As grandes descobertas podem realizar-se numa espiritualidade incarnada na vida da cidade e não apenas no isolamento dos grandes mosteiros.

 

 

30 Abril 2023



[1] Cf. Discurso do Papa Francisco à Cúria Romana, no Natal de 2019

[2] Manuel Rodrigues Vaz, O Mosteiro de Santa Maria das Monjas Dominicanas no Lumiar, in Triplov; António Marujo, 7Margens, 05.03.2019

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Para onde estás andando? Pe. Manuel João, mc

 Ano A - Páscoa - 3º Domingo

Evangelho: Lucas 24,13-35
Domingo de Emaús e de Cristo Peregrino

O Grande Domingo e as 7 Páscoas

A Igreja celebra o mistério da Páscoa durante 7 semanas, da Páscoa ao Pentecostes, um período de cinquenta dias, o tempo da "santa alegria", considerado pelos antigos padres da Igreja como "o grande Domingo". Durante todo este tempo, a oração litúrgica era feita de pé, como sinal da ressurreição: "Consideramos que não nos é permitido jejuar ou rezar de joelhos aos domingos. Praticamos a mesma abstenção com alegria desde o dia de Páscoa até Pentecostes" (Tertuliano). 

Estes sete domingos convidam-nos a celebrar a Páscoa... sete vezes (a plenitude!). Se no domingo passado foi a Páscoa de Tomé, hoje é a Páscoa dos dois discípulos de Emaús, narrada por São Lucas! Com isto concluimos os (três) domingos em que o evangelho nos apresenta aparições de Jesus Ressuscitado.

As três aparições em São Lucas

No capítulo 24, o capítulo final do seu evangelho, São Lucas fala-nos de três aparições:
1. a primeira, na manhã da Páscoa, a dos anjos às mulheres, junto do túmulo vazio;
2. a segunda, na tarde do mesmo dia, a aparição do Senhor Ressuscitado aos dois discípulos que caminhavam na estrada de Jerusalém para Emaús; 
3. a terceiro, à noite, a aparição de Jesus aos Onze, em Jerusalém.

As três aparições são para testemunhar a realidade da ressurreição, mas também para evangelizar os discípulos sobre o significado da paixão e morte de Jesús, que os tinha escandalizado e deixado em completa consternação.

A narração das três aparições termina com a ascensão de Jesús ao céu. Note-se bem que tudo isto se passa no mesmo dia, o dia de Páscoa! É um dia exageradamente longo! Como assim? Como se pode conciliar isto com o que narram os outros evangelistas? É preciso lembrar que os evangelhos foram escritos várias décadas mais tarde. Os factos eram então conhecidos no seio das comunidades cristãs, transmitidos oralmente. Os evangelistas, ao escreverem o seu evangelho, têm em conta não só a história, mas também a situação das suas comunidades. Ou seja, eles têm uma intenção teológica e catequética. Aqui São Lucas quer apresentar-nos o que é o domingo típico do cristão. Trata-se de um artificio literário. De facto, no início dos Actos dos Apóstolos ele apresenta as coisas de forma um pouco diferente: "a eles se manifestou vivo depois de sua Paixão, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas do Reino de Deus" (1,3).

Evangelho em miniatura

A narração dos dois caminhantes de Emaús é um dos relatos mais evocativos dos evangelhos. Diz o card. Martini: "Evangelho em miniatura, é uma história onde fé e emoção, razão e sentimento, tristeza e alegria, dúvida e certeza se unem, tocando as cordas mais profundas do leitor, seja ele um crente ou apenas alguém em busca, criando ressonâncias profundas ao desejo de pôr-se em caminho para Aquele que oferece a plenitude da felicidade".

Quem são os dois discípulos?

Um chama-se Cléofas. Segundo uma tradição do século II, Cléofas seria um tio de Jesus, irmão de São José, uma pessoa bem conhecida na comunidade cristã. Do outro discípulo, nenhum nome é dado. Isto permite-nos identificar-nos com ele ou ... com ela! Sim, porque - segundo João 19,25, na versão da Bíblia de Jerusalém -, Cléofas teria Maria, irmã de Maria, a mãe de Jesus, como sua mulher. O outro discípulo, portanto, poderia ser... a sua esposa? 

A viagem a Emaús não é um passeio de lazer, mas sim um regresso à aldeia, ao passado, após a grande desilusão; uma fuga do crucificado, após a estrondosa derrota: "Nós esperávamos que fosse Ele quem havia de libertar Israel".

