1. Continuará
a discutir-se as origens do Presépio. Quem visitar a Basílica de Santa Maria
Maior (Roma), poderá ver, num mosaico do século III, uma representação do Presépio,
mas o cenário já nos é oferecido por S. Lucas. Seja como for, o grande impulso
foi dado por S. Francisco de Assis, no século XIII, na forma mais simples e
despida que se possa imaginar. Uma manjedoura cheia de feno, um burro e uma
vaca. Esse curral irá despertar o sentido da pobreza extrema de Deus no mundo e
todas as formas da imaginação popular e dos grandes artistas. Agora, as
televisões tomaram conta e desenvolvem muitas formas de solidariedade, para que
a vida dos pobres não seja ainda mais dolorosa. Contra o sentido mais profundo
do Natal, continuamos mergulhados nos horrores das guerras e das suas inumeráveis
tragédias.
No mês de Novembro, completaram-se dez anos da publicação
do Programa do pontificado do Papa Francisco, a Exortação Apostólica A
Alegria do Evangelho. Em parte, coincidiu com o Advento que estamos a viver.
Vou, no entanto, recorrer ao testemunho, por ele evocado, de Madeleine Delbrêl (1904-1964), que incarnou a
alegria da fé entre os não crentes. Ela própria escreveu: «Uma vez que
conhecemos a palavra de Deus, não temos o direito de não a receber; quando a
recebemos, não temos o direito de não a deixar incarnar-se em nós; quando se incarna
em nós, não temos o direito de a conservar para nós: a partir daquele momento,
pertencemos àqueles que a esperam». Segundo Madeleine, evangelizando somos
evangelizados. Por isso, inspirando-se em São Paulo, dizia: «Ai de mim, se a
evangelização não me evangelizar!».
Acerca desta mulher
testemunha do Evangelho, o Papa Francisco observa: também nós aprendemos que,
em cada situação e circunstância pessoal ou social da nossa vida, o Senhor está
presente e chama-nos a habitar o nosso tempo, a partilhar a vida dos outros, a
misturar-nos com as alegrias e as dores do mundo. Em particular, ensina-nos
que até os ambientes secularizados nos são úteis para a conversão, pois a
interacção com os não-crentes estimula o crente a uma contínua revisão do seu
modo de crer e a redescobrir a fé na sua essencialidade[i].
2. Creio que foi num livro do
meu grande amigo, Frei Pedro Meca (1935-2015), que viveu entre os
marginalizados de Paris, que conheci um texto de Jean-Paul Sartre sobre o
Presépio.
Li a tradução desse texto, em 2016, publicada pela
Pastoral da Cultura. É essa tradução que vou reproduzir.
Estamos em 1940, na Alemanha, num campo de prisioneiros franceses. Alguns
padres pedem a Jean-Paul Sartre, recluso há alguns meses com eles, que redija
uma pequena meditação para a véspera de Natal. Sartre, ateu, aceita. E oferece
aos seus camaradas "Barioná ou o filho do trovão", procurando unir
crentes e não crentes. Um excerto:
«Como hoje é Natal, tendes o direito de exigir que vos
seja mostrado o presépio. Ei-lo. Eis a Virgem, eis José e eis o Menino Jesus. O
artista colocou todo o seu amor neste desenho, mas vós talvez o considereis
ingénuo. Vede, as personagens têm belos ornamentos, mas estão rígidas,
dir-se-ia que são marionetas. Não eram certamente assim. Se fordes como eu, que
tenho os olhos fechados... Mas escutai: só tendes de fechar os olhos para me
ouvir e eu vos direi como os vejo dentro de mim.
A Virgem está pálida e observa o menino. O que falta
pintar no seu rosto é um maravilhamento ansioso, que só aparece uma única vez
numa figura humana. Pois Cristo é o seu filho, a carne da sua carne e o fruto
das suas entranhas. Ela carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio e o seu
leite tornar-se-á o sangue de Deus. E em certos momentos a tentação é tão forte
que esquece que é Deus.
Ela aperta-o nos seus braços e diz: "Meu pequenino!".
Mas noutros momentos permanece perturbada e pensa: "Deus está ali", e
sente-se tomada por um horror religioso por este Deus mudo, por este menino
terrificante. Pois todas as mães se detêm por instantes diante desse fragmento
rebelde da sua carne que é o seu filho e sentem-se exiladas diante dessa nova
vida que foi feita com a sua vida e que povoam de pensamentos estranhos. Mas
nenhum filho foi mais cruelmente e mais rapidamente arrancado da sua mãe,
porque Ele é Deus e está além de tudo o que ela pode imaginar.
E é uma dura provação para uma mãe ter vergonha de si
e da sua condição humana diante do seu filho.
Mas penso que deve ter havido outros momentos, rápidos
e escorregadiços, nos quais sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o
seu pequenino, e que é Deus. Ela observa-o e pensa: "Este Deus é meu
filho! Esta carne divina é a minha carne. É feito de mim, tem os meus olhos e
esta forma da sua boca é a forma da minha. Parece-se comigo. É Deus e parece-se
comigo".
E nenhuma mulher teve da sorte o seu Deus só para si.
Um Deus pequenino que se pode tomar nos braços e cobrir de beijos, um Deus
quente que sorri e respira, um Deus que se pode tocar e que vive. E é nesses
momentos que eu pintaria Maria, se eu fosse pintor, e tentaria representar a
expressão de terna audácia e de timidez com a qual ela avança o dedo para tocar
a doce pelezinha deste menino-Deus, de quem sente sobre os joelhos o peso morno
e que lhe sorri.
E eis tudo para Jesus e para a Virgem Maria.
E José? José, não o pintaria. Mostraria apenas uma
sombra ao fundo da granja e dois olhos brilhantes. Pois não sei o que dizer de
José e José não sabe o que dizer de si mesmo. Adora e está feliz por adorar e
sente-se um pouco em exílio.
Creio que sofre sem o admitir. Sofre porque vê o
quanto a mulher que ama se parece com Deus, o quanto ela já está perto de Deus.
Pois Deus rebentou como uma bomba na intimidade desta família. José e Maria
estão separados para sempre por esse incêndio de claridade. E toda a vida de
José, imagino, será para aprender a aceitar[ii].
3. Li este texto na Missa do II Domingo do Advento. Teve
um tal impacto e tantos foram os pedidos, que não resisti a transcrevê-lo nesta
crónica de Natal.
Como cristãos, não devemos impor os sinais da nossa fé
a ninguém, mas também não os devemos ocultar. Devemos ser igrejas de saída
para a missão universal de fazer um mundo de irmãos (Fratelli Tutti), em
liberdade. É esta a Alegria do Evangelho, a alegria da evangelização. Se
como diz S. Lucas, o antepassado de Jesus é Adão, fora da fraternidade não há
futuro. As guerras são todas fratricidas e são deicidas, sejam elas contra quem
forem.
Como escreveu Leonardo Boff, a lei suprema do Universo,
que permitiu que todos chagássemos até aqui, é a da cooperação de todos com
todos. É a solidariedade cósmica, porque tudo tem a ver com tudo, em todos os
lugares, em todos os momentos, em todas as circunstâncias[iii].
É preciso ajudar a fazer o Natal desse mundo. Mundo feito por todas as pessoas
de boa vontade.
Façamos do mundo uma festa, festa de Natal!
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