domingo, 6 de março de 2016

UM CONTADOR DE HISTÓRIAS SUBVERSIVAS Frei Bento Domingues O.P.


1. Segundo os evangelhos sinópticos[1], Jesus não deu nenhum contributo para o avanço das ciências, nem revelou um grande pendor metafísico, embora não faltem investigadores que, hoje, o reconheçam como um filósofo.

O facto é que não deixou nada escrito. A sua breve intervenção pública acabou num fracasso tão vergonhoso, que ninguém poderia descobrir alí qualquer caminho de futuro. Aconteceu que os seus seguidores, depois de várias crises, não recalcaram a sua memória. Alguns judeus continuaram a ver, naquele carpinteiro de Nazaré, o messias esperado; outros recusaram-no, o que nada tem de surpreendente. Passados dois mil anos, Daniel Boyarin, conhecido especialista do Talmude, observa que se há alguma coisa que os cristãos sabem bem a propósito da sua religião é que ela não é o Judaísmo. Se há alguma coisa que os judeus sabem bem a propósito da sua religião é que ela não é não o cristianismo. Segundo esse professor de Berkeley, reexaminando as suas fronteiras, nem sempre foi assim nem tem que continuar assim[2]. Mais ainda: certos judeus que o tinham considerado um traidor, como aconteceu com Paulo de Tarso, acabaram por descobrir que Jesus era e é o Cristo de uma dimensão tal que não cabia nos horizontes de um só povo. As suas cartas são reconhecidas como os primeiros escritos cristãos. São textos de interpretação da significação de Jesus Cristo nas experiências de transformação da vida das comunidades cristãs.

 Nas famosas Epístolas paulinas, o Jesus pregador da vinda do Reino de Deus reaparece como Cristo pregado, esperança da ressurreição e fonte divina de salvação universal, cósmica.

Os fogosos escritos de S. Paulo, deslumbrados pela fé no Ressuscitado, não apagaram, no entanto, a memória “histórica” de Jesus.

Dispomos de quatro narrativas, com objectivos, origens e estilos diferentes, mas com o mesmo assunto: Jesus de Nazaré, o amado de Deus cravado na Cruz e que a morte não pode conter. Os três Evangelhos sinópticos insistem em Jesus pregador da proximidade do Reino de Deus. Gosto de ler esses textos imaginando Jesus a contar histórias e a participar em acontecimentos subversivos. 

Os historiadores preocupam-se em destrinçar o que se pode dizer de Jesus observando o método histórico e o que deve ser atribuído às reconstruções feitas a partir da fé das comunidades cristãs. Os textos dos Evangelhos testemunham de Jesus Cristo vivido nas antigas e novas experiências humanas das comunidades. Não cortam nem com a história nem com a realidade presente. As Escrituras crescem com os seus leitores. O real não é só o comprovadamente histórico.

Quando os pregadores repetem as leituras bíblicas da missa, atraiçoam a sua missão. Não fazem a ponte - nem pedem para ser ajudados a fazer essa ponte - entre o passado e a nossa actualidade tão complexa.

2. Neste Domingo, é proclamada a parábola do Filho Pródigo[3]. Espero que nenhum pregador a vá apresentar como uma boa prática a recomendar aos pais e educadores. Seria um desastre. Compensar e festejar os mais mal comportados!? Mas não há nada como ler essa bela narrativa de um filho estroina, um pai que perde a cabeça e do filho ajuizado, completamente indignado.

A linguagem das parábolas não é a dos catecismos nem a dos manuais de boas maneiras. Destina-se, no caso dos Evangelhos, a subverter as representações que temos de Deus e da religião. A nossa tendência é fazer um Deus à imagem dos nossos interesses. O que as parábolas dizem, sem dizer, é que a lógica de Deus é muito diferente da nossa mediocridade e justiça mesquinha.

A parábola não ensina, dá que pensar. Liberta a imaginação. Não nos deixa acorrentados às religiões que herdámos. A fé cristã, ao proclamar, na Eucaristia dominical, a parábola do Filho Pródigo vem dizer: não estraguem o Domingo! É a festa das pessoas em processo de transformação. A Eucaristia - o Papa Francisco tem insistido muito neste ponto - não é um prémio, uma recompensa para os bem-comportados, segundo um código de moral convencional. É um convite para a festa, para a festa de Deus revelada nos gestos e nas palavras de Jesus.

3. Segundo os Evangelhos, o Mestre revelou-se um grande contador de histórias subversivas ou consoladoras. Reconstruidas segundo o que era importante para as comunidades, comunidades criativas, fiéis, mas não herdeiras da repetição.

Agora, quem conta histórias na missa? Quando é que se reúnem os participantes, por grupos, para seleccionar, em correlação com os Evangelhos, as histórias mais significativas e mais interpelantes, no coração da nossa história?

Os cristãos juntam-se para um jantar de festa. Não é para dizer que está tudo bem, pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até ao presente[4], mas é por causa da alegria que vivemos e lutamos para que ela seja completa[5].



06.03.2016



[1] Mateus, Marcos e Lucas
[2] Le Christ Juif, Cerf, Paris, 2013 p.13
[3] Lc 15, 11-32 faz parte das chamadas Parábolas da Misericórdia
[4] Rom. 8, 22
[5] Jo. 15, 11; 1 Jo 1, 4

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