1. Mais
vale tarde do que nunca! Havia a impressão de que as lideranças da Igreja, em
Portugal, andavam meio distraídas e não seria a convocatória do Sínodo de toda
a Igreja que as iria despertar. Engano. No Domingo passado, fomos surpreendidos
por intervenções notáveis de alguns bispos e a adesão explícita de quase todas
as dioceses ao projecto
desafiante de Bergoglio.
Dir-se-á que foi apenas a
voz da hierarquia, mas o interessante está precisamente aí. Foi ela a dizer
claramente que este Sínodo é para acabar com o domínio clerical. Vale a pena
registar essas vozes.
Destaco as homilias de D.
Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, e a do Cardeal António Marto, bispo de Leiria-Fátima[i].
D. Jorge disse
explicitamente: a Igreja «passou por muitas configurações, mais ou menos de
índole piramidal e de estrutura de sociedade perfeita onde tudo acontece e se
idealiza a partir de uns tantos pré-escolhidos. Como Povo de Deus temos sido
conduzidos por Pastores dotados de autoridade divina e agora as exigências de
uma nova era mostra que o Povo de Deus tem de interpretar a responsabilidade
que Deus lhe concede. Devemos passar da passividade e obediência a um
compromisso corresponsável no pensar e no agir».
Apontou o que deve ser uma
Igreja no nosso mundo contemporâneo: «vamo-nos ouvir, mas abramos, também, os
ouvidos ao mundo. Não são suficientes os nossos raciocínios intra-eclesiais.
Teremos de sair e não basta sair para ouvir como cronistas. Precisamos de sair
para ouvir a voz do mundo a partir de dentro. Deixemos que ele fale e nos
aponte as nossas incongruências e infidelidades. Pode custar muito e poderemos
não ter vontade de ouvir. Mergulhemos no mundo e deixemos que manifeste as suas
insatisfações e expectativas. Não coloquemos filtros. (…) Aproximemo-nos.
Saiamos das nossas zonas de conforto. Já estamos cansados de ouvir as nossas
vozes e as nossas apreciações. Escutemos e, sobretudo, inventemos maneira para
que o façam. Seremos capazes? (…) Precisamos de nos preparar para concretizar
uma conversão sinodal. Não bastará falar por falar. Oferecer ideias
interessantes e inovadoras, mas depois continuamos com os mesmos processos de
uma igreja autorreferencial e piramidal, com a verdade em poucas pessoas».
No santuário de Nossa
Senhora do Alívio, pediu «que suscite no coração dos sacerdotes, membros dos
conselhos económicos, catequistas, pessoas da liturgia e da caridade e,
sobretudo, nas equipas arciprestais e paroquiais este compromisso de ressuscitar
uma aurora de esperança. Não podemos continuar no pessimismo e alarmismo, no
desencanto e desânimo, no deixar correr esperando que apareça um Messias
salvador. Um mundo novo deve nascer e é preciso que nasça por nosso intermédio.
Poderá parecer que a Igreja não tem grandes possibilidades. A história mostra
que foi nos momentos de crise que a Igreja manifestou a originalidade da sua
mensagem».
Da diocese Leiria-Fátima,
ouvimos o Cardeal António Marto de quem já sabíamos a sua adesão à linha do
Papa Francisco. Agora, em três momentos convergentes, foi muito incisivo, quer
na Nota Pastoral (14/10/21), quer na Assembleia Diocesana, quer na homilia
(17/10/21). Fez apelo ao «discernimento comunitário» para fazer face «às
tentações do clericalismo, da rigidez e do sectarismo», e encontrar «consensos
num processo espiritual de escuta.
«Esta atitude marca uma visão da Igreja: convida
a passar de um modelo de Igreja clerical, a um modelo sinodal, baseada na
corresponsabilidade de todos os fiéis leigos, fiéis padres, fiéis bispos, e
fiel sucessor de Pedro».
Lembrou
que, já na comunidade apostólica, Jesus Cristo teve de contrariar os seus
discípulos, movidos pela ambição de lugares de honra, privilégios, prestígio, fama,
poder e grandeza, que só podia gerar rivalidades entre eles. A Igreja tinha de
entender o mestre que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida
por todos[ii].
Insistiu que «a meta
deste caminho [sinodal] é uma Igreja missionária, de portas abertas e em
direção às periferias. Estamos muito habituados a dizer vinde à Igreja,
mas Jesus disse ide. Até o Papa Francisco diz que a Igreja tem Jesus
prisioneiro e ele quer sair, quer ir às periferias».
Não tenhamos medo: «O Espírito Santo está activo na
vida da Igreja para tornar vivo o evangelho e pode acender um fogo mesmo com
lenha molhada», mas não dispensa a nossa colaboração. Não basta começar. Dois
anos passam depressa e são incompatíveis com a nossa lentidão. Seria criminoso
deixar passar esta oportunidade.
2. É sempre possível
que surja uma tensão entre o local e o global. Importa que a tensão não se
transforme em conflito fratricida. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco,
lembrando a Evangelii Gaudium, acautela esse perigo. Reconhece que «é
preciso prestar atenção à dimensão global para não cair numa mesquinha
quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o que é local, que
nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas impedem de cair em
algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos vivam num universalismo
abstrato e globalizante (...); o outro extremo é que se transformem num museu
folclórico de “eremitas” localistas, condenados a repetir sempre as mesmas
coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e de apreciar a
beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras. É preciso olhar para o
global, que nos resgata da mesquinhez caseira. Quando a casa deixa de ser lar
para se tornar confinamento, prisão, resgata-nos o global, porque é como a causa
final que nos atrai para a plenitude. Ao mesmo tempo temos de assumir
intimamente o local, pois tem algo que o global não possui: ser fermento,
enriquecer, colocar em marcha mecanismos de subsidiariedade. (…) Separá-los
leva a uma deformação e a uma polarização nociva»[iii].
3. O
Papa, nas suas intervenções, é um exemplo da simultânea atenção às questões
locais e globais. Lembro, nesse sentido, o seu notável Discurso
aos Membros do Corpo Diplomático[iv]
e a recente Mensagem para os Movimentos Populares[v].
São peças essenciais para que o Sínodo não perca de vista os muitos mundos que
se albergam sob a palavra mundo.
Para Bergoglio, a pandemia mostrou-nos «a fisionomia dum mundo doente não só por
causa do vírus, mas também no meio ambiente, nos processos económicos e
políticos, e mais ainda nos relacionamentos humanos. [A pandemia] salientou os
riscos e as consequências duma forma de viver dominada pelo egoísmo e a cultura
do descarte e colocou-nos perante uma alternativa: continuar pela estrada
percorrida até agora ou empreender um novo caminho».
É este novo
caminho que importa descobrir, na própria dinâmica do caminho sinodal, se
queremos ressuscitar uma aurora de esperança.
[i] Manuel
Pinto apresentou um panorama interessantíssimo do que aconteceu no lançamento
do Sínodo nas dioceses portuguesas. Cf. 7Margens de 18/10/2021.
[ii] Mc. 10,
35-45
[iii] Fratelli
Tutti, 142
[iv] 08 / 02
/ 2021. Sente-se a importância deste Discurso no belo livro de Eduardo Paz
Ferreira, Como salvar um mundo doente, Edições 70, 2021
[v] 16 / 10
/ 2021
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