sábado, 18 de janeiro de 2025

A mulher na Igreja. O nó do problema. 1 Anselmo Borges 17 Jan 2025

 A mulher na Igreja. O nó do problema. 1

Anselmo Borges

17 Jan 2025

1 É sabido quanto o Papa Francisco se tem empenhado na renovação da Igreja,

também no sentido de colocar mulheres em altos cargos de governo na Cúria. Mesmo

assim, constituiu uma autêntica revolução o anúncio feito pelo Boletim da Santa Sé no

passado dia 6, dia da Epifania: pela primeira vez na História do Vaticano uma mulher foi

nomeada prefeita (ministra) do Dicastério (Ministério) para os Institutos de Vida

Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica. Trata-se da irmã Simona Brambilla, das

Missionárias da Consolata, licenciada e doutorada em Psicologia pela Universidade

Gregoriana.

2 No Documento Final do Sínodo sobre a sinodalidade, aprovado pelo Papa Francisco

em Outubro de 2024, pode ler-se um belo texto sobre o lugar das mulheres na Igreja,

Povo de Deus. Reza assim no número 60:

“Em virtude do Baptismo, homens e mulheres gozam de igual dignidade no Povo de

Deus. No entanto, as mulheres continuam a encontrar obstáculos para obter um

reconhecimento mais pleno dos seus carismas, da sua vocação e do seu lugar nos

vários sectores da vida da Igreja, em detrimento do serviço à missão comum.

As Escrituras atestam o papel de primeiro plano de muitas mulheres na história da

salvação. A uma mulher, Maria de Magdala, foi confiado o primeiro anúncio da

Ressurreição; no dia de Pentecostes, Maria, a Mãe de Jesus, estava presente no

Cenáculo, juntamente com muitas outras mulheres que tinham seguido o Senhor. É

importante que as passagens relevantes da Escritura encontrem lugar apropriado nos

leccionários litúrgicos. Alguns momentos cruciais da História da Igreja confirmam o

contributo essencial das mulheres movidas pelo Espírito. As mulheres constituem a

maioria daqueles que frequentam as igrejas e são frequentemente as primeiras

testemunhas da fé nas famílias. São activas na vida das pequenas comunidades cristãs

e nas paróquias; dirigem escolas, hospitais e centros de acolhimento; lideram

iniciativas de reconciliação e de promoção da dignidade humana e da Justiça Social. As

mulheres contribuem para a investigação teológica e estão presentes em posições de

responsabilidade nas instituições ligadas à Igreja, na Cúria diocesana e na Cúria

Romana. Há mulheres que exercem cargos de autoridade ou são responsáveis pela

comunidade. Esta Assembleia convida a dar plena implementação de todas as

oportunidades já previstas no direito vigente relativamente ao papel das mulheres,

particularmente nos lugares onde estas continuam por cumprir. Não há razões que

impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o

que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal

também permanece em aberto. É necessário prosseguir o discernimento a este

respeito. A Assembleia convida também a prestar maior atenção à linguagem e às

imagens utilizadas na pregação, no ensino, na catequese e na redacção dos

documentos oficiais da Igreja, dando mais espaço ao contributo de mulheres santas,

teólogas e místicas.”

3 Aqui chegados, permanece a pergunta de sempre: por que é que a questão do acesso

das mulheres ao ministério do diaconado fica apenas em aberto? Mas sobretudo: por

que é que a questão do acesso das mulheres ao chamado ministério sacerdotal não

teve, sequer, possibilidade de ser colocada?

Esta questão constitui um problema central dentro da Igreja. Tentarei na próxima

crónica explicar como ela é inclusivamente uma questão decisiva.

Padre e professor de Filosofia.

Escreve de acordo com a antiga ortografia

 As Bodas de Caná, a terceira epifania - P. Manuel João Pereira Correia, mccj

 As Bodas de Caná, a terceira epifania

Ano C – Tempo Comum – 2º Domingo
João 2,1-11: “Foi assim que, em Caná da Galileia, Jesus deu início aos seus milagres”

Estamos no segundo domingo do Tempo Comum do ano litúrgico. Concluímos o ciclo natalício, mas a liturgia parece não ter pressa em nos introduzir plenamente no Tempo Comum. Após o Batismo de Jesus celebrado no domingo passado, hoje o Evangelho apresenta-nos o episódio das bodas de Caná. As festas dos Reis Magos, do Batismo de Jesus e a memória das bodas de Caná formam uma tríade de “epifanias” – ou seja, “manifestações” – que, segundo a antiga tradição cristã, estavam incluídas na festa da Epifania.

O milagre da transformação da água em vinho, ocorrido durante as bodas de um casal anônimo em Caná da Galileia, uma aldeia próxima de Nazaré, é relatado exclusivamente no IV Evangelho. À primeira vista, trata-se de uma narrativa simples. Contudo, o fato de Jesus ter iniciado a sua vida pública com um prodígio desse tipo é surpreendente. Também chama a atenção a importância atribuída a este evento pelo evangelista.