O tema do caminho é caro a São Lucas. Conversar caminhando é o que Jesús faz na sua "grande viagem" a Jerusalém, que ocupa nada menos que dez capítulos (9.51-19.27). Enquanto Jesus subia a Jerusalém, o lugar da manifestação de Deus, estes dois fogem de lá. A fuga é o pecado original do homem e cada um tem o seu próprio 'Emaús'. Não é um lugar, mas um mecanismo de fuga que se repete frequentemente nas nossas vidas. Qual é o meu Emaús? 

Um companheiro de viagem 

"Enquanto falavam e discutiam, Jesus aproximou-se deles e pôs-se com eles a caminho". Mas eles estavam demasiado tristes e desapontados para O reconhecerem. O Senhor fá-los contar a sua (Sua!) história e com a Palavra da Escritura ajuda-os a relê-la, a compreendê-la; Ele ilumina-a e dá-lhe sentido. E então o coração aquece-se e a esperança regressa: "Não ardia cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?".

É a palavra que interpreta a vida. A nossa visão do sentido da existência, do significado dos acontecimentos da nossa história, tudo depende da palavra que ouvimos. Que palavra é que ouço para reler a minha vida? A do "mundo" ou a de Cristo?

O Senhor ressuscitado segue-nos nos nossos extravios, como o Bom Pastor que procura a ovelha perdida, que se afastou da comunidade. O teólogo P. A. Sequeri diz mesmo que Deus precede-nos até mesmo nos caminhos que nos afastam d'Ele, para nos tecer uma armadilha e assim cair nos seus braços. Ele é "o Deus das mil emboscadas".

Uma presença - ausência!

Atraídos pelo misterioso Peregrino, os dois caminhantes convidam-no a ficar com eles: "Ficai connosco, Senhor, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite". E, ao "partir o pão" (uma expressão usada para a Eucaristia), "nesse momento abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-n'O". Quando o "vêem", finalmente, Ele pode tornar-se invisível. Pois Ele já não está fora deles, mas dentro deles! E regressam a Jerusalém, à comunidade, para partilhar a sua alegria e ser, por sua vez, revigorados pelo testemunho dos demais. Pois a alegria, tal como a fé, é multiplicada pela sua partilha.

Esta história é um belo resumo do domingo, com a sua alusão à comunidade cristã, à liturgia da Palavra que ilumina os acontecimentos da vida, à liturgia eucarística que nos alimenta, e à missão do cristão de testemunhar que Cristo ressuscitou. Somos nós cristãos do Domingo de Páscoa?

P. Manuel João Pereira Correia mccj

Castel d'Azzano (Verona), 21 de Abril de 2023


P. Manuel João Pereira Correia mccj
p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

UM ESTRANHO COMPANHEIRO DE VIAGEM Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Há 49 anos foi derrubada a ditadura em Portugal. As Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril já começaram. Frei Luís de França, O.P. (1936-2016) teve o cuidado de reunir os textos de grupos e individualidades do mundo católico não oficial que maior influência tiveram no período, a vários títulos único, que decorreu entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975. Por razões de ordem pessoal, não quis aparecer como autor dessa rigorosa colheita de 394 páginas[1].

Esta publicação foi precedida de outra muito mais breve, fruto de um grupo de cristãos que, desde os primeiros dias do 25 de Abril, se reuniu, de modo informal e semanalmente, para reflectir sobre o modo de ser cristão e ser Igreja nesse tempo novo.

Para se abalançar a uma reflexão de conjunto sobre a Igreja e a Política, nesse mesmo período, o grupo resolveu estudar de modo paralelo e cronológico esses dois mundos.

Esse estudo iniciado em 20 de Outubro de 1975 vai até ao começo do Verão de 1976. Foi um trabalho que deixou abertas muitas interrogações[2].

São duas obras que não pretendiam fechar a informação e o debate sobre os cristãos e a Igreja, no interior do novo desafio político.

Quando me perguntam – e já foram tantas vezes – onde estava no 25 de Abril, respondo que estava no Congresso Internacional, no VII Centenário de Tomás de Aquino (Roma-Nápoles, 17-24 Abril 1974), que resultou na publicação das Actas, em vários volumes.

