1. Disseram-me,
há dias, com ar de censura, que eu estava sempre a denunciar a papolatria,
quando pontificavam outros Papas, mesmo os mais recentes. Agora, pelo
contrário, manifesto uma devoção desmedida pelo Papa Francisco.
Esse meu leitor tem razão, mas só até certo
ponto. Já me tinha acontecido com João XXIII. Quando eu estava em Roma, não
perdia nenhuma das suas audiências públicas porque via nele uma aparição divina
em carne e osso, na mais profunda e ilimitada fraternidade. Era dele que
Eduardo Lourenço dizia, com toda a razão: santo subito. Muito antes dessa
expressão ser usada a propósito e a despropósito. Para mim, João XXIII era o
pároco que abraçava o mundo inteiro com amor e humor.
Quando Bergoglio foi eleito Papa, escrevi um
artigo, no meio da euforia geral, a dizer que não acreditava nele. Provocou um
alarido porque parecia dar a ideia de que eu não alinhava nem com as suas
ideias nem com o estilo da sua prática pastoral. Nada mais falso. Tive de
explicar que o terminal da virtude teologal da fé é o mistério insondável de
Deus e não uma criatura por mais santa que se apresente. Aliás, como cristãos não
acreditamos nos enunciados do Credo, mas naquele para quem eles apontam. Continuo
a rejeitar a papolatria e o Papa Francisco é quem a tem fustigado com mais veemência.
S. Tomás de Aquino observou que não era
correcto dizer, creio na santa Igreja Católica, como se reza no Credo,
por uma razão simples: a Igreja não é divina, não é Deus. Só é possível aceitar
essa afirmação do Credo, interpretando-a como habitada pelo Espírito Santo que
santifica a Igreja. Com este pressuposto, pode usar-se a expressão corrente sem
erro[1].
Joe Biden, católico, é presidente dos EUA, mas
não é o presidente apenas dos católicos. É o segundo caso na história dos
presidentes dos EUA. O outro foi John Kennedy. Acontece que certos católicos,
padres e bispos, queriam que lhe fosse negada a Comunhão Eucarística por causa
das suas posições em relação à lei da despenalização do aborto. Ele próprio
já declarou que, pessoalmente, se opõe ao aborto, mas não deve impor as suas
opiniões como presidente dos EUA.
A indignação de um conjunto de bispos contra o Papa
Francisco cresceu com o atrevimento de, não só ter recebido Joe Biden, mas
sobretudo por o reconhecer como verdadeiro católico e de lhe dizer para
continuar a comungar. Segundo os meios de comunicação, Biden agradeceu ao Papa a
sua defesa dos mais pobres e daqueles que lutam contra a perseguição, a fome e
o conflito, além da liderança na luta contra a mudança climática e o fim da
pandemia por meio da vacinação e de uma recuperação económica igualitária.
De qualquer modo, a Comunhão Eucarística não é
um prémio, como várias vezes disse o Papa Francisco. A celebração da Missa não
é realizada por santos canonizados, mas por pecadores. Do princípio ao fim, os
cristãos confessam que precisam da misericórdia de Deus, isto é, não querem
continuar na mesma. Desejam receber força e coragem para viverem os dias bons,
os dias maus e os dias cinzentos. Recebem a realidade viva de Cristo, que
passou fazendo o bem, para poderem seguir o caminho de conversão permanente. A
comunhão é um viático, a melhor das companhias.
2. Bergoglio foi eleito Papa a 13 de Março de
2013. Já existem alguns balanços do que foram estes oito anos. Começou o seu
pontificado a partir da base da pirâmide para a inverter. Por isso, centrou-se nas periferias existenciais e geográficas do
mundo, para que a originalidade da alegria do Evangelho chegasse
realmente a todos. A Igreja, pela qual Bergoglio iria continuar a lutar, é uma
Igreja em saída, de portas abertas, um hospital de campanha, sem temer a
revolução da ternura e o milagre da delicadeza.
A Vatican
News[2]
tentou enunciar e caracterizar as intervenções do percurso pastoral do Papa,
ano a ano. Nos limites desta crónica, só podemos destacar alguns passos dessa
longa caminhada que muitos julgavam que seria muito curta, devido à idade e à
saúde precária. O que sempre o acompanhou e acompanha, como uma obsessão, é o cuidado
do outro, sobretudo dos mais esquecidos e descartáveis.
Começou (2013)
por trocar a Residência Apostólica pela Casa de Santa Marta, onde passou a
morar e onde podia encontrar as pessoas mais diversas para partilhar a mesa e a
Eucaristia. Publicou logo o manifesto do seu pontificado, Evangelii gaudium: o movimento cristão só tem sentido se
for a procura da alegria para todos. Foi também, nesse ano, que partiu para a
reforma da Cúria Romana, revendo a sua Constituição.
Ainda
em 2013, realizou quatro viagens apostólicas com a marca que seria a de todo o
pontificado: a Lampedusa, Rio de Janeiro (JMJ), Ilha da Sardenha e Assis.
Desencadeou,
no ano de 2014, um movimento em torno da problemática das famílias que culminou
na Exortação Apostólica Amoris Laetitia (Alegria do Amor) e provocou
muita polémica. Criou a importante Comissão Pontifícia para a Tutela de
Menores.
A
acção diplomática levou-o à iniciativa de realizar o Encontro com Shimon Peres
(Israel) e Mahmoud Abbas (Palestina), nos Jardins do Vaticano. Promoveu o
restabelecimento das relações diplomáticas entre os EUA e Cuba.
Em
2015, o grande acontecimento foi a publicação da Encíclica Laudato Si’
sobre a ecologia integral para que todos cuidemos da Casa Comum, em que a
preocupação com a natureza, a equidade com os pobres e o compromisso da
sociedade são inseparáveis: é São Francisco a falar no século XXI e Bergoglio,
o cidadão de todos os mundos, levou à ONU a mensagem central desta Encíclica.
2016
é o ano dedicado a descobrir que Deus manifesta o seu poder, perdoando: Deus é Misericórdia,
não é o deus dos exércitos. Aconteceu também algo de inédito: o Papa
encontrou-se, em Cuba, com o Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia, Kirill e
assinaram uma Declaração conjunta sobre as questões mais prementes da
actualidade.
Em
2017, na sede da ONU, a Santa Sé foi um dos primeiros países a assinar e
ratificar o Tratado sobre proibição das Armas nucleares. Foi também instituído
o Dia Mundial dos Pobres contra a pobreza.
2018 ficou marcado por dois
acontecimentos: a nível pastoral, foi o Sínodo dos Jovens, que provocou
a Exortação Apostólica, Christus vivit (2019); a nível diplomático,
destaca-se o Acordo Provisório entre a Santa Sé e a República Popular da China,
assinado em Pequim, a 22 de Setembro, sobre a nomeação dos Bispos. Em 2020, o
acordo foi renovado por dois anos.
2018 foi também o ano das denúncias
sobre os abusos sexuais de menores na Igreja Católica. A luta contra os abusos
continuou, em 2019, com um Encontro de Cúpula, no Vaticano, sobre a tutela de
menores, do qual nasceu o Motu próprio, Vos estis lux mundi, que obriga
os clérigos e religiosos a denunciar os abusos: cada diocese deve ter um
sistema, facilmente acessível ao público, para acolher as denúncias. Além do
mais, em Dezembro, com um Rescrito, o Papa aboliu o Segredo pontifício
para os casos de abuso sexual.
Neste imperfeito registo, ficaram em
branco os anos de 2019 a 2021. Fica a promessa de que não ficarão, assim,
eternamente.
07. Novembro. 2021
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