1. É
uma banalidade dizer que os Evangelhos provocaram grandes músicos a produzir
obras imortais. Como veremos, o Papa Francisco deseja que todos descubram a
música do Evangelho, em todas as manifestações da vida.
O
Cardeal Jorge Mario Bergoglio, jesuíta, foi eleito Papa a 13 de Março de 2013 e
escolheu Francisco de Assis, como inspiração, para o seu pontificado. A
razão desta escolha surpreendente não era o de reconduzir a Igreja à Idade Média.
Mostrava, pelo contrário, que Francisco de Assis era a figura mais actual do
que ele desejava ser e fazer: viver a alegria do Evangelho fora dos esquemas do
poder clerical. Francisco não era pobre, fez-se pobre e nunca quis ser clérigo.
Era pelo exemplo que queria fazer, de uma Igreja em ruínas, uma nova esperança
de liberdade e alegria. O Evangelho, longe de asfixiar o poeta, abria-lhe o
mundo como um hino cósmico.
O
Papa Francisco não o escolheu para o imitar. As imitações são a negação da
criatividade. O santo de Assis tornou-se, para ele, a referência simbólica da
reforma da Igreja do século XXI, na escuta atenta a todos os mundos. Um símbolo
não é uma receita. É o contrário. Dá que pensar, dá que sonhar e abre, com
humor, várias possibilidades e caminhos de futuro.
2. A inspiração de S. Francisco de Assis não
foi um devaneio dos começos que, depois, se iria evaporando. Em 2020, o Papa
fez, a este respeito, uma confissão que não pode ser ignorada e que passo a transcrever:
«Fratelli Tutti, escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se aos seus
irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes
conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da
geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, o seu irmão, tanto
quando está longe, como quando está junto de si. Com poucas e simples
palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite
reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade
física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.
«Este
Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a
escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para
dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, S.
Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais
unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou
junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.
«Na
sua vida, há um episódio que nos mostra o seu coração sem fronteiras, capaz de
superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor ou religião: é a sua
visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egipto. A mesma exigiu dele um grande
esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía, à distância e
às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num momento
histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do amor que
queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor era
proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as
dificuldades e perigos, S. Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma
atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando
estiverdes entre sarracenos e outros infiéis (...), não façais litígios nem
contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de
Deus. No contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante
que, há oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou
contenda e também viver uma submissão humilde e fraterna, mesmo com quem
não partilhasse a sua fé.
«Não
fazia guerra dialéctica impondo doutrinas, mas comunicava o amor de Deus;
compreendera que Deus é amor, e quem permanece no amor, permanece em Deus[1]. Foi
assim pai fecundo que suscitou o sonho de uma sociedade fraterna, pois só o ser
humano que aceita aproximar-se das outras pessoas com o seu próprio movimento,
não para retê-las no que é seu, mas para as ajudar a serem mais elas mesmas, é
que se torna realmente pai. Naquele mundo cheio de torreões de vigia e
muralhas defensivas, as cidades viviam guerras sangrentas entre famílias
poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as áreas miseráveis das periferias
excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo a verdadeira paz, libertou-se de
todo o desejo de domínio sobre os outros, fez-se um dos últimos e procurou
viver em harmonia com todos. Foi ele que motivou estas páginas»[2].
3. Estas páginas luminosas são, de
facto, uma encíclica extraordinária, sobre a fraternidade e a amizade social. Só
posso recomendar a sua leitura atenta. Não só para a ler, mas para ser uma
fonte de prática social, política, económica e religiosa. Apesar da miopia de
certo racionalismo, as várias religiões, em diálogo, podem ser uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a
defesa da justiça na sociedade.
«Embora
a Igreja respeite a autonomia da política, não relega a sua própria missão para
a esfera do privado. Pelo contrário, não pode nem deve ficar à margem na
construção de um mundo melhor nem deixar de despertar as forças
espirituais que possam fecundar toda a vida social. É verdade que os
ministros da religião não devem fazer política partidária, própria dos leigos,
mas mesmo eles não podem renunciar à dimensão política da existência que
implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento
humano integral.
«Como
cristãos, não podemos esconder que, se a música do Evangelho parar de vibrar
nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura
que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a sua fonte
no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do Evangelho
cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de
trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos
desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher. Outros bebem de
outras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e fraternidade está
no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, para o pensamento cristão e para a acção
da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com o mistério sagrado do
outro, à comunhão universal com a humanidade inteira, como vocação de todos»[3].
O próprio Papa, ao fazer oito anos de pontificado,
deslocou-se a Assis para, junto do túmulo de São Francisco, na véspera da sua
Memória litúrgica (3. 10. 2020), assinar não apenas a encíclica, mas mostrar a
fonte que a inspirou.
Falta ao Papa Francisco ter a atitude que o santo de Assis
teve para com as mulheres, na figura de Santa Clara. Francisco e Clara vibravam
com a mesma música do Evangelho. Tem uma desculpa. O Papa João Paulo II talvez
tenha exorbitado, ao declarar que as mulheres nunca podiam prestar o serviço
que os homens prestam, na Eucaristia, ao povo de Deus.
Espero que o Sínodo de toda a Igreja mostre o que o Papa
Francisco declarou no seu programa de pontificado: o que sempre assim foi,
não tem de ser sempre assim.
06. Fevereiro. 2022
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