Foi nesse Congresso que escutei a comunicação extraordinária do grande especialista, Marie-Dominique Chenu, O.P., – S. Tomás Inovador na Criatividade de um Mundo Novo – e um texto crítico, de Umberto Eco, lamentando que tivessem feito de um incendiário um bombeiro.

Foi pelos meios de comunicação que soube do 25 de Abril e por um telefonema do grande amigo ex-jesuíta, José Sousa Monteiro, autoexilado na Alemanha. Só pude regressar para o 1º de Maio.

Para o que aconteceu entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, remeto para o referido trabalho de Luís de França, onde existem muitas referências à minha intervenção nesse período. Os católicos e o 25 de Abril foi o meu último texto sobre o assunto e não desejo repetir-me[3].

2. Continuamos na Quadra Pascal. A celebração da Páscoa cristã só pode terminar quando desaparecerem todos os cristãos. A Páscoa tornou-se a convicção alargada de que a morte de Cristo não era o fim. Era um novo começo que recuperava o passado, incarnava o presente e abria o futuro à renovação contínua da humanidade.

Esta convicção foi-se formando muito rapidamente. As mulheres, que sempre tinham seguido o Mestre, nunca O abandonaram, mesmo nos dias e nas noites do horror. Contam os textos do Novo Testamento que elas foram bem premiadas. Como já referi, nestas crónicas, foram elas as primeiras surpreendidas pelo Ressuscitado que as encarregou de reunir e de evangelizar os apóstolos que a condenação e a morte dispersaram.

É longo o tempo litúrgico da Páscoa, mais longo ainda é a presença do Ressuscitado, declarada ou clandestina, na vida do mundo. Neste Domingo, somos confrontados com uma construção literária da presença clandestina e declarada de Cristo. A habilidade desta construção é a de colocar a situação dos discípulos entre a decepção e a esperança, os chamados discípulos de Emaús.

A arte do texto coloca os discípulos no primeiro dia da semana. É uma forma de dizer, não só que o tempo já não se conta a partir do Sábado, mas do Domingo, dia do Senhor. É nesse dia que começa a contagem dos dias da semana. A designação desses dias, a partir dos nomes dos deuses pagãos, que noutras línguas persiste, em Portugal desapareceu.

A astúcia do texto é muito mais subtil. É construída num duplo registo: tem de afirmar que o Ressuscitado é Jesus de Nazaré e que, ao mesmo tempo, entrou numa situação completamente nova, sem perder a anterior.

Os discípulos de Emaús vão falando do que tinha acontecido em Jerusalém de uma forma descoroçoada. Nisto, há um estranho que se junta aos discípulos e vai ouvindo essa esperança frustrada, embora as mulheres digam o contrário, mas é dito de mulheres. Não se deu a conhecer e procurou entrar na conversa como alguém mal informado. Então, contaram a esse distraído companheiro de viagem o que tinha acontecido a Jesus de Nazaré.

Jesus não se dá por achado, mas passa a ser Ele a interpretar a significação do acontecido, retomando o passado que eles reconheciam. Quando parecia que a viagem tinha acabado, ofereceram hospitalidade a esse estranho que aceitou imediatamente sem a ter pedido.

Aconteceu algo insólito: o convidado senta-se à mesa como se fosse Ele o dono da casa a oferecer-lhes uma ceia. Nesse momento e nesse gesto, reconhecem quem era, de facto, o companheiro de viagem e, também nesse momento, torna-se invisível: enquanto O viam, não O reconhecem e, quando o reconhecem, deixam de O ver, mas com a certeza que Ele será sempre o clandestino companheiro das nossas viagens.

3. Este ano, celebro com alegria a ressurreição dos Cadernos ISTA (Instituto São Tomás de Aquino), com um novo director – Fr.Gonçalo  Diniz – que tinham deixado de ser publicados durante a pandemia. Agora, ressurgiram em grande como Homenagem ao Frei Mateus Peres. Além de duas Resenhas Biográficas, a de Luiza Cabral e a de Fr. Rui Carlos Lopes, gostei muito de ver publicado o seu excelente Curso sobre São Tomás, as suas Conferências no Mosteiro do Lumiar e alguns Testemunhos.

Destaco, nesta Homenagem, o Curso sobre São Tomás (pp.15-82), para o qual espero muitos leitores estudiosos. O recente Grupo de Estudos sobre S. Tomás de Aquino, no âmbito do ISTA, é um projecto muito importante.