O papel marginal dos noivos, o destaque dado a Maria e a Jesus no centro da cena, e a escolha deste milagre como “o início dos milagres” sugerem que, por trás da aparente simplicidade da narrativa, esconde-se um significado mais profundo. Os estudiosos acreditam que este texto é uma verdadeira obra-prima joanina, rica em simbolismo. A narrativa aparece como um refinado entrelaçamento de referências bíblicas, de modo que, ao puxarmos os seus numerosos “fios”, somos conduzidos à riqueza da tradição escriturística.

Vamos tentar puxar alguns desses fios.

- O trecho começa especificando que era “o terceiro dia”(um detalhe omitido às vezes no texto litúrgico). Mas a que se refere exatamente o evangelista? No contexto judaico, os casamentos eram celebrados na terça-feira, o terceiro dia da semana, que começava no dia após o sábado. Ligando este “terceiro dia” às referências anteriores de “no dia seguinte” (Jo 1,29.35.43), podemos perceber uma estrutura simbólica: uma semana inaugural (4+3), que remete à semana inicial da criação. Além disso, no Novo Testamento, o “terceiro dia” assume uma conotação pascal: é o dia da ressurreição.
O IV Evangelho foi escrito à luz do “terceiro dia”. Também nós somos chamados a ler a nossa vida à luz desse dia. Conseguimos interpretar os acontecimentos diários na perspectiva da Páscoa do Senhor?

- “Realizou-se um casamento em Caná da Galileia e estava lá a Mãe de Jesus.” Por que Maria estava presente? Provavelmente por algum parentesco com os noivos. O evangelista nunca menciona o nome de Maria, nem aqui, nem aos pés da cruz (Jo 19,25-27). Para São João, o título “mãe de Jesus” é um título de honra, que sublinha o papel único de Maria.

- “Jesus e os seus discípulos foram também convidados para o casamento.” É a primeira vez, no Evangelho de João, que o grupo dos discípulos aparece explicitamente. A partir deste momento, eles tornam-se a família de Jesus e o seguem por onde ele vai. Também nós, como discípulos, somos hoje convidados para estas bodas. Notemos que o primeiro encontro não ocorre no Templo ou na sinagoga, mas em uma casa, para uma festa, num contexto profano.
O que terão pensado os ex-discípulos de João Batista, tão austero? E o que pensarão hoje os cristãos “sérios”, que veem na vida cristã apenas sacrifício e renúncia? Jesus, participando desta festa, nos convida a redescobrir um Deus próximo, que celebra a vida conosco. Qual imagem de Deus predomina na minha relação com o Senhor?

“Faltando vinho, a mãe de Jesus disse-lhe: Não têm vinho.” O vinho assume o protagonismo na narrativa. O vinho é símbolo de alegria. Como pôde faltar? O noivo havia calculado mal? É importante lembrar que as bodas duravam, em média, uma semana. Alguém culpa Jesus, que chegou com um grande grupo de discípulos! Maria nos ensina aqui o delicado e precioso ministério da intercessão: apresentar ao Senhor as situações onde “falta o vinho”, nos lugares que frequentamos.

- “E Jesus respondeu-lhe: Mulher, o que tenho eu a ver com isso?” A interpretação desta resposta de Jesus é bastante controversa. Por que Jesus dirige-se a Maria chamando-a de “mulher”? Ele o fará também ao confiá-la ao discípulo amado junto à cruz. Não é um termo frio ou distante, como poderia parecer. Ao contrário, é um título carregado de significado simbólico. Pensemos em Eva, a Mulher, “mãe de todos os viventes” (Gênesis 3,20). Mulher era também Israel (palavra feminina em hebraico), esposa de Deus (veja a primeira leitura de hoje). Mulher é a representação da Igreja (Apocalipse 12).

- “Ainda não chegou a minha hora.” De que hora se trata? O início de sua atividade? No Evangelho de São João, Jesus usa esta expressão para indicar a hora de sua glorificação na cruz. Podemos perceber aqui, de qualquer forma, uma divergência entre os tempos de Deus e os nossos. Jesus dirá aos seus familiares, que o pressionavam a ir manifestar-se em Jerusalém: “O meu tempo ainda não chegou; o vosso tempo, porém, está sempre à disposição” (Jo 7,6). Não será essa também às vezes a nossa pretensão, especialmente na oração, de convencer Deus a adaptar os seus tempos aos nossos?

- “Sua mãe disse aos serventes: ‘Fazei tudo o que ele vos disser.’” É tocante a confiança humilde de Maria, assim como é edificante a obediência dos servos (diakonois), que enchem até à borda as seis talhas, símbolo da imperfeição (7-1). Esta é a verdadeira diaconia: fazer o que o Senhor nos diz, mesmo quando não compreendemos plenamente o significado. E então ocorre o milagre: chega o vinho bom, imenso em qualidade e quantidade, para dar um novo impulso à festa.

