domingo, 28 de novembro de 2021

REPETIR O NOVO TESTAMENTO É SEPULTÁ-LO Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. A grande maioria dos católicos conhece, da Bíblia, os pedacinhos que se lêem nas celebrações dominicais, seja do Antigo seja do Novo Testamento. Isto significa que a maioria não conhece a Bíblia como tem sido estudada pela exegese moderna.

Sob o ponto de vista da sua investigação científica, protestantes, católicos e ortodoxos frequentam, cada vez mais, os métodos modernos de exegese, importantes para não se cair em hermenêuticas arbitrárias. Isto não quer dizer que os pressupostos confecionais não contem, e ainda bem. Neste sentido, não se pode continuar a dizer que a Bíblia é propriedade de qualquer uma das confissões religiosas.

No entanto, continua a ser verdade que o conhecimento das Escrituras é muito reduzido, apesar dos esforços que alguns movimentos desenvolvem para alargar esse conhecimento.

Lamento imenso as homilias que contam pouco com os métodos e os frutos da exegese, mas irritam-me ainda mais aquelas que gastam o tempo a repetir as leituras. Essas repetições são o recurso da preguiça e acabam por anestesiar a atenção da assembleia. Era melhor insistir na formação de bons leitores. Os pregadores da repetição tornam-se os coveiros da novidade crepitante do Evangelho.

Há excepções admiráveis. São fruto de quem não lê só esses pedacinhos da Bíblia, escolhidos e repetidos de três em três anos. As que me parecem admiráveis, são as realizações de quem lê a Bíblia à luz dos acontecimentos e os acontecimentos à luz da interpretação bíblica. São duas dimensões da escuta que se cruzam e se iluminam mutuamente.

Espero do Sínodo de toda a Igreja que as homilias deixem de ser um exclusivo do clero. É fundamental que os leigos assumam a sua vocação de testemunhas do Evangelho todo, na vida toda, e que sejam escolhidas as pessoas que revelem carisma de comunicação, isto é, competência e graça da pregação.

Conheci, ao longo da vida, grandes servidores do Evangelho ao povo cristão, abrindo-o ao diálogo inter-religioso e à escuta de todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não. Tenho de confessar que, neste momento, quem mais me interpela é o estilo do Papa Francisco.

A sua homilia do Domingo passado – dia de Cristo Rei – não repetiu as leituras. Extraiu das leituras, sem violência ou falsos concordismos, um guião vivo para a caminhada dos jovens. Não restringiu a sua intervenção a esse movimento, mas a todos os jovens e não apenas aos jovens porque ele confessa-se um sonhador: Sou um sonhador deslumbrado pela luz do Evangelho e aguardo ansiosamente as visões da noite. E quando caio, encontro em Jesus a coragem de lutar e de ter esperança, a coragem de voltar a sonhar. Em todas as idades.

2. Não ocultou as duas imagens que recolheu dos textos da Missa. A primeira, do Apocalipse de São João, antecipada pelo profeta Daniel na primeira leitura, é descrita pelas palavras: Eis que vem com as nuvens[1]. É uma referência à vinda gloriosa de Jesus como Senhor e fim da história. A segunda imagem é a do Evangelho: Cristo está diante de Pilatos e diz-lhe: Eu sou rei[2]. Faz-nos bem, queridos jovens, parar e contemplar estas imagens de Jesus, no momento em que iniciamos o caminho para a Jornada Mundial da Juventude de 2023 em Lisboa.

Vamo-nos concentrar na primeira: Jesus que vem com as nuvens. Ao dizer isto, podia pensar-se que iria fugir para as nuvens, fugir do real da vida concreta. Não. Esta imagem faz-nos perceber que a última palavra da nossa existência virá de Jesus, não de nós. Ele é aquele que cavalga as nuvens e que, nos céus, manifesta o seu poder[3]: ele é o Senhor, o Senhor que vem do alto e nunca desaparecerá, é aquele que resiste a tudo o que passa, é a nossa confiança inabalável e eterna. Ele é o Senhor.