Como dizia o Padre Sertillanges, não basta dizer Senhor, Senhor para entrar no Reino dos Céus. Também não basta dizer, S. Tomás, S. Tomás para entrar no reino criativo da filosofia e da teologia. Há instituições e autores que esquecem o que sobre ele escreveu o seu mais extenso biógrafo, Guilherme de Tocco:

«Frei Tomás, nas suas aulas levantava problemas novos, descobria novos métodos, empregava novas redes de provas e, ao ouvi-lo ensinar uma nova doutrina, com argumentos novos, não se podia duvidar, pela irradiação desta nova luz e pela novidade desta inspiração, que era Deus quem lhe concedeu ensinar, desde o princípio, com plena consciência, por palavra e por escrito, novas opiniões»[4].

Lembro-me, muitas vezes, da citada advertência de Umberto Eco: fizeram de um incendiário um bombeiro. Era também essa a lamentação de Frei Mateus Cardoso Peres.

 

 

23 Abril 2023



[1] 25 Abril – Textos Cristãos – Novembro 25, Edições Ulmeiro, 1977

[2] CERP, Perguntas à nossa Igreja. Igreja e Política do 25 de Abril ao 25 de Novembro, Edições Ulmeiro, 1976

[3] Revista Povos & Culturas, Nº especial, 2014.11.01, UCP

[4] In Vita S. Thomae Aquinatis, nº 14.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Tomé e o seu misterioso gémeo - Pe. Manuel João,mc

 

Ano A - Páscoa - 2º Domingo
Evangelho: João 20,19-31
A Páscoa de Tomé 

Hoje, o segundo Domingo da Páscoa, é a Páscoa de São Tomé! Os temas que o Evangelho nos propõe são muitos: o Domingo (o primeiro dia da semana), a Paz do Ressuscitado e a alegria dos apóstolos, a Missão dos apóstolos (segundo o Evangelho de João), o Pentecostes Joanino, o dom e a tarefa confiada aos apóstolos para perdoar os pecados (pelo qual, há já alguns anos, celebramos o Domingo "da Divina Misericórdia"), a comunidade (da qual Tomé se tinha ausentado!), mas sobretudo o tema da fé. Vou apenas deter-me sobre a figura de Tomé.

Tomé, o nosso gémeo

O seu nome, Tomé, significa 'duplo' ou 'gémeo' (da raiz hebraica Ta'am, grego Dídimo). Tomé ocupa um lugar de destaque entre os apóstolos; talvez seja por isso que lhe foram atribuídos os Actos e o Evangelho de Tomé, apócrifos do século IV, "importantes para o estudo das origens cristãs" (Bento XVI, 27.9.2006). 

Gostaríamos de saber quem é o gémeo de Tomé. Ele poderia ser Natanael (Bartolomeu). De facto, esta última profissão de fé, feita por Tomé, corresponde à primeira, feita por Natanael, no início do evangelho de João (1,45-51). Além disso, o seu carácter e o comportamento são surpreendentemente semelhantes. Finalmente, os dois nomes aparecem relativamente próximos na lista dos Doze (ver Mateus 10,3; Actos 1,13; e também João 21,2). 

Este gémeo incógnito dá lugar à afirmação de que Tomé é "o gémeo de cada um de nós" (Tonino Bello). Tomé consola-nos nas nossas dúvidas como crentes. Nele nos espelhamos e, através dos seus olhos e mãos, nós também "vemos" e "tocamos" o corpo do Ressuscitado. Uma interpretação que tem o seu encanto!....

 

Tomé, um "duplo"?

Na Bíblia, o mais famoso par de gémeos é o de Esaú e Jacob (Génesis 25,24-28), antagonistas eternos, expressão da dicotomia e polaridade da condição humana. Será que Tomé (o 'duplo'!) traz dentro de si o antagonismo desta dualidade? Capaz, por vezes, de gestos de grande generosidade e coragem, enquanto outras vezes é incrédulo e teimoso. Mas quando confrontado com o Mestre, a sua profunda identidade como crente que proclama a sua fé com prontidão e convicção emerge novamente. 

Tomé traz consigo o seu "gémeo". O Evangelho apócrifo de Tomé sublinha esta duplicidade: "Antes eras um, mas tornaste-te dois" (n.º 11). "Jesus disse: 'Quando de dois vos tornardes um, então sereis os filhos de Adão'" (n°105). Tomé é a imagem de todos nós. Também nós carregamos dentro de nós um tal 'gémeo', defensor inflexível e firme das suas próprias ideias, obstinado e caprichoso nas suas atitudes.

