1. A
grande maioria dos católicos conhece, da Bíblia, os pedacinhos que se lêem nas
celebrações dominicais, seja do Antigo seja do Novo Testamento. Isto significa
que a maioria não conhece a Bíblia como tem sido estudada pela exegese moderna.
Sob o ponto de vista da sua
investigação científica, protestantes, católicos e ortodoxos frequentam, cada
vez mais, os métodos modernos de exegese, importantes para não se cair em
hermenêuticas arbitrárias. Isto não quer dizer que os pressupostos confecionais
não contem, e ainda bem. Neste sentido, não se pode continuar a dizer que a
Bíblia é propriedade de qualquer uma das confissões religiosas.
No entanto, continua a ser
verdade que o conhecimento das Escrituras é muito reduzido, apesar dos esforços
que alguns movimentos desenvolvem para alargar esse conhecimento.
Lamento imenso as homilias que
contam pouco com os métodos e os frutos da exegese, mas irritam-me ainda mais
aquelas que gastam o tempo a repetir as leituras. Essas repetições são o
recurso da preguiça e acabam por anestesiar a atenção da assembleia. Era melhor
insistir na formação de bons leitores. Os pregadores da repetição tornam-se os
coveiros da novidade crepitante do Evangelho.
Há excepções admiráveis. São
fruto de quem não lê só esses pedacinhos da Bíblia, escolhidos e repetidos de
três em três anos. As que me parecem admiráveis, são as realizações de quem lê
a Bíblia à luz dos acontecimentos e os acontecimentos à luz da interpretação
bíblica. São duas dimensões da escuta que se cruzam e se iluminam
mutuamente.
Espero do Sínodo de toda a
Igreja que as homilias deixem de ser um exclusivo do clero. É fundamental que
os leigos assumam a sua vocação de testemunhas do Evangelho todo, na vida toda,
e que sejam escolhidas as pessoas que revelem carisma de comunicação, isto é,
competência e graça da pregação.
Conheci, ao longo da vida,
grandes servidores do Evangelho ao povo cristão, abrindo-o ao diálogo
inter-religioso e à escuta de todas as pessoas de boa vontade, crentes ou não. Tenho
de confessar que, neste momento, quem mais me interpela é o estilo do Papa
Francisco.
A sua homilia do Domingo
passado – dia de Cristo Rei – não repetiu as leituras. Extraiu das leituras,
sem violência ou falsos concordismos, um guião vivo para a caminhada dos
jovens. Não restringiu a sua intervenção a esse movimento, mas a todos os
jovens e não apenas aos jovens porque ele confessa-se um sonhador: Sou um sonhador deslumbrado pela luz do Evangelho
e aguardo ansiosamente as visões da noite. E quando caio, encontro em
Jesus a coragem de lutar e de ter esperança, a coragem de voltar a sonhar. Em
todas as idades.
2. Não ocultou as duas imagens que recolheu dos
textos da Missa. A primeira, do Apocalipse de São
João, antecipada pelo profeta Daniel na primeira leitura, é descrita pelas
palavras: Eis que vem com as nuvens[1]. É
uma referência à vinda gloriosa de Jesus como Senhor e fim da história. A
segunda imagem é a do Evangelho: Cristo está diante de Pilatos e diz-lhe: Eu
sou rei[2]. Faz-nos
bem, queridos jovens, parar e contemplar estas imagens de Jesus, no momento em
que iniciamos o caminho para a Jornada Mundial da Juventude de 2023 em Lisboa.
Vamo-nos concentrar na primeira: Jesus que vem com as
nuvens. Ao dizer isto, podia pensar-se que iria fugir para as nuvens, fugir
do real da vida concreta. Não. Esta imagem faz-nos perceber que a última
palavra da nossa existência virá de Jesus, não de nós. Ele é aquele que cavalga
as nuvens e que, nos céus, manifesta o seu poder[3]:
ele é o Senhor, o Senhor que vem do alto e nunca desaparecerá, é aquele que
resiste a tudo o que passa, é a nossa confiança inabalável e eterna. Ele é
o Senhor.
Esta profecia de esperança ilumina as nossas noites. Diz-nos
que Deus vem, que Deus está presente, que Deus está a trabalhar e que Deus
dirige a história para ele, para o bem. Ele vem com as nuvens para
nos tranquilizar, como se dissesse: Não te deixo só quando a tua vida está
envolta em nuvens negras. Estou sempre contigo. Venho para trazer luz e
devolver serenidade.
Caros
jovens, reparai nas visões da noite! Que significam? Ter um olhar luminoso,
mesmo na escuridão. Não deixar de procurar a luz no meio das trevas que muitas
vezes carregamos no coração e que vemos à nossa volta. Erguei os olhos do
chão, não para fugir, mas para vencer a tentação de permanecer no chão dos
nossos medos. É aqui que está o perigo: deixar que os nossos medos nos
governem. Olhai para cima, levantai-vos! Já fiz eco deste convite na Mensagem[4]
que vos dediquei, queridos jovens, para a caminhada deste ano.
Esta
é a tarefa mais árdua, mas também a mais fascinante: levantar-se
quando tudo parece estar a desmoronar-se; ser sentinelas capazes de ver a
luz durante as visões noturnas; ser construtores entre os escombros – há
tantos neste mundo, hoje, tantos – para poder sonhar. E esta é a
chave para mim: um jovem que não é capaz de sonhar, coitadinho… envelheceu
antes do tempo! Quem sonha não se deixa engolir pela noite, mas acende uma
chama, uma luz de esperança que anuncia o dia seguinte. Sonhai. Sonhar é
estar vivo e olhar para o futuro com coragem.
(…)
Muitos dos vossos sonhos correspondem aos do Evangelho. Fraternidade,
solidariedade, justiça, paz são os sonhos de Jesus para a humanidade. Não
tenhais medo de conhecer Jesus. Ele ama os vossos sonhos e ajuda-vos a
realizá-los. O cardeal Martini disse que a Igreja e a sociedade precisam
de sonhadores que nos mantenham abertos às surpresas do Espírito Santo[5]. É
isso mesmo! Desejo que sejais um desses sonhadores!
3. A
segunda imagem vem da própria celebração desse Domingo: Cristo Rei, com
todos os equívocos que, ao longo dos séculos, lhe foram impostos. Jesus Cristo
foi preso, acusado, interrogado, ridicularizado, condenado à morte e crucificado
pela coligação de Herodes e Pôncio Pilatos, pelas nações pagãs e os povos de
Israel[6].
Segundo uma das interpretações aberrantes e de mais sucesso, todos esses
actores estavam, no fundo, a executar uma peça urdida por um deus autocentrado:
teria sido infinitamente ofendida a sua dignidade divina e para a reparar, era
preciso uma vítima humana de alcance divino.
O Papa recusou esse caminho porque esse não era o seu Deus nem o
seu Cristo. Recuperou, no entanto, a afirmação da identidade de Jesus perante
Pilatos:
Eu sou rei. Mas o seu reinado não é para oprimir, para fazer escravos. É
para servir a liberdade, a justiça e o amor de todos para com todos. Esta
determinação, coragem e liberdade impressiona. Nem Deus nem Cristo reinam pela
força. Não têm exército. Eu sou rei, mas deste reino do amor. Eu sou
rei, do reino de quem dá a própria vida pela salvação dos outros, de todos.
Na homilia, Bergoglio não sepultou
os textos bíblicos. Fez deles uma luz para iniciar os caminhos da Jornada
Mundial da Juventude, mas é das novas experiências dos caminhos que nascerá a
luz da esperança.
28. Novembro. 2021
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