1. As
Igrejas Católica Romana e Católica Ortodoxa, em 1054, consumaram, de forma
solene, o seu progressivo divórcio: excomungaram-se reciprocamente. Dizia-me um
amigo, pouco entendido em questões de religião: isso de excomunhões deve ser
com como lançar um feitiço para o quintal do vizinho. Só funciona se os dois
acreditarem nisso.
De facto, quase durante um milénio, foi mantida essa
sacralizada ficção. As duas partes faziam de conta que Deus dependia das suas
quezílias teológicas e culinárias. Teológicas, porque se imaginavam a viajar
pelo interior da Santíssima Trindade e a observar o percurso seguido pela fonte
do Espírito Santo. Culinárias, porque não se entendiam acerca do uso do pão, fermentado ou não fermentado, na celebração da Eucaristia, nem reconheciam a cada
uma das igrejas a liberdade de seguir a receita da sua preferência.
A falta de humor teológico e litúrgico acaba sempre
por sacralizar o ridículo. Certas instituições e pessoas que pretendem manter
intacto o depósito da fé e as invioláveis tradições litúrgicas esquecem que não
há imagem nenhuma nem nenhum conceito que possam corresponder a Deus. A
idolatria confunde a imagem com a realidade. Todas as artes, a começar pela
música e pela poesia, são aspirações à plenitude, mas sabem que não são a
plenitude, são apenas pontes para o invisível e inaudível. Confessam, no mais
sublime que conseguem, o que lhes falta. Como dizia Messiaen, ficam na zona da
imperfeição.
A linguagem litúrgica é simbólica, é a poética da fé,
mas não é divina. A teologia que esquece que só conhece a Deus como
desconhecido resvala para a arrogância pastoral e incapacita-se para reconhecer
que lhe falta o essencial: o Outro.
Com o Vaticano II, a Igreja redescobriu que não
existe ecumenismo, diálogo inter-religioso e diálogo com o mundo, na sua
diversidade, sem o acolhimento do que não pode dominar: Deus e os outros.
2. O
abraço de Paulo VI e do Patriarca Atenágoras[1]
foi o reconhecimento público de que as Igrejas Católicas Romana e Ortodoxa vivem
mal uma sem a outra. As excomunhões, que serviam apenas para camuflar orgulho e
vontade de poder, foram anuladas. Só agora[2],
no entanto, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill saltaram, a pés juntos, um
abismo milenar de suspeitas e acusações. Razão tinha Bergoglio quando disse, a
propósito de um encontro entre católicos e protestantes: se deixarmos nas mãos
de teólogos obtusos o processo ecuménico, teremos de esperar pela eternidade
para ver a unidade entre as igrejas cristãs.
Importa destacar que este encontro não foi apenas
para que os dois bispos se falassem de
viva voz, coração a coração. Foi para que as duas Igrejas se tornassem, em
simultâneo, Igrejas de saída para as periferias do Mundo.
A histórica declaração conjunta não precisa de ser
explicada. Não é um texto esotérico. Precisa de ser conhecida. Estes irmãos
na fé cristã analisaram as relações mútuas entre as duas Igrejas, os problemas
essenciais dos seus fiéis e as perspectivas de progresso da civilização humana.
Porque terão realizado este encontro em Cuba? Porque é
a encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. Foi a partir desta ilha,
símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história
do século XX, que dirigiram a sua palavra a todos os povos da América Latina e
dos outros continentes.
Destacaram o crescente dinamismo da fé
cristã, o forte potencial religioso da América Latina, a sua tradição cristã
secular, presente na experiência pessoal de milhões de pessoas, como garantia
de um grande futuro para esta região.
Em Cuba, longe das antigas disputas do
“Velho Mundo”, sentiram-se mais fortemente a necessidade de um trabalho comum
entre católicos e ortodoxos, chamados a dar
ao mundo, com mansidão e respeito, a razão da esperança que está em nós[3].
Partilharam a Tradição espiritual comum do
primeiro milénio do cristianismo, cujas testemunhas são a Virgem Maria,
Santíssima Mãe de Deus e os Santos que veneramos. Entre eles, contam-se
inúmeros mártires que testemunharam a sua fidelidade a Cristo e se tornaram semente de cristãos.
Deixaram transparecer o espanto e uma
interrogação: como é possível, com uma Tradição comum dos primeiros dez séculos
da Igreja, católicos e ortodoxos estarem privados da comunhão na Eucaristia, há
quase mil anos?
3. Estamos
divididos por feridas causadas por conflitos de um passado distante ou recente,
por divergências – herdadas dos nossos antepassados – na compreensão e
explicitação da nossa fé em Deus, uno em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito
Santo. Deploramos a perda da unidade, consequência da fraqueza humana e do
pecado, ocorrida apesar da Oração de Cristo: Para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti; para
que assim eles estejam em Nós[4].
As Igrejas só podem ser fiéis ao projecto
de Jesus se procurarem a sua união como serviço da união de todos os seres
humanos: para congregar na unidade todos
os filhos de Deus dispersos[5].
A Quaresma ainda não terminou.
21 de Fevereiro de 2016
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