Estas duas realidades ou 'criaturas' (o velho e o novo Adão) coexistem mal, em contraste, por vezes em guerra aberta, nos nossos corações. Quem nunca experimentou o sofrimento desta laceração interior?

Agora, Tomé tem a coragem de enfrentar esta realidade. Ele permite que o seu lado sombrio, adverso e "descrente" se revele, e isso leva-o a confrontar-se com Jesus. Ele aceita o desafio lançado pela sua interioridade "rebelde" que exige ver e tocar... Leva-a a Jesus. E, perante as evidências, o "milagre" acontece: os dois "Tomés" tornam-se um só e proclamam a mesma fé: "Meu Senhor e meu Deus"! 

Infelizmente, isto não é o que acontece connosco. As nossas comunidades cristãs são formadas quase exclusivamente pelos 'bons gémeos', submissos, mas também ... passivos e amorfos! A esses corpos falta vitalidade! O facto é que eles não estão presentes em toda a sua 'totalidade'. A parte energética, instintiva, a parte que precisaria de ser evangelizada, não aparece no 'encontro' com Cristo. 

Jesus disse que veio para os pecadores, mas as nossas igrejas são frequentadas pelos 'justos' que ... não sentem a necessidade de se converter! Aquele que deveria converter-se, o outro gémeo, o "pecador", deixamo-lo tranquilamente em casa. É domingo, e ele aproveita para "descansar" e confia o dia ao "gémeo bom". Na segunda-feira, então, o gémeo dos instintos e paixões estará em plena forma para assumir de novo o comando. 

 

Jesus em busca de Tomé

Oxalá Jesus tivesse muitos Tomé! Na celebração dominical, é sobretudo deles que o Senhor vem em busca... Eles serão os seus "gémeos"! Deus procura homens e mulheres "reais", que se relacionam com Ele como são: pecadores que "sofrem" na sua própria carne a tirania dos instintos. Crentes que não têm vergonha de aparecer com este lado incrédulo e resistente à graça. Que não vêm para causar uma boa impressão na "assembleia dos crentes", mas para se encontrar com o Doutor da Misericórdia Divina e ser curados. É destes que Jesus se torna irmão! 

O mundo precisa do testemunho de crentes honestos, capazes de reconhecer os seus erros, dúvidas e dificuldades, que não escondem a sua "duplicidade" atrás de uma fachada de "respeitabilidade" farisaica. 

A missão também precisa de discípulos autênticos e não "de pescoço torcido"! De missionários que olham directamente para a realidade do sofrimento e tocam com as mãos as feridas dos crucificados de hoje!... 

Tomé convida-nos a reconciliar a nossa duplicidade para fazer a Páscoa! 

Palavra de Jesus, segundo o ... Evangelho de Tomé (No. 22.27): “Quando fizerdes de dois um e quando tornardes o interior como o exterior e o exterior como o interior, a parte de acima como a de baixo, e fizerdes do homem e da mulher uma só coisa (...), então entrareis no Reino!”

P. Manuel João, missionário comboniano
Castel d'Azzano (Verona),14 de Abril de 2023

A GRANDE MENTIRA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Não sou historiador do processo da reforma litúrgica desencadeada por Pio XII, em 1946, de forma mais ou menos clandestina para não ter que enfrentar aqueles que, perante qualquer reforma, levantam o muro da repetição do passado: sempre assim foi, sempre assim será. Essa tendência ainda não foi completamente vencida, mas é legítimo dizer que, a partir de 1955, tornou-se irreversível a chamada Reforma da Semana Santa de Pio XII e continuada por João XXIII (1962). Não foi por acaso que o primeiro documento aprovado, no Vaticano II, foi o Sacrosanctum concilium, sobre a Liturgia (04.12.1963). Não sou historiador, mas fui testemunha entusiasta desta reforma.