- “Este, em Caná da Galileia, foi o início dos sinais realizados por Jesus; ele manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele.” Foi o primeiro dos sete sinais/milagres. O último será a ressurreição de Lázaro. Qual é a glória que Jesus manifesta? A do Messias. A superabundância era o sinal da chegada dos tempos messiânicos: “A terra dará os seus frutos dez mil vezes mais, e em uma videira haverá mil ramos, e um ramo terá mil cachos, e um cacho terá mil bagos, e um bago dará um kór de vinho” (Apocalipse grego de Baruque, apócrifo do século I d.C.).
Jesus é o Esposo, e em Caná já prenuncia as núpcias finais que São João contemplará no Apocalipse: “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, de junto de Deus, pronta como uma esposa adornada para o seu esposo.” (21,1-2).

A epifania de Jesus nas bodas de Caná convida-nos a olhar para a vida como uma manifestação permanente de Deus, aprendendo a ler os sinais da sua presença à luz da Páscoa.

P. Manuel João Pereira Correia, mccj

p.mjoao@gmail.com
https://comboni2000.org

 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

O BAPTISMO DE JESUS INTERROGA-NOS Frei Bento Domingues, O.P. 12 Janeiro 2025

 

O BAPTISMO DE JESUS INTERROGA-NOS

Frei Bento Domingues, O.P.

12 Janeiro 2025

 

1. Para a Igreja Católica, este Novo Ano tem a particularidade de vir a seguir ao Sínodo, isto é, ao novo processo da sua reforma, ao serviço da transformação da sociedade. É preciso não deixar que se percam 3 anos para entender e praticar uma nova forma de viver em Igreja de saída, abrindo todas as portas para entrar toda a gente e abrir as janelas para vermos o que se passa no mundo e o que podemos fazer para acabar com os cenários de miséria e de guerra.

João Paulo II tinha defendido a impossibilidade definitiva da ordenação sacerdotal de mulheres. O Sínodo não foi por esse caminho. Abriu corajosamente um outro. A sua importância fundamental merece especial destaque[1]:

«Em virtude do Baptismo, homens e mulheres gozam de igual dignidade no Povo de Deus. No entanto, as mulheres continuam a encontrar obstáculos para obter um reconhecimento mais pleno dos seus carismas, da sua vocação e do seu lugar nos vários sectores da vida da Igreja, em detrimento do serviço à missão comum. As Escrituras atestam o papel de primeiro plano de muitas mulheres na história da salvação. A uma mulher, Maria de Magdala, foi confiado o primeiro anúncio da Ressurreição; no dia de Pentecostes, Maria, a Mãe de Jesus, estava presente no Cenáculo, juntamente com muitas outras mulheres que tinham seguido o Senhor. É importante que as passagens relevantes da Escritura encontrem lugar apropriado nos leccionários litúrgicos. Alguns momentos cruciais da história da Igreja confirmam o contributo essencial das mulheres movidas pelo Espírito. As mulheres constituem a maioria daqueles que frequentam as igrejas e são frequentemente as primeiras testemunhas da fé nas famílias. São activas na vida das pequenas comunidades cristãs e nas paróquias; dirigem escolas, hospitais e centros de acolhimento; lideram iniciativas de reconciliação e de promoção da dignidade humana e da justiça social. As mulheres contribuem para a investigação teológica e estão presentes em posições de responsabilidade nas instituições ligadas à Igreja, na Cúria diocesana e na Cúria Romana. Há mulheres que exercem cargos de autoridade ou são responsáveis pela comunidade. Esta Assembleia convida a dar plena implementação de todas as oportunidades já previstas no direito vigente relativamente ao papel das mulheres, particularmente nos lugares onde estes continuam por cumprir. Não há razões que impeçam as mulheres de assumir funções de liderança na Igreja: não se pode impedir o que vem do Espírito Santo. A questão do acesso das mulheres ao ministério diaconal também permanece em aberto. É necessário prosseguir o discernimento a este respeito. A Assembleia convida também a prestar maior atenção à linguagem e às imagens utilizadas na pregação, no ensino, na catequese e na redacção dos documentos oficiais da Igreja, dando mais espaço ao contributo de mulheres santas, teólogas e místicas».

Esperemos que isto não fique, apenas, como muitas vezes acontece, num excelente texto.

2. Na organização do calendário litúrgico, este Domingo celebra o Baptismo de Jesus, no rio Jordão. Significava que Jesus, durante algum tempo, foi seduzido pelo caminho de João Baptista, entre os vários grupos diferentes – lembremos, por exemplo, a célebre comunidade de Qumran – que não alinhavam com a religião do templo de Jerusalém. Há razões para julgar que lhe assiste alguma base histórica, apresentada numa interpretação, sobretudo de ruptura com o frequente legalismo do Antigo Testamento.

Não convinha nada que Jesus fosse baptizado por João que tinha discípulos que sobreviveram ao seu assassinato e ao de Jesus. Eles poderiam sempre dizer aos seguidores do Nazareno: foi o nosso mestre que baptizou o vosso e não o contrário. De facto, nos diferentes Evangelhos existe uma vontade de mostrar que Jesus exaltou a figura de João Baptista – entre os nascidos de mulher, não há ninguém maior do que João –, mas ao mesmo tempo, mostrar também que, quem acolhesse a novidade revolucionária do Evangelho, seria maior que ele.