Esta profecia de esperança ilumina as nossas noites. Diz-nos que Deus vem, que Deus está presente, que Deus está a trabalhar e que Deus dirige a história para ele, para o bem. Ele vem com as nuvens para nos tranquilizar, como se dissesse: Não te deixo só quando a tua vida está envolta em nuvens negras. Estou sempre contigo. Venho para trazer luz e devolver serenidade.

Caros jovens, reparai nas visões da noite! Que significam? Ter um olhar luminoso, mesmo na escuridão. Não deixar de procurar a luz no meio das trevas que muitas vezes carregamos no coração e que vemos à nossa volta. Erguei os olhos do chão, não para fugir, mas para vencer a tentação de permanecer no chão dos nossos medos. É aqui que está o perigo: deixar que os nossos medos nos governem. Olhai para cima, levantai-vos! Já fiz eco deste convite na Mensagem[4] que vos dediquei, queridos jovens, para a caminhada deste ano.

Esta é a tarefa mais árdua, mas também a mais fascinante: levantar-se quando tudo parece estar a desmoronar-se; ser sentinelas capazes de ver a luz durante as visões noturnas; ser construtores entre os escombros – há tantos neste mundo, hoje, tantos – para poder sonhar. E esta é a chave para mim: um jovem que não é capaz de sonhar, coitadinho… envelheceu antes do tempo! Quem sonha não se deixa engolir pela noite, mas acende uma chama, uma luz de esperança que anuncia o dia seguinte. Sonhai. Sonhar é estar vivo e olhar para o futuro com coragem.

(…) Muitos dos vossos sonhos correspondem aos do Evangelho. Fraternidade, solidariedade, justiça, paz são os sonhos de Jesus para a humanidade. Não tenhais medo de conhecer Jesus. Ele ama os vossos sonhos e ajuda-vos a realizá-los. O cardeal Martini disse que a Igreja e a sociedade precisam de sonhadores que nos mantenham abertos às surpresas do Espírito Santo[5]. É isso mesmo! Desejo que sejais um desses sonhadores!

3. A segunda imagem vem da própria celebração desse Domingo: Cristo Rei, com todos os equívocos que, ao longo dos séculos, lhe foram impostos. Jesus Cristo foi preso, acusado, interrogado, ridicularizado, condenado à morte e crucificado pela coligação de Herodes e Pôncio Pilatos, pelas nações pagãs e os povos de Israel[6]. Segundo uma das interpretações aberrantes e de mais sucesso, todos esses actores estavam, no fundo, a executar uma peça urdida por um deus autocentrado: teria sido infinitamente ofendida a sua dignidade divina e para a reparar, era preciso uma vítima humana de alcance divino.

O Papa recusou esse caminho porque esse não era o seu Deus nem o seu Cristo. Recuperou, no entanto, a afirmação da identidade de Jesus perante Pilatos: Eu sou rei. Mas o seu reinado não é para oprimir, para fazer escravos. É para servir a liberdade, a justiça e o amor de todos para com todos. Esta determinação, coragem e liberdade impressiona. Nem Deus nem Cristo reinam pela força. Não têm exército. Eu sou rei, mas deste reino do amor. Eu sou rei, do reino de quem dá a própria vida pela salvação dos outros, de todos.

Na homilia, Bergoglio não sepultou os textos bíblicos. Fez deles uma luz para iniciar os caminhos da Jornada Mundial da Juventude, mas é das novas experiências dos caminhos que nascerá a luz da esperança.