Neste momento, a celebração da Vigília Pascal está assumida nas paróquias e nas grandes comunidades cristãs, tornando-se habitual o baptismo de adultos convertidos e a renovação das promessas baptismais de quem foi baptizado em criança. A Quaresma não é um fim, ajuda a perceber a verdade da fé cristã, um contínuo processo de ressurreição. Mesmo sob o ponto de vista litúrgico, o tempo pascal é um tempo largo. Se a Igreja deve estar sempre em processo de reforma (semper reformanda) implica que também devia ser esse o estilo de vida dos seus membros: «exorto-vos, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais os vossos corpos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus. Seja este o vosso verdadeiro culto, o espiritual. Não vos acomodeis a este mundo. Pelo contrário, deixai-vos transformar, adquirindo uma nova mentalidade, para poderdes discernir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que lhe é agradável, o que é perfeito»[1].

Este Domingo foi também chamado o Domingo da Pascoela, da Páscoa pequenina. Tempo houve que a celebração da Eucaristia, deste dia, era a chamada Missa in Albis (Missa de Branco). As pessoas baptizadas na Vigília Pascal, para significar que iniciavam uma vida nova, vestiam-se de branco que mantinham durante toda a semana. Maria Velho da Costa (1938-2020) publicou, em 1988, um dos seus grandes livros, Missa in Albis.

Nunca podemos esquecer que a alteração das formas litúrgicas não se destina a construir um belo espectáculo. Tem de procurar envolver os cristãos todos, vencendo o clericalismo, mas isso não basta.

As reformas litúrgicas só têm sentido por criarem um clima, um ambiente de mudança de vida porque a tentação permanente dos cristãos é de se acomodarem.

Esquece-se que os movimentos de renovação da arte religiosa[2] ou arte sacra não estavam desligados dos grandes movimentos de renovação do catolicismo no século XX em vários países: Movimento bíblico, Movimento Patrístico, Movimento litúrgico servido pelas redescobertas históricas e pela renovação musical, diferentes Movimentos culturais que acompanharam a criação literária, todos os Movimentos e tribulações da Acção Católica, Movimento social, nas suas várias expressões, sem esquecer as polémicas em torno dos Padres operários. Tudo isto era acompanhado pelos grandes debates da chamada, impropriamente, Theologie Nouvelle (a verdade da teologia é o debate) que encontrou uma grande expressão de liberdade e criatividade no Concílio Vaticano II (1962-1965). Esse clima de liberdade passou por grandes dificuldades, depois desse Concílio, até ao advento do admirável Papa Francisco.

2. Dir-se-á que alguns desses movimentos foram obra de minorias e, por isso, não tiveram impacto popular. Parece que não há movimento que comece por ser de grandes maiorias, mas sem a ousadia de pessoas e grupos minoritários ficava-se sempre na mesma. O grande horizonte da arquitectura religiosa, assim como do movimento litúrgico, era formar comunidades vivas e não puramente estéticas.

Os movimentos de resistência às mudanças das propostas do Vaticano II ajudam a perceber o que era a situação pré conciliar das celebrações: padre de costas para o povo, recitando um livro em latim. A forma mais acessível, para as pessoas ocuparem esse tempo de escuridão, era rezar o terço. O padre encarregava-se da celebração dos sacramentos, os fiéis diziam, sem entender, o credo mais belo, o Ámen, que significa o empenhamento pessoal com o que acabava de ser celebrado. Mas, se não entendiam a celebração em latim, o Ámen só podia ser uma ficção convencional.

3. Os temas litúrgicos não podem esquecer as condições pessoais e sociais da sua verdade ou da sua grande mentira, título desta crónica.

Como é possível que certas pessoas que se declaram católicas manifestem, por palavras e obras, o ódio e desprezo por quem tem de abandonar o próprio país e procurar, de todas as maneiras, um porto de refúgio? As situações de imigrantes pobres ou perseguidos nos seus países de origem obrigam-nos a recorrer a todos os meios para encontrar um país de acolhimento. Os traficantes de seres humanos fomentam caminhos de vida ou morte para um destino de exploração. Para alguém que se diz católico, participar nessas atitudes é uma declarada mentira.

A denúncia dessa mentira criminosa obriga-nos a nós, portugueses, a não perdermos a memória da emigração forçada, e em condições horríveis, para fugir à guerra e à miséria.

Conheci muitas dessas situações e lembro-me de os dominicanos, em Marselha, pedirem aos dominicanos portugueses para enviarem alguém que pudesse ajudar os emigrantes até conseguirem defender-se da exploração a que estavam sujeitos e encontrarem uma inserção estável e digna.

Portugal, e não só, tem obrigação de não perder a memória de que muitos portugueses tiveram de abandonar o país a salto – muitas vezes por várias tentativas e de serem, frequentemente, abandonados e explorados pelos próprios passadores – para encontrar um destino de liberdade.