Este baptismo de Jesus significa passar de um ritual e uma prática ascética para uma abertura do céu e da terra a uma nova idade.

A narrativa de S. Lucas é comovente. Por um lado, faz de Jesus um discípulo de João, por outro, mostra a ruptura com o seu antigo mestre[2].

O que terá acontecido? João era o símbolo da necessidade de reformar a religião de Israel, mas ainda na linha austera dos profetas. A sua pregação não se afastava de um rigor moralista carregado de ameaças. Jesus teve uma experiência espiritual que o obrigou a romper com esse mundo. Diz o texto que Jesus baptizado entrou em oração. O resultado exprime a própria personalidade do Nazareno: Ele é a terra aberta ao céu e o céu aberto à terra, aberto a todos os mundos. O Espírito de Deus, ao banhar o seu espírito, declara que Ele é um filho muito amado. Jesus sai dessa experiência com uma missão: mostrar que toda a gente, a começar pela mais desclassificada, sob o ponto de vista religioso, moral e material, é amada por Deus e chamada a viver do mesmo Espírito: Espírito de Deus, Espírito de Cristo, Espírito de renovação da Igreja, Espírito de transformação do mundo, numa imensa pluralidade de carismas e de caminhos. É um Espírito que solicita a nossa inteligência e a nossa vontade, mas que nunca se impõe à nossa liberdade.

3. O que se celebra hoje é a ruptura de Jesus com o movimento de João Baptista e o começo do seu movimento a partir de uma nova experiência de Deus. Esta experiência ditou-lhe um novo caminho a percorrer, que detectamos no seu percurso posterior, através das narrativas do Novo Testamento: Deus surge, na sua pessoa, como uma declaração de amor por todos os seres humanos, de todos os povos, culturas e religiões.

Em suma, há dois mil anos, a partir de situações muito concretas, num canto do império romano, no seio do judaísmo, na Galileia das Nações, Jesus de Nazaré questionou e abalou as falsas certezas.

Se a crise financeira e económica de consequências globais não for aproveitada para questionar e alterar a orientação absurda da nossa civilização, se não fizer surgir um novo olhar sobre o mundo e o ser humano, se não levar a um novo caminho, só resta continuar de alienação em alienação, na rota da auto-destruição.

Vivemos numa época marcada pelo aumento das desigualdades, pela crescente desilusão com os modelos tradicionais de governação, pelo desencanto com o funcionamento da democracia, pelo aumento das tendências autocráticas e ditatoriais, pelo predomínio do modelo de mercado sem ter em conta a vulnerabilidade das pessoas e da criação, e pela tentação de resolver os conflitos através da força e não do diálogo. Práticas autênticas de sinodalidade permitem aos cristãos desenvolver uma cultura capaz de profecia crítica face ao pensamento dominante e, assim, oferecer um contributo peculiar na procura de respostas a muitos dos desafios que as sociedades contemporâneas devem enfrentar e na construção do bem comum[3].

 

 



[1] Cf. Documento Final do Sínodo 2021-2024, nº 60

   [2] Lc 3, 15-22

[3] Cf. Documento Final do Sínodo 2021-2024, nº 47

sábado, 4 de janeiro de 2025

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER Frei Bento Domingues, O.P. 29 Dezembro 2024

 

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER

Frei Bento Domingues, O.P.

29 Dezembro 2024

 

1. Em 2025, a Igreja Católica celebra o Jubileu (o Ano Santo). Não é um acontecimento inédito. Já o Antigo Testamento fala de um Ano Jubilar de 50 em 50 anos[1], um tempo que devia ser de clemência e de libertação para todo o povo, a fim de restabelecer a justiça de Deus nos diferentes âmbitos da vida: no uso da terra, na posse dos bens, na relação com o próximo, sobretudo os mais pobres e os que tinham caído em desgraça[2]. Seria importante, no entanto, perguntar o que foi feito dessa bela instituição.

O Papa Bonifácio VIII instituiu o chamado Ano Santo, em 1300. O Papa Francisco já estabeleceu um especial programa litúrgico, em Roma, para os peregrinos, dos seus espaços mais emblemáticos, procurando, assim, superar o mero sentido turístico.

É de destacar um gesto original: no dia 26, o Papa foi à prisão Rebibbia, em Roma, como um peregrino de esperança, a mesma esperança à qual o Jubileu 2025 é dedicado, abrindo a Porta nessa prisão, inaugurando nela o Ano Santo.

O texto para o Dia Mundial da Paz 2025 é uma síntese notável, assumindo não só o que escreveram os seus antecessores, remontando à célebre Pacem in Terris (1963), como aponta o verdadeiro conteúdo das práticas do Ano Santo.

Também nos dias de hoje, o Jubileu devia ser um acontecimento que nos impelisse a procurar a justiça libertadora de Deus em toda a terra. Gostaríamos de estar atentos ao desesperado grito de ajuda. Sentimo-nos chamados a unir-nos à voz que denuncia tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo. Estas injustiças assumem, por vezes, o aspecto daquilo a que João Paulo II definiu como estruturas de pecado, porque não se devem apenas à iniquidade de alguns, mas estão, por assim dizer, enraizadas e contam com uma cumplicidade generalizada.

Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas acções que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade. Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistémicos, distintos, mas interligados, que afligem o nosso planeta. Refiro-me, em particular, às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são factores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade.

No início deste ano, Bergoglio incita-nos a escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, todos nós, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus. Alguns actos esporádicos de filantropia não serão suficientes. Em vez disso, são necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura.

2. Razão tinha S. Basílio de Cesareia (século IV) que perguntava: mas que coisas são tuas? De onde as tiraste para as incluir na tua vida? […] Não saíste totalmente nu do ventre da tua mãe? Não voltarás, de novo, nu para a terra? De onde vem o que tens agora? Estas interrogações continuam a ser essenciais.

Como diz Francisco, tal como as elites do tempo de Jesus, que se aproveitavam do sofrimento dos mais pobres, também hoje, na aldeia global interligada, o sistema internacional, se não for alimentado por uma lógica de solidariedade e interdependência, gera injustiças que, exacerbadas pela corrupção, aprisionam os países pobres. A lógica da exploração do devedor também descreve sucintamente a actual crise da dívida, que aflige vários países.

Não nos devemos cansar de repetir que a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar, indiscriminadamente, os recursos humanos e naturais dos países mais pobres, para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados.

A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda. Este Ano Jubilar convida a comunidade internacional a actuar no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo. É um apelo à solidariedade, mas sobretudo à justiça.

3. A dignidade da vida humana tem de ser respeitada e promovida em todas as suas etapas. Cada pessoa tem o direito de olhar o futuro com esperança, procurando o desenvolvimento e a felicidade de toda a família. Um gesto que deve marcar este Ano Jubilar é a eliminação da pena de morte em todas as nações. É, aliás, uma punição tão radical que aniquila toda a esperança humana de perdão e de renovação.

Neste tempo marcado pelas guerras em 22 países, o Papa Francisco propõe que, pelo menos, uma percentagem fixa do dinheiro gasto, em armamento, seja utilizada para a criação de um fundo mundial que elimine, definitivamente, a fome e facilite a realização de atividades educativas, nos países mais pobres. Devemos tentar eliminar qualquer pretexto que possa levar os jovens a imaginar o seu futuro sem esperança, ou como uma expectativa de vingar o sangue derramado por seus entes queridos. O futuro é um dom que permite ultrapassar os erros do passado e construir novos caminhos de paz. A guerra é sempre uma derrota, sempre! É fonte de riqueza para poucos e fonte de morte para povos inteiros.

Aqueles que empreenderem, através dos gestos propostos, o caminho da esperança, poderão ver cada vez mais próxima a tão desejada meta da paz. O Salmista confirma-nos nesta promessa: quando a verdade e o amor se encontrarem, a justiça e a paz abraçam-se (Sal 85, 11). Como dizia João XXIII, a verdadeira paz só pode vir de um coração desarmado da ansiedade e do medo da guerra.

A Mensagem para o Dia da Paz 2025 termina com uma oração. É a oração que nos abre aos dons de Deus:

Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só Tu podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres.

Bom Ano!

 

 



[1] Cf. Levítico 25

[2] Cf. Mensagem para o Dia da Paz 2025 que estrutura toda esta crónica

 Haja Epifania -Estrelas brilhantes, estrelas apagadas e buracos negros - Pe. Manuel João MC

 Haja Epifania!




Estrelas brilhantes, estrelas apagadas e buracos negros

Ano C – T. Natal – Epifania
Mateus 2,1-12: “Onde está aquele que nasceu?”

No dia 6 de janeiro, doze dias após o Natal, a Igreja celebra, desde os primeiros séculos, a solenidade da Epifania. A palavra grega epiphàneia significa “manifestações” (no plural) e era utilizada para designar as ‘manifestações’ das divindades. Na Grécia antiga, referia-se às festas dedicadas a uma divindade específica. Este termo foi adotado pelo cristianismo para indicar a “manifestação” de Jesus aos povos, representados pelos Magos.

A data da Epifania aproxima-se da do Natal das Igrejas orientais, celebrado no dia 7 de janeiro. A diferença de 13 dias deve-se exclusivamente ao calendário adotado: enquanto as Igrejas ocidentais seguem o calendário gregoriano (assim chamado em homenagem ao Papa Gregório XIII, que o introduziu em 1582), as orientais ainda utilizam o antigo calendário juliano (criado por Júlio César em 45 a.C.). Por isso, o dia 25 de dezembro do Natal ortodoxo coincide com o nosso 7 de janeiro, enquanto o seu dia 6 de janeiro, da Epifania, corresponde ao nosso 19 de janeiro.