 

 

 

28. Novembro. 2021



[1] Ap 1,7; Dn 7,13

[2] Jo 18,37

[3] Cf. Sl 68, 5. 34-35

[4] Refere-se à Mensagem para a XXXIII Jornada Mundial da Juventude (2021-2023)

[5] Night Conversations in Jerusalem. On the Risk of Faith, p. 61

[6] Act 4, 8-12

domingo, 21 de novembro de 2021

ORGANIZAR A ESPERANÇA Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Quando era criança e adolescente, sabia muito bem quem eram os pobres. Eram homens, de saco às costas, que vinham de longe – ninguém sabia ao certo a sua origem – e batiam às portas dos moradores das aldeias serranas. Rezavam pelas almas dos seus antepassados. A minha avó insistia para que cantassem, porque cantar é rezar duas vezes. A ninguém se recusava a esmola tirada das coisas que todos cultivavam numa duríssima economia de subsistência. Havia uma família que tinha um bocado mais de terra e gado. Não havia pobre que batesse à sua porta e não fosse acolhido à mesa da família que também dispunha de um palheiro onde podiam pernoitar. Eram chamados os pobres do Malheiro. Uns ficavam uns dias; outros, antes de continuarem viagem, ofereciam-se para acompanharem livremente os trabalhos de quem tão generosamente os recebia.

O que, de facto, valia a todas as famílias, eram os que emigravam para atenuar a pobreza daquelas aldeias.  Verifiquei mais tarde o que era a sorte dos que tinham de lutar, na emigração, para não ficarem mal vistos nas terras de origem. Agora, muito desse mundo rural, vai morrendo.

A pobreza e a desigualdade, apesar do desenvolvimento científico e técnico e das lutas sociais e suas organizações, parecem confirmar um dito do Evangelho: pobres sempre tereis entre vós, como se essas situações fossem uma fatalidade.  Não era nada o sentido da afirmação evangélica como mostra o capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Somos todos, de modos diferentes, responsáveis pela situação em que se encontra o mundo dos marginalizados, das pessoas empobrecidas e abandonadas. É a situação daqueles que o Evangelho chama nossos irmãos, que o Papa Francisco retomou na encíclica Fratelli tutti e que a Fundação do mesmo nome quer que se torne um laboratório do futuro[1].

2. Desde há cinco anos, o penúltimo Domingo do ano litúrgico ficou consagrado como Dia Mundial dos Pobres[2]. À primeira vista até pode dar a ideia de uma designação conformista: os pobres também têm o seu dia.

O melhor é dar a palavra ao Papa que, no passado dia 12, explicou, na Reunião de orações e testemunhos, promovida pela Associação Fratello em Assis, como nasceu essa iniciativa. Diz textualmente: Agradeço-vos, porque viestes de tantos países para viver esta experiência de encontro e de fé. Gostaria de dar graças a Deus que inspirou esta ideia do Dia dos Pobres. Uma ideia nascida de uma forma bastante estranha, numa sacristia. Estava prestes a celebrar a Missa e um de vós – o seu nome é Étienne – sabeis quem é? Um enfant terrible.  Étienne deu-me a sugestão: façamos o Dia dos Pobres. Saí e senti que o Espírito Santo, no meu íntimo, estava a dizer-me para o realizar. Foi assim que começou: pela coragem de um de vós de levar as coisas em frente. Agradeço-lhe pelo trabalho ao longo dos anos e pelo trabalho de tantos que o acompanham.

De facto, já é tempo de os pobres terem novamente uma palavra a dizer, porque durante demasiado tempo as suas exigências não foram ouvidas. É tempo de abrir os olhos e ver o estado de desigualdade em que vivem tantas famílias. É tempo de arregaçar as mangas para restituir a dignidade através da criação de empregos. É tempo de se voltar a escandalizar com a realidade de crianças famintas, escravizadas, náufragas, vítimas inocentes de todo o tipo de violência. É tempo de acabar com a violência contra as mulheres e de as mulheres serem respeitadas e não tratadas como mercadoria. É tempo de quebrar o círculo da indiferença e descobrir a beleza do encontro e do diálogo. Chegou a hora de nos encontrarmos. É o momento do encontro. Se a humanidade, se nós, homens e mulheres, não aprendermos a encontrarmo-nos, estamos a caminhar para um fim muito triste.

