1. Dado o pressuposto católico do destino
universal dos bens deste mundo, somos obrigados a perguntar: serão possíveis
mudanças de benefício para todos? É
urgente esta pergunta no começo deste Advento marcado pela persistência do terrorismo,
da destruição, da miséria e da repetição ineficaz dos apelos à paz. São muitas as pessoas a confessar o seu
desalento e os habituais “profetas da desgraça” continuam a repetir que todas
as tentativas de mudança acabam quase sempre em fracasso.
Há precisamente 75 anos (10.12.1948) que foram
proclamados os Direitos Humanos. Muitos dizem: foram proclamados, mas não foram
nem são respeitados. Essa conclusão rotunda esquece o que já foi e está a ser conseguido.
É verdade que o espectáculo do mundo, das guerras, da exploração e tráfico de
pessoas pode levar-nos, precisamente, ao desânimo, mas também pode despertar
novos grupos e movimentos de esperança activa.
No dia em que
chegássemos à conclusão de que nada vale a pena, é porque tínhamos desesperado
de sermos humanos e desesperado de sermos cristãos. O que confessamos todos os
Domingos é que, embora tenhamos falhado em muita coisa, não desistimos de viver
e lutar por mais alegria na vida. Cada Domingo pode significar uma ressurreição
de seres limitados e pecadores que nós somos. Isto também significa que não aceitamos
derrotas definitivas.
Neste Domingo, celebramos algo de extraordinário. S.
Marcos refere um acontecimento impressionante. Jesus de Nazaré, filho de um
carpinteiro, abandonou essa profissão familiar na procura de um caminho para a
transformação do mundo que conhecia, mundo de judeus de muitas tendências e de
pagãos do Império Romano. Nas suas buscas, encontrou-se com o movimento do
extraordinário João Baptista que proclamava que era preciso mudar radicalmente
e pedia aos seus seguidores, em sinal dessa vontade de mudança, que
consentissem em ser baptizados no rio Jordão, a sede desse amargo movimento.
Este encontro deve ter sido mesmo real porque vem
narrado, de formas diferentes é certo, pelos quatro evangelistas e com
testemunhas nos Actos dos Apóstolos. S. Marcos é muito sóbrio e vai
directo ao essencial. Jesus, tendo entrado nesse movimento, foi baptizado como
muitos outros. Mas S. Marcos sublinha que Ele, ao sair da água, viu os céus abertos
e o Espírito, como uma pomba, descer sobre ele. Uma voz do céu declarou: Tu és
o meu Filho amado, em ti me reconheço.
Esta experiência mística mostra-lhe a insuficiência do
movimento religioso e moral do seu mestre João Baptista e é tão forte essa
experiência que o impele a um caminho diferente, novo. A raiz da mudança é o
próprio Espírito de Deus. Larga tudo e passa quarenta dias de retiro no
deserto. Aí, começam outros problemas. Dizem os evangelistas que foi tentado
pelo diabo, com expressões do antigo messianismo que o desviavam do seu novo
caminho, isto é, tentado pelo poder económico, pelo poder político e pelo poder
religioso para formar o seu reino e o reino dos discípulos.
Ele venceu radicalmente essas tentações. Os discípulos
que convocou estavam tão imbuídos do messianismo que Ele rejeitava, que não
viram, no apelo de Jesus, a novidade que Ele representava. Viram apenas uma
oportunidade fantástica de serem os ministros do reino que ambicionavam.
2. Hoje, na Igreja Católica, pratica-se
legitimamente o baptismo de crianças e de adultos. O de adultos pressupõe a
conversão a Jesus e ao seu projecto de mudança universal. O das crianças deu origem
a muitas confusões que alimentaram, na Cristandade, uma desvalorização da
condição humana amada de Deus, antes de qualquer baptismo. Pode, no entanto,
ter uma interpretação muito bela. Deus não espera que sejamos capazes de O
reconhecer e amar para gostar de nós, todos, absolutamente todos, baptizados ou
não. O amor de Deus é sem motivo e anterior ao nosso reconhecimento. Ama-nos
porque Ele é amor, como diz S. João.
É normal que os pais, verdadeiramente cristãos, desejem
para os filhos o que têm de melhor, o reconhecimento de sermos amados, desde
sempre e para sempre. Quando se incriminam os pais que baptizam os seus filhos
sem o consentimento deles, também deviam ser incriminados por os alimentar desde
que nascem, cuidarem da sua higiene e inscrevê-los na escola. Quando as
crianças são baptizadas só para cumprirem um costume local ou familiar, sem
compromisso de os ajudarem a descobrir e a viver do Espírito de Cristo,
atraiçoam a verdade do baptismo das crianças. As crianças baptizadas devem ser
educadas a desenvolver todas as suas capacidades, a encontrarem um caminho de
realização, não para vencerem na vida, não para serem pessoas dominadas pela
vontade de poder económico, político ou religioso, mas para se tornarem cada
vez mais competentes para servir os que mais precisam de ajuda e para
contribuírem com uma nova economia e uma nova política e uma fé capaz de vencer
todos os obstáculos.
3. Contra todo o derrotismo, este
tempo testemunha, com a eleição do Papa Francisco, que é possível mudar. Ele
acredita na Alegria do Evangelho como oferta divina a todos os seres
humanos, crentes e não crentes, a todos. É essa mudança para o reino da alegria
que ele procura viver e testemunhar, dentro e fora da Igreja. Ele já aprendeu e
testemunhou, perante a Igreja e o mundo, como é difícil trabalhar pela mudança,
dadas as resistências e as traições que é preciso enfrentar. O importante é não
desistir. Podemos não ver os frutos de todos esses trabalhos, pela justiça,
pela paz e pela integridade da criação, mas o que é realizado nessa direcção
ficará sempre como testemunhos a desafiar o futuro e a ser retomados pelas
novas gerações.
Neste sentido, não podemos considerar inúteis textos como
o que assinou com o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabby
(2019), o grande Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial
e da convivência comum. Este texto parece que serviu de ensaio para a
marcante Encíclica Fratelli Tutti (2020). O que sempre procura é semear
esperança, para que não se desista de sonharmos juntos e trabalharmos
para um futuro melhor. Francisco ficará sempre como o Papa que não finge que
sabe tudo, que não recorre à chamada infabilidade pontifícia para enfrentar os
grandes problemas da humanidade e da Igreja Católica. Ele próprio explicou como
convoca cientistas, filósofos e teólogos para indicar os caminhos a percorrer. E
não só. O método escolhido para a preparação e realização do sínodo mostra que precisa
de todos, mulheres e homens, jovens e adultos, seguindo o bom princípio: o
que a todos diz respeito, deve ser tratado por todos.
O Papa Francisco não é eterno e os cínicos continuarão a
dizer: vai morrer e nem o mundo nem a Igreja mudaram como ele desejava. Isso significa
apenas que dos cínicos não podemos esperar nada. Pertence às novas gerações tornarem-se
cada vez mais competentes e mais generosas. É de pessoas que vivem para servir
e não para dominar que o presente e o futuro precisam. Esse caminho não engana.
10 Novembro 2023
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