OS MAGOS, buscadores de Deus

O episódio pitoresco dos Magos, narrado de forma sóbria por São Mateus, é um dos que mais atraíram a curiosidade e atenção desde a época dos Padres da Igreja e dos escritos apócrifos cristãos. Em torno do relato evangélico floresceu uma rica e criativa fantasia:

  • os Magos tornam-se três, como os três dons: ouro, incenso e mirra; 
  • são considerados reis, talvez porque o rei é o máximo representante de um povo, e também pela influência de alguns textos bíblicos, como Isaías 60 (ver primeira leitura) e o Salmo 71: “Os reis de Társis e das ilhas ofereçam tributos, os reis de Sabá e de Seba tragam presentes” (salmo responsorial); 
  • são-lhes atribuídos nomes: Gaspar, Melchior e Baltazar; 
  • vêm de três continentes diferentes: África, Ásia e Europa; 
  • um é de pele escura, outro clara e o terceiro amarela; 
  • um é jovem, outro maduro e o terceiro idoso. 

Claramente, a tradição desenvolveu-se para que os três Magos representassem toda a humanidade que veio prestar homenagem a Cristo. Eles representam também cada um de nós.
Na segunda leitura, São Paulo afirma que a Epifania é a revelação de um “mistério” até então escondido: “Os povos são chamados, em Cristo Jesus, a partilhar a mesma herança, a formar o mesmo corpo e a participar da mesma promessa através do Evangelho” (Efésios 3,6).
Até então, a história da salvação era interpretada sob uma ótica nacionalista: as promessas de Deus eram reservadas apenas ao povo de Israel. Esta festa, portanto, assume um significado universal e missionário. É a antítese da Torre de Babel e o prenúncio de Pentecostes!

Os Magos são um símbolo eloquente dos buscadores de Deus que se colocam a caminho. A fé é “inquieta”: não nos deixa satisfeitos com as respostas encontradas e os objetivos atingidos. Uma fé que não nos torna peregrinos é como a dos escribas de Jerusalém, interrogados por Herodes. Eles sabem onde deve nascer o Messias, mas não se movem para procurá-lo.
Todo crente é como Abraão que “partiu sem saber para onde iria” (Hebreus 11,8). A jornada dos Magos é um emblema da vida cristã e de toda existência humana: colocar-se a caminho, juntos, à procura de sentido, olhando para o céu, prontos para enfrentar o desconhecido, capazes de discernir a presença de Deus na pequenez...

A ESTRELA e as estrelas

Os Magos eram “astrólogos” que observavam as estrelas. A sua proveniência do Oriente sugere a Pérsia. Muitos astrônomos tentaram identificar qual estrela ou cometa eles observaram. No entanto, a explicação não deve ser buscada tanto na ciência, mas no contexto bíblico. São Mateus, de fato, provavelmente referia-se ao oráculo do ‘profeta’ Balaão: “Eu o vejo, mas não agora; eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela surge de Jacó, e um cetro se eleva de Israel” (Números 24,17). Esta estrela é interpretada como uma referência ao Messias.
Na antiguidade, acreditava-se comumente que cada pessoa tinha a sua própria estrela, que surgia com o seu nascimento e desaparecia com a sua morte. Quanto mais brilhante a estrela, mais importante se considerava a pessoa.

Há muitas estrelas que brilham no nosso firmamento, mas nem todas conduzem a Cristo. Algumas fazem-nos perder-nos ao longo do caminho da vida. Qual “estrela” é a bússola da minha existência?
O que representa a Estrela? Ela evoca, antes de tudo, Jesus, “a estrela radiosa da manhã” (Apocalipse 22,16). Ele é a Estrela que orienta a vida do cristão. Contudo, também nós somos chamados a “brilhar como astros no mundo” (Filipenses 2,15). Cada cristão é convidado a tornar-se uma estrela que guia os outros para Cristo.

“Com a Epifania acabam-se as festas”, diz um conhecido provérbio popular. Que a Estrela, porém, permaneça viva no nosso coração! Como poderíamos, de outra forma, iluminar, nós que somos chamados a ser “luz do mundo”? Seríamos estrelas apagadas, ou pior, “buracos negros” que absorvem e anulam toda luz que encontram na sua órbita.

OS PRESENTES: ouro, incenso e mirra

O que representam os três presentes? Tradicionalmente diz-se que: o ouro simboliza a realeza messiânica de Cristo; o incenso, a sua divindade; e a mirra, a sua humanidade. Contudo, não faltam interpretações diferentes. São Bernardo, por exemplo, sugeria que o ouro servia para mitigar a pobreza da Virgem Maria, o incenso para purificar o ar da estrebaria, e a mirra como vermífugo!
Mas o que estes presentes podem representar para nós, hoje? E, sobretudo, o que podemos oferecer a Jesus? Olhemos para o tesouro do nosso coração: que riquezas guardamos? Que presentes podemos oferecer como sinal da nossa adoração, da nossa gratidão e do nosso amor?

Pe. Manuel João Pereira Correia, mccj

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Perguntas sobre o Natal. 1 Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia 03 Janeiro 2025

 Perguntas sobre o Natal. 1

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

03 Janeiro 2025

Já estamos no ano de 2025 em todas as partes do mundo - desejo a todos um 2025
com saúde, paz, boas realizações... -, mas quantos tomaram consciência de que a data
se refere ao nascimento de Jesus?

Precisamente por causa do Natal, muitas pessoas vêm ao meu encontro com
perguntas, e nesta e na próxima crónica tentarei dar respostas ainda que breves, por
vezes até com algumas repetições.