No Domingo passado, na Basílica de S. Pedro, este Papa voltou, de outra maneira, ao mesmo tema. O Evangelho ajuda-nos a ler a história, se olharmos bem para os seus dois aspectos: as dores de hoje e a esperança de amanhã. Por um lado, evocam-se todas as dolorosas contradições em que a realidade humana vive imersa em cada tempo; por outro, afirma-se que há um futuro de salvação.

E hoje, é como se a Igreja nos dissesse: Pára e semeia esperança mesmo no seio da pobreza. Aproxima-te dos pobres e semeia esperança.

Confessou: Recentemente voltou-me à mente aquilo que costumava repetir D. Tonino Bello, um bispo próximo dos pobres e ele mesmo pobre em espírito: Não podemos limitar-nos a esperar, devemos organizar a esperança. Se a nossa esperança não se traduzir em opções e gestos concretos de atenção, justiça, solidariedade, cuidado da casa comum, não poderão ser aliviados os sofrimentos dos pobres, não poderá ser modificada a economia do descarte que os obriga a viver à margem, não poderão florescer de novo os seus anseios. Compete-nos, especialmente a nós cristãos, organizar a esperança – é uma linda expressão, esta de Tonino Bello: organizar a esperança! Isto é, traduzi-la diariamente em vida concreta nas relações humanas, no compromisso sociopolítico. Segundo a dinâmica que, hoje, nos pede a Igreja, não é só com esmolas que se organiza a esperança.

3. Hoje, Jesus oferece-nos uma imagem simples e ao mesmo tempo sugestiva da esperança: é a imagem das folhas da figueira, que desabrocham sem fazer ruído, assinalando que o verão está próximo. E estas folhas aparecem – sublinha Jesus –, quando o ramo se torna tenro[3]. Irmãos, irmãs, aqui está a palavra que faz germinar a esperança no mundo e alivia a dor dos pobres: a ternura. Compaixão que te leva à ternura. Depende de nós superar o fechamento sobre si mesmo, a rigidez interior, que é a tentação de hoje, dos «restauracionistas» que querem uma Igreja ordenada e rígida. Isto não é do Espírito Santo. Devemos fazer germinar, mesmo dessa rigidez, a esperança. Também depende de nós vencer a tentação de nos ocuparmos apenas com os nossos problemas. É a condição para nos enternecermos com os dramas do mundo e com as suas dores.

À semelhança das folhas tenras da árvore, somos chamados a absorver a poluição que nos rodeia e transformá-la em bem: não adianta falar dos problemas, polemizar, escandalizar-nos… Isto, todos sabemos fazer! O que adianta é imitar as folhas que, sem chamar a atenção, todos os dias transformam o ar poluído em ar puro. Jesus quer-nos conversores de bem: pessoas que, imersas no ar pesado que todos respiram, respondem ao mal com o bem[4]. São pessoas que agem: partilham o pão com os famintos, trabalham pela justiça, elevam os pobres e devolvem-lhes a sua dignidade, como fez um certo samaritano[5].

É, de facto, uma linda expressão, esta de organizar a esperança! A sua poética não é contemplativa. Depende do que fizermos, dia a dia, nas relações humanas, no compromisso sociopolítico e no cuidado da Casa Comum. Os pobres não podem ficar à porta porque é deles o centro da Igreja.

 

 

21. Novembro. 2021



[1] Cf. Manuel Pinto, 7Margens, 22. 10. 2021

[2] Para não multiplicar as citações, recolhi, neste texto, passagens das intervenções do Papa Francisco em torno do Dia dos Pobres, desde Assis à Basílica de S. Pedro.