Li, por essa razão e com muita alegria, a entrevista que a ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes, deu ao Público na passada segunda-feira (dia 10/04).  Vai tutelar a Agência Portuguesa para as Minorias, Migrações e Asilo (APMMA). Esta criação é o último passo para o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e recolherá os seus funcionários administrativos. A ministra assume que esta solução representa o «novo paradigma de olhar as migrações».

Hoje não temos apenas pessoas a chegar a saber falar ou a perceber alguma coisa de português. Nós temos outras culturas, outras mentalidades. E para mim, uma boa política de migração, numa sociedade democrática e numa sociedade decente, faz-se com a compreensão de quem cá chega e com a certeza de que o nosso quadro constitucional diz que todos são iguais em direitos e deveres. E todos são os que aqui nascem, os que aqui decidem viver e fazer a sua vida. Penso que o papel de Portugal, do ponto de vista da visão mais integradora, no fundo é: nós somos uma nação de várias identidades e temos de nos saber entender, tendo sempre por base o respeito pelos direitos humanos.

Um cristão não pode evitar a interrogação: como posso amar Deus que não vejo e odiar o irmão que vejo?[3].

 

 

16 Abril 2023



[1] Rm 12, 1-2

[2] Não posso deixar de referir a grande obra de João Alves da Cunha, MRAR. Movimento de Renovação da Arte Religiosa. Os anos de ouro da arquitetura religiosa em Portugal no século XX, UCP 2015.

[3] 1Jo 4, 20

quarta-feira, 5 de abril de 2023

A Lei do Burro - Ano A - Pe Manuel João

 

A Lei do Burro - Ano A - Domingo de Ramos e a Paixão do Senhor

Mateus 21,1-11 (bênção das palmas)

Mateus 26,14-27,66 (paixão do Senhor)

 

Com o Domingo de Ramos e a Paixão do Senhor iniciamos a Semana Santa, também chamada a Semana Maior. Após os quarenta dias de preparação, entramos na celebração do mistério da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus (Tríduo da Páscoa). Um mistério tremendo e inefável, sombrio e luminoso, perante o qual ficamos espantados, atónitos e incrédulos: "Quem teria acreditado na nossa revelação?" (Isaías 53:1). A Igreja e os seus filhos vivem esta semana como um retiro espiritual, em comunhão íntima com o seu Senhor. A forma como vivemos estes dias é um dos sinais da profundidade ou não da nossa fé.

 

Domingo de Ramos, o burro e o seu potro

Este domingo tem duas faces, duas partes distintas. A primeira: o rito das palmas, seguido da procissão, caracterizada pela alegria e entusiasmo, sinal profético do triunfo da vida. A segunda: a Eucaristia, com a proclamação da Paixão, marcada pela tristeza, fracasso e morte.

Do evangelho da bênção das palmas (Mateus 21,1-11) gostaria de chamar a atenção para dois dos seus protagonistas: a multidão e o jumento.

Em primeiro lugar, a multidão que acompanha Jesus na sua entrada 'triunfal' em Jerusalém, aclamando-o como o Messias e causando alvoroço na cidade: "Toda a cidade estava agitada e perguntava: "Quem é este homem? E a multidão respondia: 'Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia'". Geralmente identificamos esta multidão, presumivelmente constituída principalmente por galileus, com a multidão que dias mais tarde exigiria a crucificação de Jesus. Pessoalmente, considero esta identificação incorrecta e improvável. Numa cidade que, com os seus subúrbios, tinha cerca de 100.000 habitantes e podia acolher até 200.000 peregrinos na Páscoa, esta multidão de galileus, aliás considerada exaltada, acabaria naturalmente por se dispersar, talvez mesmo desapontada com as suas expectativas messiânicas em relação a Jesus. A multidão que apelava à morte de Jesus, por outro lado, era manipulada pelas autoridades religiosas da cidade e era certamente constituída por habitantes da Judeia. Em qualquer caso, uma "fé" alimentada por um entusiasmo fácil e ambíguo acaba sempre por ser efémera e fundada nas areias do sentimento.

