1. Alguns
amigos insistiram comigo para não voltar à pergunta: “Será possível ressuscitar
a Europa?”. Este continente, dentro e fora de portas, antes, durante e depois do
regime de Cristandade, viveu quase sempre em guerra e assim continuará. Um
interregno de 60 anos de paz foi mais fruto do cansaço do que da virtude. A
política, como Aristóteles viu, é o reino do instável para o qual não existe
ciência certa, apenas palpites e raciocínios mais ou menos prováveis.
O que eu deveria questionar, segundo dizem, era o
estado lamentável em que se encontra a liturgia da Igreja, nomeadamente a da
Semana Santa. Não enche as igrejas nem as almas. A pergunta que os padres não
deveriam evitar seria esta: porque será que os feriados de cariz religioso e os
próprios domingos servem sobretudo para umas miniférias dos laicos e dos
católicos não praticantes, cada vez mais numerosos?
Um dia abordarei
o que há de interessante e falacioso nesta pergunta. Se os feriados religiosos
servem para um merecido “descanso”, já não é mau. A mítica e bela narrativa da Criação
coroa de humor um Iavé feliz e fatigado: Deus
concluiu no sétimo dia a sua obra e descansou (Gn 1-2).
Esta justificação, ao mais alto nível teológico, do
descanso semanal é uma das expressões mais sublimes desta versão cósmica e
humanista da sabedoria divina. Quando o dia da liberdade se perverteu com ritualismos
opressivos, um judeu, Jesus da Nazaré, foi radical na denúncia das instituições
religiosas ou outras: o sábado foi feito
para o ser humano e não o ser humano para o sábado (Mc 2,27).
O dia do culto que
não seja o da celebração da alegria e da liberdade é um insulto a Deus. O homo faber, a tempo inteiro, é um
escravo ou um idiota. Não é um criador.
2. Por outro
lado, no coração da liturgia cristã lateja a memória da luta de Cristo contra
todas as formas de fatalismo: sempre assim foi, sempre assim será!
O programa que Jesus apresentou publicamente era um
manifesto libertário. Para o tornar possível desmascarou as tentações
diabólicas da dominação económica, política e religiosa. Nunca quis o
sacrifício, a opressão, o sofrimento, a cruz, a morte. Tudo isto lhe foi
imposto, porque preferiu ser preso, torturado, crucificado, a trair o seu projeto
de fraternidade ilimitada. Preferiu ser morto a trair o sentido último da sua
vida.
Por tudo isto, a Cruz de Jesus, resultado imediato de
um crime jurídico de natureza política, tornou-se o símbolo da generosidade e
da extrema fidelidade. Nada tem a ver com a sacralização do sofrimento, como
muitas vezes ainda ressoa na liturgia e na espiritualidade. Os sacrifícios
exigidos pela fidelidade ao amor são a glória da vida humana. O amor do
sofrimento é uma doença grave!
Passando em revista todas as narrativas e
interpretações do processo de Jesus, retenho o retrato dos Actos dos Apóstolos:
coligaram-se, nesta cidade, contra o teu
servo Jesus que ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com as nações pagãs e os
povos de Israel (Act 4, 17-18).
O extraordinário
movimento litúrgico do séc. XX e que preparou a reforma da Semana Santa nos
anos 50, consagrada no Vaticano II, teve muitas oscilações na sua orientação.
Tanto o modelo monacal como o pastoral tiveram sempre dificuldade em perceber
que não é Deus que precisa do culto litúrgico. É o ser humano que o exige para
ser cristão na transformação da vida em todas as suas dimensões: imanente e
transcendente, interior e exterior, pessoal e social.
A
Eucaristia celebra a memória do itinerário de Jesus Cristo para não nos
perdermos do essencial nos labirintos do quotidiano. Na parábola do bom
samaritano, o sacerdote e o levita para não falharem o encontro com Deus no
culto do Tempo, falharam o encontro com o próximo, o ser humano espancado e
atirado para a valeta. O próximo é a nova categoria social dos sem categoria: o
estrangeiro, o excluído de quem nos aproximamos. O amor incondicional – a caridade – é o sentido escondido do
social, passa pelas instituições, mas nunca se reduz ao que elas podem abranger.
Nas sociedades acontece o inesperado, a alteridade irredutível, do qual também
somos responsáveis, onde devemos reconhecer o humano, o irmão sem qualquer
outra etiqueta, gente da família!
3. Há 60
anos, alguns políticos, sobretudo democratas cristãos e sociais-democratas, lançaram
a União Europeia com o objectivo de promover a paz, os seus valores e o
bem-estar dos seus povos. Em 2012, a União Europeia foi laureada com o Nobel da
Paz. Donde virá, então, o mal-estar actual? O mundo mudou. Entretanto quer a Democracia
Cristã, quer a Social-Democracia perderam a alma ao abandonarem a economia
social e a política do bem comum. Renderam-se à economia que mata seguindo os caminhos que aprofundam as
desigualdades entre super-ricos e o mundo imenso dos pobres.
Não adianta lamentar a diminuição da prática religiosa
dos cristãos. O que importa perguntar: qual é a dimensão interior e política
dessa prática em favor da transfiguração da Europa aberta à transformação do
mundo?
03.04.2016
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