1. Compreendo o
desejo, manifestado por alguns leitores, de não terem encontrado na crónica do
Domingo passado a transcrição integral dos referidos 10 princípios para um novo
humanismo de J. Kristeva. Talvez não tenham reparado que deixei, em nota, a
forma fácil de recorrer à sua tradução brasileira[i].
Estas crónicas nunca poderão superar o seu carácter
fragmentário. A abordagem dos acontecimentos ou dos temas selecionados pretende
apenas sugerir que é preciso pensar, questionar e debater se não quisermos ser
vítimas dos arsenais mediáticos, mais ou menos sofisticados, vozes diversas do
mesmo intuito de dominação.
Para Kristeva, a refundação do humanismo não é nem um dogma
providencial, nem um jogo de ideias. Confessa que se trata de uma aposta, isto
é, da coragem de apostar na renovação contínua das capacidades dos homens e das
mulheres, juntando crer e saber no
“multi-universo”, cercado de vazio.
Pertence ao novo humanismo o cuidado amoroso do outro, o cuidado
ecológico da Terra, a educação dos jovens, a assistência aos doentes, aos
deficientes, aos idosos, aos fracos.
O novo humanismo não será um regulador do liberalismo. Ao
contrário, será capaz de o transformar, sem inversões apocalípticas ou
promessas de futuros gloriosos. Não cede nem ao delírio nem ao niilismo.
Por outro lado, não tem um discurso fechado, seja em relação
ao passado, ao presente ou ao futuro. É uma aposta de trabalho, um caminho de
abertura e participação na revolução antropológica em curso, carregada de
promessas e ameaças. Ao juntar ousadia e humildade, criatividade e reavaliações
permanentes torna-se a via da sabedoria. O poder de dominação é a droga e o
veneno dos sonhos e projectos imperiais.
Por que razão, perguntava Rousseau, apenas o ser humano
corre o risco de se tornar imbecil? Ele conhecia a resposta: pode cometer os
maiores excessos, quer no mal quer no bem, por que não é guiado apenas pelo
determinismo da Natureza. Custa-lhe, por outro lado, tomar consciência da sua
finitude, do tempo que passa e da morte que o espreita. Tanto o culto de uma
religião alienante, como a rendição à pura imanência, não respeitam a
complexidade da condição humana.
2. Malebranche
dizia que entre todas as ciências humanas, a do homem é a mais digna dele, mas
não é nem a mais cultivada nem a mais desenvolvida. Kant, o grande filósofo da
modernidade, assinalou, com agudeza, a tarefa de uma antropologia filosófica
que deve responder a quatro questões: 1ª, que posso eu conhecer? 2ª, que devo
eu fazer? 3ª, que me é permitido esperar? e 4ª, o que é o homem?
À primeira pergunta, corresponde a metafísica, a moral à
segunda, a religião à terceira, à quarta corresponde a antropologia.
Acrescenta: todas estas disciplinas podem ser reconduzidas à antropologia, pois
as três primeiras desaguam na última.
Kant nunca chegou a escrever essa obra. Como diz Martin
Buber, embora tivesse nos seus escritos um conjunto de preciosas observações
sobre o conhecimento do homem, não abordou nenhum dos problemas que a
antropologia implica: o lugar especial do homem no cosmos, a sua relação com o
destino e com o mundo das coisas, a compreensão dos seus semelhantes, a sua
existência como a de quem sabe que há-de morrer, a sua atitude em todos os
encontros, correntes e extraordinários, perante o mistério.
Podemos, hoje, lamentar a linguagem machista destes
filósofos. Nunca poderiam ter convivido com os movimentos feministas. A questão
de fundo era outra: a diversidade sexual não era importante para a antropologia
filosófica corrente. Entretanto, muita água correu sob as pontes e a
transformação e a diversificação das ciências antropológicas mudaram
completamente o panorama. J. Kristeva pode agora escrever: O humanismo é um feminismo.
3. A proposta do
Papa Francisco assume muito bem esta aposta assim como a de muitos outros
cientistas, pensadores e activistas sociais. A Laudato Si desenvolve e integra a convicção de que tudo está
estreitamente ligado no mundo. A visão holística fica integrada no pensamento
social da Igreja. Esta perspectiva responsabiliza a política local e
internacional pela casa comum, nosso bem-comum. Tudo isso será bem acolhido
pelos crentes e não crentes que procuram uma orientação de responsabilidade inter-geracional para todas as dimensões
da vida humana. A originalidade do Papa Francisco não consiste apenas em
apresentar uma proposta que tem tido uma repercussão absolutamente
extraordinária, apesar de todas as resistências encontradas, dentro e fora da
Igreja. O que ele tem feito é ajudar a ver que nada pode ser resolvido se não
encararmos o mundo a partir dos excluídos, seja qual for o género de exclusão.
Mas mesmo isso podia ser apenas um enunciado doutrinal. O que ele faz é uma
convocatória universal. Mas uma convocatória é sempre para os outros. Ele
tornou-se, pela sua prática de vida pessoal e pastoral, uma convocatória. É
possível ser e viver de outra maneira. Ele é uma profecia em acção.
11.10.2015
[i]http://www.ihu.unisinos.br/noticias/502342-um-novo-humanismo-em-dez-principios-artigo-de-julia-kristeva
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