Para entender as respostas, é essencial perceber que a festa do Natal não é a festa
principal do cristianismo, mesmo que seja a mais popular e entendamos o entusiasmo
que suscita em toda a parte, compreendendo perfeitamente a luz, o calor humano, as
deslocações para juntar as famílias e os amigos, a evocação da ternura do nascimento
de uma criança...

A festa central da fé cristã é a Páscoa, que celebra a vida, o anúncio da Boa Nova do
Reino de Deus, a paixão e morte de Jesus e a sua ressurreição: na morte, Jesus não
morreu para o nada, na morte encontrou a plenitude da vida em Deus, que é Pai/Mãe.
Este é o núcleo da mensagem cristã, como proclamou São Paulo: “Se Cristo não
ressuscitou, é vã a nossa fé.”

E assim é à luz da Páscoa que se compreendem as narrativas do Natal. De facto, no
início, os cristãos não se interessaram pelo nascimento de Jesus, pois o essencial era a
vida, a morte e a ressurreição.

Então, como apareceu a festa do Natal? Hoje, nenhum historiador sério nega que Jesus
existiu realmente. Quando, nos séculos III-IV já havia comunidades cristãs espalhadas
pelo Império Romano, houve a ideia de transformar a festa pagã do Dies Natalis Solis
Invicti (Natal do Sol Invicto), associada ao Solstício do Inverno, quando os dias
começam a crescer e com eles a luz solar, na festa do nascimento do sol dos cristãos,
d’Aquele que é o verdadeiro Sol invencível, a Luz verdadeira. A Missa do galo está
associada a esta luz; o galo canta, anunciando a aurora.

E voltamos à questão da data e de nos encontrarmos no ano de 2025. Quando nasceu
Jesus? Realmente, estamos enganados quando dizemos que entrámos no ano 2025
depois de Cristo. De facto, no século VI, quando o cristianismo já se tinha vastamente
difundido e Jesus surgia como figura determinante da História, de tal modo que agora
o calendário se deveria orientar pela data do seu nascimento: a. C., d. C. (antes de
Cristo, depois de Cristo), o monge encarregado de determinar essa data, Dionísio, o
Exíguo, enganou-se em quatro ou mesmo seis anos. Portanto, Jesus, paradoxalmente,
terá nascido em 4-6 a.C.

Nasceu em Belém? Voltamos ao início. O essencial da fé cristã encontra-se na Páscoa.
Foi a partir dessa fé que os discípulos leram a vida histórica de Jesus, real, situada num
tempo concreto, uma história real, mas lida e interpretada com o olhar da fé. Esta
leitura é particularmente visível nos relatos da infância, que só aparecem
nos Evangelhos de São Mateus e de São Lucas, utilizando um género literário próprio,
que projecta e vê no princípio o que só sabem no fim: em Jesus cumpriram-se as
promessas, Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Salvador por todos esperado.

Na realidade, Jesus terá nascido em Nazaré: é conhecido por Jesus de Nazaré ou o
Nazareno. Mas puseram-no a nascer em Belém: trata-se de mostrar que ele é o
verdadeiro Messias e rei, da descendência de David, que era de Belém.

E a mensagem do Natal? Jesus proclamou o Reino de Deus. Deus é Pai/Mãe. Somos
todos filhos e filhas e, portanto, irmãos. No Reino de Deus, não há súbditos.

Continua.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER Frei Bento Domingues, O.P. 29 Dezembro 2024

 

NOVO ANO: MUITO QUE MEDITAR, MUITO QUE FAZER

Frei Bento Domingues, O.P.

29 Dezembro 2024

 

1. Em 2025, a Igreja Católica celebra o Jubileu (o Ano Santo). Não é um acontecimento inédito. Já o Antigo Testamento fala de um Ano Jubilar de 50 em 50 anos[1], um tempo que devia ser de clemência e de libertação para todo o povo, a fim de restabelecer a justiça de Deus nos diferentes âmbitos da vida: no uso da terra, na posse dos bens, na relação com o próximo, sobretudo os mais pobres e os que tinham caído em desgraça[2]. Seria importante, no entanto, perguntar o que foi feito dessa bela instituição.

O Papa Bonifácio VIII instituiu o chamado Ano Santo, em 1300. O Papa Francisco já estabeleceu um especial programa litúrgico, em Roma, para os peregrinos, dos seus espaços mais emblemáticos, procurando, assim, superar o mero sentido turístico.

É de destacar um gesto original: no dia 26, o Papa foi à prisão Rebibbia, em Roma, como um peregrino de esperança, a mesma esperança à qual o Jubileu 2025 é dedicado, abrindo a Porta nessa prisão, inaugurando nela o Ano Santo.

O texto para o Dia Mundial da Paz 2025 é uma síntese notável, assumindo não só o que escreveram os seus antecessores, remontando à célebre Pacem in Terris (1963), como aponta o verdadeiro conteúdo das práticas do Ano Santo.

