1. Para António Damásio, “não temos qualquer relato científico
satisfatório quanto à origem e ao significado do Universo, ou seja, não temos
uma teoria de tudo que nos diga respeito. Serve isto para recordar que os
nossos esforços são modestos e hesitantes, e que devemos estar abertos e
atentos quando decidimos abordar o desconhecido”[1].
Em certas formas de
espiritualidade e de teologia, a modéstia não é a regra. Na orientação
espiritual, não falta quem se julgue conhecedor da vontade de Deus e com capacidade
de a discernir para si e para os outros. Implorar o Espírito Santo para acolher
a sua luz é uma condição essencial para estarmos prontos a dar razão da nossa
esperança, como recomenda S. Pedro[2]. Sem esse cuidado, seremos
cegos guias de cegos. Pedir conselho é próprio de quem reconhece os seus
limites. Daí a convencer-se que podemos coincidir, nas nossas opiniões, com a
vontade de Deus, é presunção a mais.
Em teologia, sempre me agradou a extrema modéstia de Tomás
de Aquino. Foi discípulo de Alberto Magno, assim chamado pelo seu saber
enciclopédico e pela sua curiosidade insaciável. Tomás tinha uma consciência
pedagógica mais apurada. Notava que os mais novos tinham dificuldade em seguir
a multiplicidade de questões no campo científico, filosófico e teológico.
Comentou Aristóteles e muitos livros da Bíblia, participou em muitas questões disputadas e não receava ser exposto à
curiosidade dos estudantes acerca dos temas mais variados. Resolveu elaborar um
imenso guião para principiantes. Acabou por ser muito apreciado pelos
investigadores. Trata-se da Suma de Teologia.
Modesta era a sua própria ideia de teologia. Depois de expor
o seu projecto, as suas exigências, o seu método e de estabelecer os argumentos
humanos que apoiam a fé na existência de Deus, ao dizer vamos tentar saber como Deus é, suspende esse atrevimento:
vamos saber como Deus não é[3]. A sua teologia é,
sobretudo, uma anti-idolatria. Não
atribuir a Deus e à sua vontade o que são construções nossas.
No final da vida, a partir da sua experiência mística,
disse: tudo o que escrevi me parece palha.
A teologia negativa livrou-o da
idolatria das concepções teológicas. Não era cepticismo. Como cantou, no seu
poema para a festa do Corpo de Deus, seguiu o princípio: atreve-te quanto puderes. Não tinha o culto da humildade ignorante,
nem se contentava com repetir um credo ortodoxo. Escreveu: “é necessário que
aqueles que buscam as raízes da verdade se apoiem em razões e se esforcem por
saber como é verdade aquilo que afirmam. De outro modo, se o mestre se contenta
com resolver a questão com o recurso a autoridades, poderá assegurar, sem
dúvida, ao ouvinte, o que está certo na fé, mas este não adquire ciência nem
compreensão e ficará de cabeça vazia”[4].
A teologia cristã e a verdadeira
espiritualidade são fruto da mente e do
coração no interior da dinâmica da fé teologal, cujo termo não são os
artigos da fé, mas o infinito mistério de Deus amado e conhecido. A oração faz
parte da investigação teológica, como mostrou Sto. Anselmo, na perspectiva de Sto.
Agostinho: “Não procuro, Senhor, penetrar na tua profundidade… Mas quero
compreender, ainda que seja um pouco, a tua verdade que o meu coração crê e
ama. Não procuro compreender para crer, mas creio para compreender, pois, bem
sei, se não creio, não compreenderei”[5].
Nunca podemos prescindir do
conhecimento científico nem do questionamento filosófico. Se não virmos que,
pelo lado de Jesus Cristo, corre a vida e o sentido último da nossa história,
não poderíamos acolher a sua graça. A graça não substitui a natureza, antes a
reforça.
Uma teologia sadia nasce e
desenvolve-se dentro de uma espiritualidade aberta à acção evangelizadora. Uma prática
evangelizadora exige e desenvolve uma vida e uma teologia mística. Karl Rahner
insurgiu-se, com razão, contra uma teologia
kerigmática que desprezava a investigação científica[6]. Uma teologia pastoral sem
investigação é um engano. Uma teologia que pretende ser científica e não cheira
a povo perde-se no vazio, como diz o Papa Francisco.
2. Não podemos crer sem interpretar. Edward Schillebeeckx, depois
de todos os embates que teve com o Vaticano, mostrou que tinham interpretações
diferentes das mediações humanas da fé. Elaborou, por isso, os pressupostos e a
ciência da interpretação. Parte da experiência da fé na Bíblia, não como uma
teologia da palavra, porque a palavra de Deus é a palavra dos seres humanos que
falam de Deus.
Dizer, sem mais, que a Bíblia é a
palavra de Deus, não corresponde à verdade. Só é a palavra de Deus
indirectamente. Os escritos bíblicos são testemunhos de homens e mulheres de
Deus, que viveram uma experiência e a exprimem. A sua experiência vem do
Espírito e, neste sentido, pode dizer-se, com razão, que a Bíblia é inspirada,
mas, ao mesmo tempo, é preciso não esquecer a mediação humana, histórica,
contingente. Nunca existe encontro directo de Deus, só a sós, com o homem. Efectua-se
sempre através de mediações. São os seres humanos que falam de Deus. Não aceitar
mediações históricas é cair, necessariamente, no fundamentalismo[7].
3. Alegra-me que Aga Khan tenha dito que a religião ismaelita é uma
religião inteligente. Tem como premissas a paz, o bem-estar, a sabedoria e o
desenvolvimento[8].
Parece querer recuperar, na actualidade, o que foi uma das correntes criadoras
do Islão medieval. Uma religião que não pensa, ou que só pensa o já pensado,
cai inevitavelmente no fundamentalismo e na violência.
Terá sido uma iniciativa
inteligente a criação de um Estado judaico? Não irá aumentar o anti-judaísmo?
Não será um Estado de exclusão?
Não ficam mal, a nenhuma religião
que queira ser inteligente, as observações do Papa Francisco:
Uma fé que não nos põe em crise é uma fé em crise; uma fé
que não nos faz crescer é uma fé que deve crescer; uma fé que não nos questiona
é uma fé sobre a qual nos devemos questionar; uma fé que não nos anima é
uma fé que deve ser animada; uma fé que não nos sacode é uma fé que deve ser
sacudida.
Acrescenta também: existe o perigo real de deixar às gerações
vindouras escombros, desertos e imundices[9].
Boas férias e até Setembro
29. 07. 2018
[1] A estranha ordem das coisas, Temas e Debates, Lisboa, 2017, p. 332
[2] 1P 3, 15-16; Rm 8, 26-27.
[3] S.Th., I, q.3, prólogo (cf. q. 12 e 13)
[4] Quodlibet, IV, q.9, a.3
[5]
Proslogion, 1
[6] Karl Rahner, Le courage du théologien, Paris, Cerf, 1985, pp 43
[7]
Maria Clara Bingemer, Experiência de Deus na contemporaneidade, Lisboa,
Paulinas 2018. A autora teve em conta Karl Rahner, mas esqueceu-se de Edward Schillebeeckx,
Je suis un théologien heureux, Paris, Cerf 1995.
[8]
Revista do Expresso, 21.07.2018
[9]
L’ Osservatore Romano, O clamor
angustiado da terra, 12.07.2018, http://www.osservatoreromano.va/vaticanresources/pdf/POR_2018_028_1207.pdf
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