domingo, 10 de dezembro de 2023

SERÁ POSSÍVEL MUDAR? Frei Bento Domingues, O.P.

 

1.  Dado o pressuposto católico do destino universal dos bens deste mundo, somos obrigados a perguntar: serão possíveis mudanças de benefício para todos?  É urgente esta pergunta no começo deste Advento marcado pela persistência do terrorismo, da destruição, da miséria e da repetição ineficaz dos apelos à paz.  São muitas as pessoas a confessar o seu desalento e os habituais “profetas da desgraça” continuam a repetir que todas as tentativas de mudança acabam quase sempre em fracasso.

Há precisamente 75 anos (10.12.1948) que foram proclamados os Direitos Humanos. Muitos dizem: foram proclamados, mas não foram nem são respeitados. Essa conclusão rotunda esquece o que já foi e está a ser conseguido. É verdade que o espectáculo do mundo, das guerras, da exploração e tráfico de pessoas pode levar-nos, precisamente, ao desânimo, mas também pode despertar novos grupos e movimentos de esperança activa.

 No dia em que chegássemos à conclusão de que nada vale a pena, é porque tínhamos desesperado de sermos humanos e desesperado de sermos cristãos. O que confessamos todos os Domingos é que, embora tenhamos falhado em muita coisa, não desistimos de viver e lutar por mais alegria na vida. Cada Domingo pode significar uma ressurreição de seres limitados e pecadores que nós somos. Isto também significa que não aceitamos derrotas definitivas.

Neste Domingo, celebramos algo de extraordinário. S. Marcos refere um acontecimento impressionante. Jesus de Nazaré, filho de um carpinteiro, abandonou essa profissão familiar na procura de um caminho para a transformação do mundo que conhecia, mundo de judeus de muitas tendências e de pagãos do Império Romano. Nas suas buscas, encontrou-se com o movimento do extraordinário João Baptista que proclamava que era preciso mudar radicalmente e pedia aos seus seguidores, em sinal dessa vontade de mudança, que consentissem em ser baptizados no rio Jordão, a sede desse amargo movimento.

Este encontro deve ter sido mesmo real porque vem narrado, de formas diferentes é certo, pelos quatro evangelistas e com testemunhas nos Actos dos Apóstolos. S. Marcos é muito sóbrio e vai directo ao essencial. Jesus, tendo entrado nesse movimento, foi baptizado como muitos outros. Mas S. Marcos sublinha que Ele, ao sair da água, viu os céus abertos e o Espírito, como uma pomba, descer sobre ele. Uma voz do céu declarou: Tu és o meu Filho amado, em ti me reconheço.

Esta experiência mística mostra-lhe a insuficiência do movimento religioso e moral do seu mestre João Baptista e é tão forte essa experiência que o impele a um caminho diferente, novo. A raiz da mudança é o próprio Espírito de Deus. Larga tudo e passa quarenta dias de retiro no deserto. Aí, começam outros problemas. Dizem os evangelistas que foi tentado pelo diabo, com expressões do antigo messianismo que o desviavam do seu novo caminho, isto é, tentado pelo poder económico, pelo poder político e pelo poder religioso para formar o seu reino e o reino dos discípulos.

Ele venceu radicalmente essas tentações. Os discípulos que convocou estavam tão imbuídos do messianismo que Ele rejeitava, que não viram, no apelo de Jesus, a novidade que Ele representava. Viram apenas uma oportunidade fantástica de serem os ministros do reino que ambicionavam.

2. Hoje, na Igreja Católica, pratica-se legitimamente o baptismo de crianças e de adultos. O de adultos pressupõe a conversão a Jesus e ao seu projecto de mudança universal. O das crianças deu origem a muitas confusões que alimentaram, na Cristandade, uma desvalorização da condição humana amada de Deus, antes de qualquer baptismo. Pode, no entanto, ter uma interpretação muito bela. Deus não espera que sejamos capazes de O reconhecer e amar para gostar de nós, todos, absolutamente todos, baptizados ou não. O amor de Deus é sem motivo e anterior ao nosso reconhecimento. Ama-nos porque Ele é amor, como diz S. João.

É normal que os pais, verdadeiramente cristãos, desejem para os filhos o que têm de melhor, o reconhecimento de sermos amados, desde sempre e para sempre. Quando se incriminam os pais que baptizam os seus filhos sem o consentimento deles, também deviam ser incriminados por os alimentar desde que nascem, cuidarem da sua higiene e inscrevê-los na escola. Quando as crianças são baptizadas só para cumprirem um costume local ou familiar, sem compromisso de os ajudarem a descobrir e a viver do Espírito de Cristo, atraiçoam a verdade do baptismo das crianças. As crianças baptizadas devem ser educadas a desenvolver todas as suas capacidades, a encontrarem um caminho de realização, não para vencerem na vida, não para serem pessoas dominadas pela vontade de poder económico, político ou religioso, mas para se tornarem cada vez mais competentes para servir os que mais precisam de ajuda e para contribuírem com uma nova economia e uma nova política e uma fé capaz de vencer todos os obstáculos.

3. Contra todo o derrotismo, este tempo testemunha, com a eleição do Papa Francisco, que é possível mudar. Ele acredita na Alegria do Evangelho como oferta divina a todos os seres humanos, crentes e não crentes, a todos. É essa mudança para o reino da alegria que ele procura viver e testemunhar, dentro e fora da Igreja. Ele já aprendeu e testemunhou, perante a Igreja e o mundo, como é difícil trabalhar pela mudança, dadas as resistências e as traições que é preciso enfrentar. O importante é não desistir. Podemos não ver os frutos de todos esses trabalhos, pela justiça, pela paz e pela integridade da criação, mas o que é realizado nessa direcção ficará sempre como testemunhos a desafiar o futuro e a ser retomados pelas novas gerações.

Neste sentido, não podemos considerar inúteis textos como o que assinou com o Grão Imame de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb, em Abu Dabby (2019), o grande Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da convivência comum. Este texto parece que serviu de ensaio para a marcante Encíclica Fratelli Tutti (2020). O que sempre procura é semear esperança, para que não se desista de sonharmos juntos e trabalharmos para um futuro melhor. Francisco ficará sempre como o Papa que não finge que sabe tudo, que não recorre à chamada infabilidade pontifícia para enfrentar os grandes problemas da humanidade e da Igreja Católica. Ele próprio explicou como convoca cientistas, filósofos e teólogos para indicar os caminhos a percorrer. E não só. O método escolhido para a preparação e realização do sínodo mostra que precisa de todos, mulheres e homens, jovens e adultos, seguindo o bom princípio: o que a todos diz respeito, deve ser tratado por todos.

O Papa Francisco não é eterno e os cínicos continuarão a dizer: vai morrer e nem o mundo nem a Igreja mudaram como ele desejava. Isso significa apenas que dos cínicos não podemos esperar nada. Pertence às novas gerações tornarem-se cada vez mais competentes e mais generosas. É de pessoas que vivem para servir e não para dominar que o presente e o futuro precisam. Esse caminho não engana.

 

 

10 Novembro 2023

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