Também nos dias de hoje, o Jubileu devia ser um acontecimento que nos impelisse a procurar a justiça libertadora de Deus em toda a terra. Gostaríamos de estar atentos ao desesperado grito de ajuda. Sentimo-nos chamados a unir-nos à voz que denuncia tantas situações de exploração da terra e de opressão do próximo. Estas injustiças assumem, por vezes, o aspecto daquilo a que João Paulo II definiu como estruturas de pecado, porque não se devem apenas à iniquidade de alguns, mas estão, por assim dizer, enraizadas e contam com uma cumplicidade generalizada.

Cada um de nós deve sentir-se, de alguma forma, responsável pela devastação a que a nossa casa comum está sujeita, a começar pelas acções que, mesmo indiretamente, alimentam os conflitos que assolam a humanidade. Assim, fomentam-se e entrelaçam-se os desafios sistémicos, distintos, mas interligados, que afligem o nosso planeta. Refiro-me, em particular, às desigualdades de todos os tipos, ao tratamento desumano dispensado aos migrantes, à degradação ambiental, à confusão gerada intencionalmente pela desinformação, à rejeição a qualquer tipo de diálogo e ao financiamento ostensivo da indústria militar. Todos estes são factores de uma ameaça real à existência de toda a humanidade.

No início deste ano, Bergoglio incita-nos a escutar este grito da humanidade para nos sentirmos chamados, todos nós, juntos e de modo pessoal, a quebrar as correntes da injustiça para proclamar a justiça de Deus. Alguns actos esporádicos de filantropia não serão suficientes. Em vez disso, são necessárias transformações culturais e estruturais, para que possa haver também uma mudança duradoura.

2. Razão tinha S. Basílio de Cesareia (século IV) que perguntava: mas que coisas são tuas? De onde as tiraste para as incluir na tua vida? […] Não saíste totalmente nu do ventre da tua mãe? Não voltarás, de novo, nu para a terra? De onde vem o que tens agora? Estas interrogações continuam a ser essenciais.

Como diz Francisco, tal como as elites do tempo de Jesus, que se aproveitavam do sofrimento dos mais pobres, também hoje, na aldeia global interligada, o sistema internacional, se não for alimentado por uma lógica de solidariedade e interdependência, gera injustiças que, exacerbadas pela corrupção, aprisionam os países pobres. A lógica da exploração do devedor também descreve sucintamente a actual crise da dívida, que aflige vários países.

Não nos devemos cansar de repetir que a dívida externa se tornou um instrumento de controle, através do qual alguns governos e instituições financeiras privadas dos países mais ricos não hesitam em explorar, indiscriminadamente, os recursos humanos e naturais dos países mais pobres, para satisfazer as necessidades dos seus próprios mercados.

A dívida ecológica e a dívida externa são dois lados da mesma moeda. Este Ano Jubilar convida a comunidade internacional a actuar no sentido de perdoar a dívida externa, reconhecendo a existência de uma dívida ecológica entre o Norte e o Sul do mundo. É um apelo à solidariedade, mas sobretudo à justiça.

3. A dignidade da vida humana tem de ser respeitada e promovida em todas as suas etapas. Cada pessoa tem o direito de olhar o futuro com esperança, procurando o desenvolvimento e a felicidade de toda a família. Um gesto que deve marcar este Ano Jubilar é a eliminação da pena de morte em todas as nações. É, aliás, uma punição tão radical que aniquila toda a esperança humana de perdão e de renovação.

Neste tempo marcado pelas guerras em 22 países, o Papa Francisco propõe que, pelo menos, uma percentagem fixa do dinheiro gasto, em armamento, seja utilizada para a criação de um fundo mundial que elimine, definitivamente, a fome e facilite a realização de atividades educativas, nos países mais pobres. Devemos tentar eliminar qualquer pretexto que possa levar os jovens a imaginar o seu futuro sem esperança, ou como uma expectativa de vingar o sangue derramado por seus entes queridos. O futuro é um dom que permite ultrapassar os erros do passado e construir novos caminhos de paz. A guerra é sempre uma derrota, sempre! É fonte de riqueza para poucos e fonte de morte para povos inteiros.

Aqueles que empreenderem, através dos gestos propostos, o caminho da esperança, poderão ver cada vez mais próxima a tão desejada meta da paz. O Salmista confirma-nos nesta promessa: quando a verdade e o amor se encontrarem, a justiça e a paz abraçam-se (Sal 85, 11). Como dizia João XXIII, a verdadeira paz só pode vir de um coração desarmado da ansiedade e do medo da guerra.

A Mensagem para o Dia da Paz 2025 termina com uma oração. É a oração que nos abre aos dons de Deus:

Perdoa-nos as nossas ofensas, Senhor, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e, neste círculo de perdão, concede-nos a tua paz, aquela paz que só Tu podes dar para aqueles que deixam o seu coração desarmado, para aqueles que, com esperança, querem perdoar as dívidas aos seus irmãos, para aqueles que confessam sem medo que são vossos devedores, para aqueles que não ficam surdos ao grito dos mais pobres.

Bom Ano!

 

 



[1] Cf. Levítico 25

[2] Cf. Mensagem para o Dia da Paz 2025 que estrutura toda esta crónica