1. Quando se
tenta explicar a violência das religiões ou contra as religiões resvala-se
facilmente para a justificação do crime.
Nos últimos tempos,
repetem-me: o Papa Francisco considera
o terrorismo, em nome de Deus, como uma blasfémia, mas, nesse caso, o Antigo
Testamento (AT) não é também ele blasfemo?
O exegeta, Armindo Vaz[1], referindo-se a Dt
20,10-18[2], apresenta Moisés a falar
a Israel deste modo:
“Quando te aproximares
duma cidade para combater contra ela…, Iavé teu Deus a entregará nas tuas mãos
e passarás a fio de espada todos os seus varões, as mulheres, as crianças, o
gado; tudo o que houver na cidade, todos os seus despojos, o hás-de tomar como
espólio…Quanto às cidades destes povos que Iavé teu Deus te dá em herança não
deixarás nada com vida; consagrá-los-á ao extermínio: hititas, amorreus,
cananeus, ferisitas, hivitas e jebuseus, como te mandou Iavé, teu Deus, para
que não vos ensinem a imitar todas essas abominações que eles faziam em honra
dos seus deuses: pecaríeis contra Iavé vosso Deus”.
As explicações históricas do autor são importantes, mas
insuficientes.
2. Encontrei, num
estudo de Francolino Gonçalves[3], da Escola Bíblica de Jerusalém
e membro da Comissão Bíblica Pontifícia, algo diferente. O uso que farei da sua
hipótese só me responsabiliza a mim. Passo a transcrever apenas algumas passagens
do seu longo texto.
Começa pela opinião comum: “desde há
cerca de três quartos de século que o iaveísmo teve como matriz e, durante
muito tempo, como único horizonte Israel ou, melhor dito, as relações entre
Iavé e Israel. Nesta perspectiva, a eleição de Israel, a sua libertação do
Egipto e a aliança que Iavé fez com ele, são os artigos fundamentais da fé
iaveísta. Por influência das religiões estrangeiras, em particular da religião
cananeia, o iaveísmo ter-se-ia voltado também para o mundo no seu conjunto e
teria visto nele a obra de Iavé. No entanto, só teria assimilado plenamente a
fé na obra criadora de Iavé, a partir de cerca de meados do séc. VI a.C., sendo
Is 40-55[4], o escrito sacerdotal e
vários salmos testemunhos e resultados deste processo de assimilação. Dito
isso, a fé na obra criadora de Iavé, que tem por quadro e horizonte o cosmos e
a humanidade, teria ficado sempre subordinada à fé na sua obra salvífica, que
tem por quadro e horizonte a história das relações entre Iavé e Israel.
“A opinião comum teve a sua formulação clássica na Teologia do Antigo Testamento de von
Rad, o estudo do género que maior influência exerceu durante o último meio
século. A própria Constituição dogmática Dei
Verbum do Concilio Vaticano II (1965) deve muito à Teologia do luterano von
Rad.
“A primazia absoluta que se atribui à ideia de história da
salvação de Israel, a expensas da solicitude de Deus para com toda a criação,
foi alvo de contestações mais ou menos radicais. Os seus autores baseiam-se
geralmente numa maior atenção prestada aos escritos sapienciais mais antigos,
que a opinião corrente não tem em conta. (…) O AT contém assim duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma,
ele é o Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é o
Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
“Os exegetas não prestaram a estas vozes discordantes a
atenção que mereciam. A esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso,
ficaram sem eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores
nem, por maioria de razão, ao público cristão.
“As minhas pesquisas
nesta matéria confirmaram, essencialmente, o resultado dos estudos que referi
e, além disso, levaram-me a propor uma
hipótese de interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT que é
nova. A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas diferentes: um fundamenta-se no mito da
criação e o outro na história da relação de Iavé com Israel. Simplificando,
poderia chamar-se iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo.
Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento recente, mas
constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT.”
3. Até aqui, dei
a palavra a Francolino Gonçalves. Sem a leitura atenta do seu longo estudo,
será difícil apreender o alcance da sua descoberta. Eu tiro a minha conclusão:
o iaveísmo histórico veicula uma teologia nacionalista, por vezes, de uma
extrema violência. Coloca na boca de Deus os interesses de um povo contra os
outros povos. Este nacionalismo religioso blasfema.
27. 12. 2015
[3] Iavé, Deus de
justiça e de bênção, Deus de amor e de salvação em Cadernos ISTA, nº 22 (2009), p. 107-152, especialmente p. 114-115.
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