1. Há pessoas que fazem profissão de optimismo. Olham sempre, ou
fingem olhar, para o “lado positivo” de tudo e, perante qualquer desgraça, repetem:
ainda podia ter sido muito pior! São capazes de recuar até à pedra lascada para
mostrar que agora estamos no melhor dos mundos. Se alguém, mais sensível à
questão social, por exemplo, observa que 20% da população detém 80% dos
recursos mundiais, a resposta já está pronta: as desigualdades são a principal
fonte de progresso para todos.
Quem não quer ser acusado de negativista
refugia-se no prestigiado casamento do pessimismo da inteligência com o
optimismo da vontade. Por não apreciar esses tranquilizantes, o filósofo
espanhol, Xavier Zubiri, apressa-se a declarar que durante toda a sua vida só
conheceu a emoção do puro problematismo.
Um dos alimentos principais da
filosofia são as interrogações. Mas a problematização contínua é o luxo de quem
não tem que decidir. As decisões não podem esperar ver todas as dúvidas
resolvidas. A concepção aristotélica da prudência – virtude da decisão bem ponderada
– recomenda-se tanto aos “tontos com iniciativa”, como aos eternos hesitantes.
Não tenho que venerar nenhuma
dessas atitudes. A todas falta, seja em que domínio for, a alma da vida: o
inesperado, o imprevisível da criatividade, a fuga à rotina, a irrupção do novo.
É precisamente por isso que gosto do hino
litúrgico de J. A. Mourão, inspirado e enxertado na música de A. Gouzes. Implora
o Espírito do Pentecostes, a grande metáfora da realidade profunda do mundo e
da Igreja em movimento: Sopro criador vem
distribuir a fala! Vem força de partir, vem rio de fogo largo!
Esse é o refrão. O hino tem cinco
estrofes. Deixo aqui duas apenas: Tu que revelas
a presença do Deus vivo / no coração do mundo e da vida / Tu que pulsas em nós como fermento/ semente de
fogo, terra orientada. - Tu és a nossa vontade de viver/ intensamente a vida
até ao fim/ o presente e o futuro da nossa esperança/ o que anima a festa no coração
do homem.
2. Quando acolhido no íntimo do quotidiano, é o Espírito de Cristo
que nos volta os olhos para o ritmo invisível dos trabalhos do mundo, seja na investigação
das ciências, nas surpreendentes aproximações entre pessoas e povos, na criação
de beleza em todas as artes, de todos os tempos, e nos alerta para o
desconcerto do mundo.
Herberto Helder[i], num dos seus poemas
místicos, depois de sugerir a mão que refaz o universo, na sua unidade rítmica,
cada coisa e cada animal com a sua aura, descansa: Sento-me a conversar com
Deus; palavra, música, martelo / uma equação: conversa de ida e volta (…) Deus não se debruça na canção; destroça/ a
cadência.
Não
tem nada a ver com a recomendação piedosa de dar lugar a Deus na nossa vida.
Essa recomendação esquece que é, na realidade do mundo, que se vive a sua transcendência
absoluta. Para o Mestre Eckhart, um Deus que precisa de um lugar é um ídolo: por isso é que peço a Deus que me livre de Deus.
E sublinhava: Deus só pode estar num
lugar sem lugar. Nós, sim! Precisamos de acordar, seja onde for, para a divindade em que vivemos, nos movemos
e existimos[ii].
Os grandes criadores de paradoxos,
os místicos, religiosos ou não, impedem
a linguagem religiosa de perder o sal e adormecer nas definições dogmáticas. O
terminal da viagem da fé teologal não são os credos, o culto, os sacramentos ou
o direito canónico, embora sejam sinalizações importantes nos labirintos do
percurso das Igrejas cristãs. Mas S. Paulo notou que todos os carismas e a
própria fé teologal se desfaz na luz infinita do Amor que nos acolhe no termo
da viagem.
3.
No Domingo passado, foi celebrada na Liturgia católica a Santíssima Trindade. Com
música de Langeac, foi cantado, na Missa em que participei, na capela do
Colégio de S. José, um hino muito belo de Santa Catarina de Sena, que
transcrevo:
Ó Deus, Trindade Santa, ó Luz mais radiosa que toda a luz, fogo mais ardente que todo o fogo, Tu és um
oceano, a paz. Tu és um mar sem fundo, mais eu mergulho, mais eu me afundo,
mais eu Te encontro, mais eu Te procuro ainda. Sede que Tu saciaste no deserto
um dia, para sempre ficar com sede de Ti.
É no dinamismo da simbólica
trinitária, na procura criadora da máxima unidade na máxima diversidade, que a
Natureza e o percurso da História Humana se podem salvar. Tudo se perde quando,
em nome da unidade, se sacrifica a pluralidade e quando, em nome da diversidade,
se esquece a comunhão universal. Como diz o citado poema de H. Helder: e depois ninguém fala, e cada coisa actua/ sobre cada coisa, e tudo o
que é visível abala / o território
invisível./ Redivivo. E foi por essa
mínima palavra que apareceu não / se sabe o quê que arrancou / à folha e à
esferográfica canhota a poderosa superfície / de Deus, e assim é / que te
encontraste redivivo, tu que tinhas morrido um momento antes,/ apenas.
Este poeta tem mesmo a “temperatura
de Deus”.
7 de Junho de 2015
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