 

O messianismo de Jesus exige uma profunda mudança de mentalidade. É por isso que Jesus retoma uma profecia messiânica esquecida, que apresenta um humilde e manso messias que ao cavalo prefere o burro, um animal de carga (que carrega o peso dos outros) e de grandes orelhas (que escuta): "Eis que a vós vem o vosso rei, manso, sentado num burro e num jumentinho, filho de uma besta de carga" (Zacarias 9:9; ver também Génesis 49:11). Jesus é o Messias que carrega os nossos fardos na cruz: "tomou sobre si os nossos sofrimentos, suportou as nossas dores" (Isaías 53,4). Consequentemente, o cristão deve também fazer o mesmo: "Carregai os fardos uns dos outros: assim cumprireis a lei de Cristo" (Gálatas 6,2). "Porque toda a lei de Cristo é a lei do jumento" (Silvano Fausti).

 

"Quando o cristianismo, a Igreja, cada um de nós, sabendo que o único modo de existência é viver como o jumento, começará a piscar o olho ao 'mundo', aos reis e aos poderosos da terra, desejando viver e ser como eles através do poder, riqueza e sucesso, então uma espécie de trágica hibridização terá lugar. Nós, feitos para viver como jumentos, vamos unir-nos ao cavalo, desde sempre símbolo do poder mundano, e o resultado será encontrarmo-nos como mulas, animais estúpidos, mas acima de tudo "animais estéreis". (Paolo Scquizzato).

 

Memórias pessoais...

O Domingo de Ramos evoca em mim memórias nostálgicas da infância. Rapazes e jovens, aos sábados íamos à montanha à procura de um belo ramo de louro, tão alto quanto possível, que depois decoraríamos com flores. Aos domingos, a igreja parecia uma floresta ondulante, com plantas até vários metros de altura, perfumando todo o interior do templo. Hoje em dia, os ramos são frequentemente tão pequenos e estilizados que são reduzidos a um símbolo "insignificante", como tantos outros elementos da nossa liturgia, infelizmente.

Outra memória remonta à Páscoa de 2002, que eu passei em Jerusalém. No Domingo de Ramos, toda a comunidade cristã descia do Monte das Oliveiras brandindo ramos de oliveira e cantando com alegria e entusiasmo. Lembro-me de algumas crianças palestinianas a atirar-nos pedras. Uma memória que me faz pensar em tantos cristãos que não podem professar livremente a sua fé nesta Páscoa. Eles são 360 milhões (um em cada cinco cristãos em África, dois em cada cinco na Ásia e um em cada 15 na América Latina).

Os meus pensamentos vão também para as muitas celebrações da Páscoa em África, caracterizadas pela juventude e entusiasmo, um sinal de uma nova igreja que avança e traz nova vitalidade ao antigo cristianismo. E nós precisamos mesmo dela!

 

Algumas propostas para interiorizar a Paixão segundo Mateus (26:14-27:66)

A narrativa da paixão é a parte mais antiga dos evangelhos e poderíamos dizer que é a sua espinha dorsal. Os quatro evangelistas seguem a mesma trama, mas cada um tem a sua forma particular de tecer a narrativa da paixão, com diferentes perspectivas teológicas e catequéticas e detalhes particulares. Mateus sublinha o cumprimento das Escrituras, particularmente o "Servo sofredor" do profeta Isaías e o Salmo 21 (22). Jesus antes de ser palavra é ouvido (Isaías 50,5).

 

Uma forma de abordar a longa narrativa da paixão poderia ser fixar a nossa atenção em cada personagem que intervém neste drama (há tantos: entre grupos e indivíduos há cerca de trinta!) e perguntarmo-nos em quem nos vemos espelhados. Cada um de nós tem a sua parte neste drama. Cada pessoa que intervém desempenha um papel no qual a Escritura é cumprida. Que palavra é cumprida em mim?

"Ide à cidade ter com um tal e dizei-lhe: 'O Mestre diz: O meu tempo está próximo; farei a Páscoa em tua casa com os meus discípulos'". Um tal! Como é que ele não tem nome? Porque esse tal sou eu! O Senhor quer fazer a Páscoa comigo. Ele não vem sozinho, mas com os seus! O que devo fazer para o acolher?

 

Arranja-te um galo!

Todos nós temos os nossos momentos de fraqueza e infidelidade. Se não tivermos um "galo" que nos acorde, arriscamo-nos a adormecer no nosso pecado. Este 'galo' é a Palavra de Deus e o cruzar dos nossos olhares com Jesus.

Boa entrada na Semana Santa!

 

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

Castel d'Azzano (Verona) 30 de Março de 2023

 

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