1. Graças a alguns meios de comunicação[1],
é possível acompanhar não apenas o que vai acontecendo na Igreja católica, mas no
vasto e plural universo religioso, sempre com novas e antigas expressões da sensibilidade
ou insensibilidade religiosa. Se, em certos países, é significativo o
crescimento de pessoas que se vão afastando da religião institucional, sem
abandonar as preocupações éticas e espirituais, esse não é um fenómeno global.
A notícia de
que, na célebre Universidade de Harvard (EUA), tenha sido eleito um judeu ateu para
presidente do conjunto dos seus capelães, não foi recebida, em todo lado, como
uma boa peça de humor. Vai longe o tempo em que uma das primeiras funções dessa
Universidade era a formação do clero congregacionista e unitarista.
Tudo isto sem falar
das revelações que percorrem alguns países acerca do horroroso fenómeno de abuso
sexual de menores na própria Igreja. No momento em que escrevo, a Conferência
Episcopal Portuguesa acaba de pedir ao Dr. Pedro Strecht,
médico de psiquiatria da infância e adolescência, para coordenar a Comissão
Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja, em Portugal.
Se nada do que é humano pode ser estranho a um
cristão, as religiões, seja qual for a opinião acerca do seu passado e do seu
presente, não podem ser encaradas como um fenómeno humano irrelevante ou
marginal. Não é por acaso que, ao longo do tempo, tenham despertado o interesse
e a investigação, confessional ou não, de historiadores, sociólogos, antropólogos,
psicólogos, filósofos e teólogos.
Como já declarei, em crónicas recentes, neste momento,
o que mais me impressiona é o que está a acontecer de extraordinário, na Igreja
católica, não apenas acerca dos seus erros e pecados, no passado e no presente,
mas na convocatória de todos para tornar a Igreja outra no serviço de um
mundo outro. É a significação daquilo que se convencionou chamar sínodo
dos bispos, quando, de facto, não pode nem quer ser uma tarefa exclusiva
do clero. Os agentes e praticantes desta viragem radical devem procurar mobilizar
todos os baptizados, sem exclusão de ninguém. Para ser uma Igreja actuante no
mundo contemporâneo, não basta escutar atentamente as suas questões e desejos.
É fundamental lançar o desafio: que contributo estais dispostos a dar para a
sua purificação e participar na sua missão de levar ao mundo a alegria do
Evangelho? Se o primeiro momento é precisamente o da escuta atenta e
responsabilizante não se pode limitar a ouvir “as bocas” contra a Igreja ou apostar
apenas nos “bons católicos”, nos conformistas.
Seria ridículo pensar que as reformas da Igreja são como
as de um edifício que fechou para obras e que, só quando estas estiverem
concluídas, se abrirá de novo ao culto. A Igreja não é um edifício, é um
movimento de pessoas em situações muito diversas de adesão a Jesus Cristo e à
novidade que Ele representa na história humana. Periodicamente, reúne-se para
saber em que ponto está a ser vivida a caminhada. Uma verdadeira reforma da
Igreja deve seguir o adágio antigo: ecclesia semper reformanda, a Igreja
deve viver sempre em reforma. Não é por acaso que, nas celebrações da Eucaristia,
do começo até ao fim, se afirme a consciência de pecadores em processo de
conversão permanente. A alegria eucarística nasce do facto de ser um sacramento
de viagem, de pessoas que ainda não estão acabadas, que não estão no eterno
descanso.
2. Também no momento em
que escrevo, ainda não tenho notícias do que aconteceu na importante peregrinação
do Papa Francisco a Chipre e à Grécia, mas já dispomos de algo precioso: os
seus desejos e preocupações[2].
Confessa que se preparou como peregrino a essas magníficas terras, abençoadas
pela história, pela cultura e pelo Evangelho. Segue o sulco dos primeiros
grandes missionários, especialmente os apóstolos Paulo e Bernabé.
Quem o acusa de estar a trair a tradição da Igreja
deve ler, com atenção, a Mensagem do Papa que antecede esta sua peregrinação. É
bom voltar à origem e, para a Igreja, é importante redescobrir a alegria
do Evangelho. Esta deve ser a tarefa constante de todas as comunidades cristãs:
encontrando-me convosco, poderei saciar-me
nas fontes da fraternidade, tão preciosas no momento em que
iniciamos um itinerário sinodal universal. Há uma graça sinodal, uma
fraternidade apostólica que desejo fortemente e com grande respeito: é a expectativa
de visitar as queridas Beatitudes Chrysostomos e Ieronymos, Chefes das
Igrejas ortodoxas locais. Para marcar o carácter de uma peregrinação
ecuménica, adianta: como irmão na fé, terei a graça de ser recebido por vós e
de me encontrar convosco em nome do Senhor da paz. Só depois, se dirige às queridas
irmãs e irmãos católicos, reunidos naquelas terras em pequenos rebanhos, que o
Pai ama tão ternamente, e às quais Jesus, bom Pastor, repete: Não temais,
pequeno rebanho![3]. Vou com afecto para vos
levar o encorajamento de toda a Igreja católica!
Acrescenta: visitar-vos também me
oferecerá a oportunidade de me saciar nas antigas nascentes da Europa:
Chipre, ramificação da Terra Santa no continente; Grécia, pátria da cultura
clássica. Mas ainda hoje a Europa não pode prescindir do Mediterrâneo, mar que
assistiu à propagação do Evangelho e ao desenvolvimento de grandes
civilizações. O mare nostrum, que une muitas terras, convida a navegar
juntos, não a dividir-nos, seguindo caminhos individuais, especialmente
neste período em que a luta contra a pandemia ainda exige muito esforço e a
crise climática é a nossa maior incumbência.
O mar, que abraça muitos povos, com os
seus portos abertos lembra-nos que as fontes do viver juntos residem na
aceitação recíproca. Sinto-me desde já recebido pelo vosso afecto e agradeço a
quantos, há muito tempo, preparam a minha visita.
3. Esta mensagem
do Papa não se limita a questões de ecumenismo eclesial. As Igrejas cristãs não
podem estar centradas nas suas preocupações internas. Estariam a trair-se a si
mesmas. O movimento ecuménico é um movimento de Igrejas em saída para todas as
periferias. Bergoglio nunca esquece as migrações. Por isso, a sua mensagem não
tem um final, mas um convite: penso também naqueles que, durante estes anos e
ainda hoje, fogem de guerras e da pobreza, chegam ao litoral do continente e a
outros lugares, e não encontram hospitalidade, mas hostilidade e também são
instrumentalizados. São nossas irmãs e irmãos. Quantos perderam a vida no mar!
Hoje o “nosso mar”, o Mediterrâneo, é um grande cemitério. Peregrino às fontes
da humanidade, irei de novo a Lesbos, na convicção de que as nascentes do
viver comum só voltarão a florescer na fraternidade e na integração: juntos!
Não há outro caminho, e é com este sonho que vou até vós.
Como sempre, não procura o encontro só com
católicos, mas com todos. Esta peregrinação do Papa inaugura o itinerário sinodal
universal, de crentes e não crentes.
05. Dezembro. 2021
[1] Em
Portugal, destaca-se o 7Margens, jornal digital que
divulga informação sobre o fenómeno religioso, no sentido mais amplo do termo
[2] Cf.
Mensagem em vídeo do Papa Francisco por ocasião da Viagem Apostólica a Chipre e
à Grécia (2-6/12/2021), in www.vatican.va
[3] Lc 12, 32
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