[3] Mc 13, 28

[4] Cf. Rm 12, 21

[5] Lc 10, 29-37

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

PAPA FRANCISCO, CIDADÃO DO MUNDO (2) Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. No meu entender, o que unifica o percurso polifacetado do Papa Francisco é a luta por uma Igreja outra ao serviço de um mundo outro. Na crónica do Domingo passado, tentei uma leitura desse percurso até 2018. Prometi que não deixaria em branco os anos de 2019 a 2021.

2019 ficou marcado por três grandes acontecimentos. O primeiro foi a assinatura do documento Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência Comum, pelo Papa Francisco e pelo Grão Imame de Al-Azhar, Ahamad al-Tayyeb, em Abu Dhabi. É um documento extraordinário em si mesmo e ficará, para sempre, como referência do que devem ser as relações entre cristãos e muçulmanos. Além de encorajar e fortalecer o diálogo inter-religioso, promove não só o respeito mútuo, como condena, de forma radical, o terrorismo e a violência em nome de Deus. Em nome de Deus só se pode fazer o bem.

O segundo acontecimento não é menos importante. Realizou-se, em Abril, no Vaticano, um retiro espiritual, para os líderes civis e eclesiásticos do Sudão do Sul. Este encontro espiritual foi concluído com um gesto impressionante: Francisco ajoelhou-se e beijou os pés do Presidente da República do Sudão do Sul, Salva Kiir Mayardit, e dos vice-Presidentes presentes, para implorar o fim definitivo da guerra, neste jovem país africano.

No âmbito da busca da unidade dos cristãos, no dia 29 de Junho, o Bispo de Roma doou alguns fragmentos das relíquias de São Pedro a uma delegação do Patriarcado Ecuménico de Constantinopla. Numa Carta ao Patriarca Bartolomeu, o Papa sublinhou: Esta doação representa uma ulterior confirmação do caminho das nossas Igrejas rumo à unidade.

Em Outubro, foi realizado, no Vaticano, o Sínodo Especial para a Região Pan-Amazónica, dando origem à Exortação Apostólica Querida Amazónia, em 2020. O Papa Francisco não reproduz o documento final. A sua Exortação é uma ressonância pessoal perante os sonhos que ainda não foram realizados: sonho social, sonho cultural, sonho ecológico e sonho eclesial. O resultado mais importante deste Sínodo não foi o que conseguiu. Ficou muito aquém do que era preciso sob o ponto de vista da inculturação da Igreja, por exemplo. Mas teve o mérito extraordinário de colocar a Amazónia no horizonte de todas as Igrejas e de todos os povos.

Ainda em 2019, o Papa não esqueceu as reformas económicas no interior da Cúria que tinham dado aso a muitos e vergonhosos escândalos. Em Agosto, renovou, com um quirógrafo, o Estatuto do IOR, nomeando um Revisor externo para controlar as contas do Banco Vaticano. Esta decisão deu origem, em fins de 2020, a um novo Estatuto da Autoridade de Informação Financeira, chamada Autoridade de Supervisão e Informação Financeira (ASIF), como também ao Motu próprio: Sobre determinadas competências em matéria económica e financeira, com o qual transferia para a Administração do Património da Sé Apostólica (APSA) a gestão dos fundos e bens da Secretaria de Estado, inclusive o Óbolo de São Pedro, a fim de reforçar o controlo da Secretaria para a Economia.

Em 2020, perante o confinamento exigido pela pandemia da Covid-19, ficou na memória do mundo inteiro o Papa Francisco, sozinho, na Praça de S. Pedro deserta e chuvosa, rezando a Statio Orbis por todas as vítimas da Covid-19. É verdade que a tecnologia ajudou a encurtar as distâncias, proporcionando a Audiência Geral e a oração do Angelus, transmitidas ao vivo por áudio-vídeos, assim como as Missas matutinas na Casa Santa Marta.

