1. No
meu entender, o que unifica o percurso polifacetado do Papa Francisco é a luta
por uma Igreja outra ao serviço de um mundo outro. Na crónica do Domingo
passado, tentei uma leitura desse percurso até 2018. Prometi que não deixaria em
branco os anos de 2019 a 2021.
2019 ficou
marcado por três grandes acontecimentos. O primeiro foi a assinatura do
documento Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a Convivência Comum,
pelo Papa Francisco e pelo Grão Imame de Al-Azhar, Ahamad al-Tayyeb, em Abu
Dhabi. É um documento extraordinário em si mesmo e ficará, para sempre, como
referência do que devem ser as relações entre cristãos e muçulmanos. Além de
encorajar e fortalecer o diálogo inter-religioso, promove não só o respeito
mútuo, como condena, de forma radical, o terrorismo e a violência em nome de
Deus. Em nome de Deus só se pode fazer o bem.
O segundo acontecimento não é menos importante.
Realizou-se, em Abril, no Vaticano, um retiro espiritual, para os líderes civis
e eclesiásticos do Sudão do Sul. Este encontro espiritual foi concluído com um gesto
impressionante: Francisco ajoelhou-se e beijou os pés do Presidente da
República do Sudão do Sul, Salva Kiir Mayardit, e dos vice-Presidentes
presentes, para implorar o fim definitivo da guerra, neste jovem país
africano.
No âmbito da
busca da unidade dos cristãos, no dia 29 de Junho, o Bispo de Roma doou alguns
fragmentos das relíquias de São Pedro a uma delegação do Patriarcado Ecuménico
de Constantinopla. Numa Carta ao Patriarca Bartolomeu, o Papa sublinhou: Esta
doação representa uma ulterior confirmação do caminho das nossas Igrejas rumo à
unidade.
Em Outubro, foi
realizado, no Vaticano, o Sínodo Especial para a Região Pan-Amazónica, dando
origem à Exortação Apostólica Querida Amazónia, em 2020. O Papa
Francisco não reproduz o documento final. A sua Exortação é uma ressonância
pessoal perante os sonhos que ainda não foram realizados: sonho social, sonho cultural,
sonho ecológico e sonho eclesial. O resultado mais importante deste Sínodo não
foi o que conseguiu. Ficou muito aquém do que era preciso sob o ponto de vista
da inculturação da Igreja, por exemplo. Mas teve o mérito extraordinário de
colocar a Amazónia no horizonte de todas as Igrejas e de todos os povos.
Ainda em 2019,
o Papa não esqueceu as reformas económicas no interior da Cúria que tinham dado
aso a muitos e vergonhosos escândalos. Em Agosto, renovou, com um quirógrafo, o
Estatuto do IOR, nomeando um Revisor externo para controlar as contas do Banco
Vaticano. Esta decisão deu origem, em fins de 2020, a um novo Estatuto da
Autoridade de Informação Financeira, chamada Autoridade de Supervisão e
Informação Financeira (ASIF), como também ao Motu próprio: Sobre
determinadas competências em matéria económica e financeira, com o qual
transferia para a Administração
do Património da Sé Apostólica (APSA) a gestão dos fundos e bens da Secretaria de Estado, inclusive o Óbolo de
São Pedro, a fim de reforçar o controlo da Secretaria para a Economia.
Em 2020, perante o confinamento exigido pela
pandemia da Covid-19, ficou na memória do mundo inteiro o Papa Francisco,
sozinho, na Praça de S. Pedro deserta e chuvosa, rezando a Statio Orbis
por todas as vítimas da Covid-19. É verdade que a tecnologia ajudou a encurtar
as distâncias, proporcionando a Audiência Geral e a oração do Angelus,
transmitidas ao vivo por áudio-vídeos, assim como as Missas matutinas na Casa
Santa Marta.
Foi realizado o Primeiro Encontro, em Assis, sobre a Economia
de Francisco. Envolveu mais de 2.000
empresários e estudantes de economia com menos de 35 anos de todos os
continentes. Não basta denunciar a economia que mata. É fundamental
provar que são possíveis outros caminhos, outras práticas.
Em 2021, em relação ao papel das mulheres na liturgia,
o Papa, mediante um Motu Próprio, modificou o cânone 230 § 1 do Código
de Direito Canónico, sobre o acesso das pessoas do sexo feminino ao ministério
do Leitorado e do Acolitado. É alguma coisa, mas ainda é muitíssimo pouco.
Neste ano, merece realce a Mensagem do Papa para o
XXIX Dia Mundial do Doente (11 de Fevereiro).
Passados 15 meses de pandemia, o Papa retoma a sua
missão de levar a luz e a beleza do Evangelho ao mundo, escutando-o atentamente.
O seu olhar está sempre voltado para as periferias, onde a "fraternidade e
a esperança" são urgentes, como aconteceu com a Viagem Apostólica ao
Iraque, de 5 a 8 de Março. Pela primeira vez, um sucessor de Pedro visitou
aquele país dilacerado com muitos encontros, sem esquecer o Grão-Aiatolá Sayyid
Ali Al-Husayni Al-Sistani, em Najaf.
Em Setembro, o
Papa Francisco, o Patriarca Ecuménico Bartolomeu e o Arcebispo de Cantuária,
Justin Welby, assinaram uma Mensagem para a Protecção da Criação. O Papa
Francisco só não tem gestos ecuménicos quando não pode. A sua actuação é
marcada pelo nós, seja em problemas intra-eclesiais, seja em função de
toda a humanidade.
Em Outubro, aconteceu algo de absolutamente
extraordinário: a abertura oficial de um Sínodo, já não exclusivo dos bispos,
mas de toda a Igreja. Atrevo-me a dizer que esta é a decisão mais importante de
todo o pontificado de Bergoglio. Porquê? Porque é o golpe radical, no
clericalismo, que pretendia mandar e não servir a missão de toda a Igreja no
mundo contemporâneo.
O Papa, ao longo destes oito anos, deu o exemplo – por
gestos, atitudes e palavras – do que deve ser a Igreja de comunhão, de participação
e de missão. Agora, como diz o Documento Preparatório, chegou o momento
de viver
um processo eclesial participativo e inclusivo, que ofereça a cada um – de
maneira particular àqueles que, por vários motivos, se encontram à margem – a
oportunidade de se expressar e de ser ouvido, a fim de contribuir para a
construção do Povo de Deus[i].
Como nada disto acontece automaticamente, é preciso responder: quero participar
ou quero perder este momento extraordinário?
2. O
Sínodo obriga a que todos abandonem a sua zona de conforto. Vai dar muito que
fazer, mas tem de reservar tempo para pensar, para investigar, para ir ao fundo
das questões, para saber ouvir os outros. Sem esse trabalho, a tentação de
respostas prontas a servir torna o percurso sinodal um somatório de
vulgaridades.
Anselmo
Borges acaba de publicar mais um livro importante: O Mundo e a Igreja. Que
Futuro?[ii].
Pela vastidão e profundidade dos temas abordados, representa um contributo
indispensável para pensar e agir o itinerário do Sínodo. O título interrogativo
desta obra não é apenas um título. É um método de pensar.
Sei
que deixei muita coisa importante, na enumeração da crónica do Domingo passado
e desta, do que aconteceu nestes oito anos do pontificado de Francisco.
Hoje
é o Dia Mundial dos Pobres. Seria uma traição a esta iniciativa do Papa,
se este dia servisse para acalmar o nosso abandono dos que são pobres todos os
dias. Não é com a generosidade de um dia que se vence o egoísmo de todos os
dias[iii].
14. Novembro. 2021
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