1. Na
crónica do Domingo passado, referi-me a um belo livro de Eduardo Paz Ferreira, Como
salvar um mundo doente[1],
com o qual aprendi muito. Cumpre o que o título promete. Agora, acabo de
ler o livro mais recente de Thimothy Radcliffe, A arte de viver
em Deus[2].
Este título poderia sugerir a banalidade de mais uma obra para a estante de
auto-ajuda espiritual. O subtítulo, A imaginação cristã para elevar o real,
também não parece muito convidativo. Puro engano. O próprio autor está
consciente dessa possível confusão. Quando as pessoas se afastam das igrejas, é
uma tentação «vender» um Cristianismo bonito e seguro, não demasiado exigente.
Talvez uma espiritualidade gentil seja mais simpática e sedutora: acender uma
vela e ver onde se está no eneagrama da personalidade. O apelo da fé torna-se
apenas uma sugestão sem compromisso.
Julga que semelhante
publicidade e comercialização do Cristianismo está condenada a falhar,
sobretudo, porque a espiritualidade cristã é tudo, menos uma segurança. Uma fé
domesticada atraiçoa o que constitui o seu âmago que é a aventura da
transcendência. O Cristianismo é atractivo porque nos convida a ser ousados e a
entregar incondicionalmente as nossas vidas. É a porta aberta para o infinito.
A imaginação é a porta pela qual nos furtamos aos limites de qualquer modo
reducionista de ver a realidade.
Já
esperava que fosse um livro de grande qualidade teológica, respirando as difíceis
questões da nossa humanidade contemporânea. Conheço e admiro muito o autor,
traduzido em 24 línguas. Encontrei-o em vários países, onde ele tinha sido
convidado para abrir esperança em situações muito complexas.
Timothy
Radcliffe é um dominicano, nascido
em Londres, em 1945. Entrou na Ordem dos Pregadores em 1965. Estudou em Oxford
e Paris. Como biblista e teólogo, ensinou e ensina em Oxford. Tornou-se um dos
mais notáveis autores cristãos contemporâneos. É Doutor Honoris Causa por doze
Universidades. Percorreu o mundo como Mestre-Geral dos Dominicanos, entre 1992
e 2001. Actualmente, é consultor do Pontifício Conselho «Justiça e Paz», sendo
solicitado para conferências e palestras em muitos países.
Não é um autor desconhecido entre nós. A
Paulinas Editora já traduziu e publicou 7 das suas obras, entre elas, Ser
cristão para quê? (2011), Prémio Michael Ramsey 2007, para a melhor obra
teológica.
2. Com A arte
de viver em Deus, o autor pretende indagar como é que a fé cristã
pode ter sentido para os nossos contemporâneos. Os crentes não habitam numa
bolha imaginária e bizarra, desligada das experiências e das aspirações das
demais pessoas. Como se trata de escolher a vida, a plenitude da vida, as suas
crenças nucleares cruzam-se com as esperanças e os sonhos de todos os que querem
viver, e não apenas sobreviver. Qualquer pessoa, independentemente da sua
crença (ou falta dela), que entenda a complexidade do estar vivo, de se enamorar,
do mergulhar na confusão, do tentar começar uma outra vez a sua vida, do
encarar a doença e a velhice, pode também ajudar os cristãos a captar o sentido
da nossa fé.
A ciência pode, neste
esforço, ser nossa aliada. Albert Einstein foi um pensador tremendamente
imaginativo. A imaginação é mais importante do que o conhecimento. De facto, o
conhecimento restringe-se a tudo o que agora conhecemos e compreendemos, ao
passo que a imaginação abarca o mundo inteiro, e tudo quanto existirá para
conhecer e compreender. Segundo Paul Kalanithi, a ciência talvez forneça o modo
mais útil de organizar dados empíricos que se podem reproduzir, mas este seu
poder é incapaz de apreender os aspectos mais centrais da vida humana:
esperança, medo, amor, ódio, beleza, inveja, honra, fraqueza, esforço,
sofrimento, virtude.
É um livro prodigioso porque
percorre as grandes e diversas expressões do Cristianismo que alargam, elevam e
libertam a imaginação e como também são libertadas por ela. O Cristianismo
fecunda e é fecundado pela imaginação aplicada à vida, de muitos modos. Ao libertar
das rotinas, mesmo das pseudo-religiosas, manifesta as virtualidades criativas
da fé cristã.
Confessa: há muito que
desejava escrever este livro, pois o grande desafio que nós, cristãos,
enfrentamos é justamente o de saber como tocar a imaginação dos outros. Muitos
jovens afastam-se do Cristianismo, não porque terminantemente não creiam, mas
porque o consideram enfadonho! O Evangelho é frequentemente experimentado como
um rosário de imposições e não como um desafio! Queria escrever um livro que
fosse capaz de comunicar a emocionante aventura da fé.
Não sei como será em
Portugal, mas aqui em Inglaterra vive-se uma verdadeira obsessão com a
segurança. Não se pode correr riscos, para não se ser processado! Mas o
Cristianismo é intrinsecamente a religião do risco, como na verdade o é todo o amor.
Um dos meus irmãos, Herbert McCabe, gostava muito de dizer: Se amares,
poderás magoar-te e até sofrer a morte. No entanto, se não amas, já estás morto!
Se demonstrarmos que a nossa fé nos convida a seguir o perigoso caminho de
Jesus, e que isso nos poderá custar tudo, as pessoas até podem não a acolher,
mas jamais a poderão recusar por ser enfadonha!
3. Escreveu
este livro há seis anos, quando teve cancro pela primeira vez. Estava nervoso
por não o ter escrito tão bem quanto desejaria, mas confiava que seríamos
suficientemente gentis para ignorar as suas falhas. Neste momento, com cancro
novamente, está a escrever um outro livro: um diálogo com um jovem dominicano
polaco, perito em Sagrada Escritura, sobre as conversas com Deus na Bíblia.
Manifesta-se muito feliz e
grato pela tradução deste seu livro, pois, sangue português corre nas suas
veias: um dos meus bisavôs veio, há 150 anos, estudar para Inglaterra, casou
com uma inglesa e acabou por cá ficar.
A arte
de viver em Deus foi apresentada, na Brotéria, no passado dia 20, pelo
Padre José Frazão Carreira, SJ, ex-Provincial, que fez um erudito prefácio à
tradução portuguesa, e pelo Frei José Nunes, O.P., Provincial dos dominicanos.
Chamei prodigioso a este
livro. Não é exagero. Cada capítulo podia ser um livro, mas o conjunto é uma
biblioteca. É um incêndio da imaginação de Timothy e de todos os autores que
convoca.
Timothy Radcliffe, ao
concluir esta sua obra mais recente, escreve: Comecei por perguntar como é que
poderemos tatear a imaginação dos nossos contemporâneos seculares com a
nossa fé cristã. Como todos somos filhos desta era e modelados pelas suas
percepções seculares da realidade, também os cristãos, no esforço de viver
vidas coerentes, precisam de reflectir sobre o modo como a luz da fé sustentará
tudo o que fazemos e somos. Nada de humano é estranho a Cristo.
Aquilo que arruína a fé em
Deus não é o ateísmo ou o secularismo, em quanto tal, mas aquilo que Adolfo
Nicolás, SJ, chamou a globalização da superficialidade.
Disse que A arte
de viver em Deus é um livro prodigioso, não só porque desfaz muitos
preconceitos acerca daquilo em que os cristãos acreditam, mas sobretudo, porque
abre, em todos os capítulos, janelas para o passado, para o presente e para o
futuro.
31. Outubro. 2021
Sem comentários:
Enviar um comentário