Foi realizado o Primeiro Encontro, em Assis, sobre a Economia de Francisco. Envolveu mais de 2.000 empresários e estudantes de economia com menos de 35 anos de todos os continentes. Não basta denunciar a economia que mata. É fundamental provar que são possíveis outros caminhos, outras práticas.

Em 2021, em relação ao papel das mulheres na liturgia, o Papa, mediante um Motu Próprio, modificou o cânone 230 § 1 do Código de Direito Canónico, sobre o acesso das pessoas do sexo feminino ao ministério do Leitorado e do Acolitado. É alguma coisa, mas ainda é muitíssimo pouco.

Neste ano, merece realce a Mensagem do Papa para o XXIX Dia Mundial do Doente (11 de Fevereiro).

Passados 15 meses de pandemia, o Papa retoma a sua missão de levar a luz e a beleza do Evangelho ao mundo, escutando-o atentamente. O seu olhar está sempre voltado para as periferias, onde a "fraternidade e a esperança" são urgentes, como aconteceu com a Viagem Apostólica ao Iraque, de 5 a 8 de Março. Pela primeira vez, um sucessor de Pedro visitou aquele país dilacerado com muitos encontros, sem esquecer o Grão-Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani, em Najaf.

 Em Setembro, o Papa Francisco, o Patriarca Ecuménico Bartolomeu e o Arcebispo de Cantuária, Justin Welby, assinaram uma Mensagem para a Protecção da Criação. O Papa Francisco só não tem gestos ecuménicos quando não pode. A sua actuação é marcada pelo nós, seja em problemas intra-eclesiais, seja em função de toda a humanidade.

Em Outubro, aconteceu algo de absolutamente extraordinário: a abertura oficial de um Sínodo, já não exclusivo dos bispos, mas de toda a Igreja. Atrevo-me a dizer que esta é a decisão mais importante de todo o pontificado de Bergoglio. Porquê? Porque é o golpe radical, no clericalismo, que pretendia mandar e não servir a missão de toda a Igreja no mundo contemporâneo.

O Papa, ao longo destes oito anos, deu o exemplo – por gestos, atitudes e palavras – do que deve ser a Igreja de comunhão, de participação e de missão. Agora, como diz o Documento Preparatório, chegou o momento de viver um processo eclesial participativo e inclusivo, que ofereça a cada um – de maneira particular àqueles que, por vários motivos, se encontram à margem – a oportunidade de se expressar e de ser ouvido, a fim de contribuir para a construção do Povo de Deus[i]. Como nada disto acontece automaticamente, é preciso responder: quero participar ou quero perder este momento extraordinário?

2. O Sínodo obriga a que todos abandonem a sua zona de conforto. Vai dar muito que fazer, mas tem de reservar tempo para pensar, para investigar, para ir ao fundo das questões, para saber ouvir os outros. Sem esse trabalho, a tentação de respostas prontas a servir torna o percurso sinodal um somatório de vulgaridades.

Anselmo Borges acaba de publicar mais um livro importante: O Mundo e a Igreja. Que Futuro?[ii]. Pela vastidão e profundidade dos temas abordados, representa um contributo indispensável para pensar e agir o itinerário do Sínodo. O título interrogativo desta obra não é apenas um título. É um método de pensar.

Sei que deixei muita coisa importante, na enumeração da crónica do Domingo passado e desta, do que aconteceu nestes oito anos do pontificado de Francisco.

Hoje é o Dia Mundial dos Pobres. Seria uma traição a esta iniciativa do Papa, se este dia servisse para acalmar o nosso abandono dos que são pobres todos os dias. Não é com a generosidade de um dia que se vence o egoísmo de todos os dias[iii].

 

14. Novembro. 2021



[i] Sínodo 2021-2023, dois documentos fundamentais: Documento Preparatório e Vademecum para o Sínodo sobre a Sinodalidade que podem ser encontrados no Google.

[ii] Gradiva, 2021

[iii] Cf.  Mensagem do Papa Francisco para o V Dia Mundial dos Pobres, 14. Novembro. 2021

domingo, 7 de novembro de 2021

PAPA FRANCISCO, CIDADÃO DO MUNDO (1) Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Disseram-me, há dias, com ar de censura, que eu estava sempre a denunciar a papolatria, quando pontificavam outros Papas, mesmo os mais recentes. Agora, pelo contrário, manifesto uma devoção desmedida pelo Papa Francisco.

 Esse meu leitor tem razão, mas só até certo ponto. Já me tinha acontecido com João XXIII. Quando eu estava em Roma, não perdia nenhuma das suas audiências públicas porque via nele uma aparição divina em carne e osso, na mais profunda e ilimitada fraternidade. Era dele que Eduardo Lourenço dizia, com toda a razão: santo subito. Muito antes dessa expressão ser usada a propósito e a despropósito. Para mim, João XXIII era o pároco que abraçava o mundo inteiro com amor e humor.

Quando Bergoglio foi eleito Papa, escrevi um artigo, no meio da euforia geral, a dizer que não acreditava nele. Provocou um alarido porque parecia dar a ideia de que eu não alinhava nem com as suas ideias nem com o estilo da sua prática pastoral. Nada mais falso. Tive de explicar que o terminal da virtude teologal da fé é o mistério insondável de Deus e não uma criatura por mais santa que se apresente. Aliás, como cristãos não acreditamos nos enunciados do Credo, mas naquele para quem eles apontam. Continuo a rejeitar a papolatria e o Papa Francisco é quem a tem fustigado com mais veemência.

S. Tomás de Aquino observou que não era correcto dizer, creio na santa Igreja Católica, como se reza no Credo, por uma razão simples: a Igreja não é divina, não é Deus. Só é possível aceitar essa afirmação do Credo, interpretando-a como habitada pelo Espírito Santo que santifica a Igreja. Com este pressuposto, pode usar-se a expressão corrente sem erro[1].

Joe Biden, católico, é presidente dos EUA, mas não é o presidente apenas dos católicos. É o segundo caso na história dos presidentes dos EUA. O outro foi John Kennedy. Acontece que certos católicos, padres e bispos, queriam que lhe fosse negada a Comunhão Eucarística por causa das suas posições em relação à lei da despenalização do aborto. Ele   próprio já declarou que, pessoalmente, se opõe ao aborto, mas não deve impor as suas opiniões como presidente dos EUA. 

A indignação de um conjunto de bispos contra o Papa Francisco cresceu com o atrevimento de, não só ter recebido Joe Biden, mas sobretudo por o reconhecer como verdadeiro católico e de lhe dizer para continuar a comungar. Segundo os meios de comunicação, Biden agradeceu ao Papa a sua defesa dos mais pobres e daqueles que lutam contra a perseguição, a fome e o conflito, além da liderança na luta contra a mudança climática e o fim da pandemia por meio da vacinação e de uma recuperação económica igualitária.

De qualquer modo, a Comunhão Eucarística não é um prémio, como várias vezes disse o Papa Francisco. A celebração da Missa não é realizada por santos canonizados, mas por pecadores. Do princípio ao fim, os cristãos confessam que precisam da misericórdia de Deus, isto é, não querem continuar na mesma. Desejam receber força e coragem para viverem os dias bons, os dias maus e os dias cinzentos. Recebem a realidade viva de Cristo, que passou fazendo o bem, para poderem seguir o caminho de conversão permanente. A comunhão é um viático, a melhor das companhias.

2. Bergoglio foi eleito Papa a 13 de Março de 2013. Já existem alguns balanços do que foram estes oito anos. Começou o seu pontificado a partir da base da pirâmide para a inverter. Por isso, centrou-se nas periferias existenciais e geográficas do mundo, para que a originalidade da alegria do Evangelho chegasse realmente a todos. A Igreja, pela qual Bergoglio iria continuar a lutar, é uma Igreja em saída, de portas abertas, um hospital de campanha, sem temer a revolução da ternura e o milagre da delicadeza.

A Vatican News[2] tentou enunciar e caracterizar as intervenções do percurso pastoral do Papa, ano a ano. Nos limites desta crónica, só podemos destacar alguns passos dessa longa caminhada que muitos julgavam que seria muito curta, devido à idade e à saúde precária. O que sempre o acompanhou e acompanha, como uma obsessão, é o cuidado do outro, sobretudo dos mais esquecidos e descartáveis.

Começou (2013) por trocar a Residência Apostólica pela Casa de Santa Marta, onde passou a morar e onde podia encontrar as pessoas mais diversas para partilhar a mesa e a Eucaristia. Publicou logo o manifesto do seu pontificado, Evangelii gaudium: o movimento cristão só tem sentido se for a procura da alegria para todos. Foi também, nesse ano, que partiu para a reforma da Cúria Romana, revendo a sua Constituição.

Ainda em 2013, realizou quatro viagens apostólicas com a marca que seria a de todo o pontificado: a Lampedusa, Rio de Janeiro (JMJ), Ilha da Sardenha e Assis.

Desencadeou, no ano de 2014, um movimento em torno da problemática das famílias que culminou na Exortação Apostólica Amoris Laetitia (Alegria do Amor) e provocou muita polémica. Criou a importante Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores.

A acção diplomática levou-o à iniciativa de realizar o Encontro com Shimon Peres (Israel) e Mahmoud Abbas (Palestina), nos Jardins do Vaticano. Promoveu o restabelecimento das relações diplomáticas entre os EUA e Cuba.

Em 2015, o grande acontecimento foi a publicação da Encíclica Laudato Si’ sobre a ecologia integral para que todos cuidemos da Casa Comum, em que a preocupação com a natureza, a equidade com os pobres e o compromisso da sociedade são inseparáveis: é São Francisco a falar no século XXI e Bergoglio, o cidadão de todos os mundos, levou à ONU a mensagem central desta Encíclica.

2016 é o ano dedicado a descobrir que Deus manifesta o seu poder, perdoando: Deus é Misericórdia, não é o deus dos exércitos. Aconteceu também algo de inédito: o Papa encontrou-se, em Cuba, com o Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia, Kirill e assinaram uma Declaração conjunta sobre as questões mais prementes da actualidade.

Em 2017, na sede da ONU, a Santa Sé foi um dos primeiros países a assinar e ratificar o Tratado sobre proibição das Armas nucleares. Foi também instituído o Dia Mundial dos Pobres contra a pobreza.

2018 ficou marcado por dois acontecimentos: a nível pastoral, foi o Sínodo dos Jovens, que provocou a Exortação Apostólica, Christus vivit (2019); a nível diplomático, destaca-se o Acordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China, assinado em Pequim, a 22 de Setembro, sobre a nomeação dos Bispos. Em 2020, o acordo foi renovado por dois anos.

2018 foi também o ano das denúncias sobre os abusos sexuais de menores na Igreja Católica. A luta contra os abusos continuou, em 2019, com um Encontro de Cúpula, no Vaticano, sobre a tutela de menores, do qual nasceu o Motu próprio, Vos estis lux mundi, que obriga os clérigos e religiosos a denunciar os abusos: cada diocese deve ter um sistema, facilmente acessível ao público, para acolher as denúncias. Além do mais, em Dezembro, com um Rescrito, o Papa aboliu o Segredo pontifício para os casos de abuso sexual.

Neste imperfeito registo, ficaram em branco os anos de 2019 a 2021. Fica a promessa de que não ficarão, assim, eternamente.

 

 

 

07. Novembro. 2021



[1] Cf. Suma Teológica, II-II q. 1 a. 2 e a. 9

[2] Vatican News, 13. O3. 2021