quinta-feira, 5 de maio de 2016

A ALEGRIA DO AMOR (III) Frei Bento Domingues, O.P.


1. “Não é necessário acreditar em Deus para se ser boa pessoa. Em certo sentido, a ideia tradicional de Deus não está actualizada. Pode-se ser espiritual, sem se ser religioso. Não é preciso ir à Igreja e dar a esmola. Para muitas pessoas, a natureza pode ser uma igreja. Na história, algumas das melhores pessoas não acreditavam em Deus, enquanto alguns dos piores actos foram cometidos em Seu nome.”

Estas declarações, atribuídas a este Papa, circulam na internet, em forma de postal. Talvez não tenham sido ditas assim de seguida. Parecem-me um arranjo de várias declarações. Servem aos seus adversários para dizerem que temos um Papa a difundir a indiferença religiosa; para os seus admiradores, ele é tão firme e límpido na sua fé cristã, que não a confunde com o sectarismo ideológico ou religioso. A verdade e o amor venham de onde vierem, são fruto do Espírito Santo. Vejamos.

Não se pode esquecer a declaração de S. João: Nunca ninguém viu a Deus[1]. Jesus, em tudo o que fez, disse e sofreu, mostrou que Ele é um amor infinitamente mais misterioso do que poderíamos imaginar. Devemos, no entanto, como dizia S. Tomás de Aquino, procurar saber como Deus não é para não cair na tentação de O encarcerar nos nossos conceitos e favorecer o ateísmo.

 O amor que Deus nos tem não depende nem dos nossos méritos, nem das nossas catalogações religiosas, morais ou ideológicas. Não pode ser privatizado. Quem se atreve a dizer que Deus é nosso, da nossa Igreja e de mais ninguém, perdeu o sentido do ridículo.

As metáforas que forjamos acerca da divindade precisam de ser revistas, pois podem envelhecer e morrer. Metáforas mortas não ajudam a viagem mística, a pregação do Evangelho da alegria nem a descoberta de novos caminhos da graça divina.

Como observa o teólogo Tomáš Halík[2], que nos próximos dias estará em Portugal, Deus vem ao nosso encontro mais como pergunta do que como resposta. A sua pergunta é inquietante: “que fizeste do teu irmão?” Toda e qualquer religião, que não seja purificada pelo alcance universal desta pergunta, absolutiza o desejo de dominar em “nome de Deus”. Como diz C. S. Lewis, é a suprema perversão: de todos os homens maus, os religiosos são os piores.

2. Chegados a este ponto, perguntar-se-á: mas que tem isto a ver com os Sínodos dos Bispos, acolhidos e interpretados na Amoris Laetitia? Eles não se reuniram para discutir a ideia de Deus! Nesta época de aceleradas mudanças sociais e culturais, o que está em causa são as formas de ajudar as famílias a redescobrirem hoje a alegria do amor, pois tudo o que temos no Novo Testamento é para que a nossa alegria seja completa[3]. A pastoral da Igreja é para que todos tenham vida e a tenham em abundância[4].

No Comunicado de Imprensa do movimento Nós Somos Igreja – já o lembrámos no passado Domingo - o Papa entregou o futuro das famílias aos bispos, aos teólogos, às Igrejas locais, mas não concluiu: tivemos um tempo de debate em que os Bispos, depois de consultarem as suas dioceses, disseram o que tinham a dizer. Agora acabou. Apliquem o que foi decidido!

Puro engano. O Papa Francisco não se contentou com recolher e transmitir o que recebeu dos dois Sínodos, acrescentando alguns retoques. Com esta Exortação alargou, de forma activa, o Sínodo a toda a Igreja. Inaugurou uma nova época de responsabilização das Igrejas locais, não só dos bispos, pois a Igreja local não se confunde com os bispos e as cúrias diocesanas. O cap. VIII exige a mobilização de todos os católicos para enfrentar os novos desafios, vendo, ouvindo e acolhendo os contributos das outras Igrejas cristãs, das outras religiões e de todas as pessoas de boa vontade, para agir com sabedoria e misericórdia.

3. Na Exortação A Alegria do Amor, Bergoglio explicitou a lógica da sua orientação: “O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita. Por isso, temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações e é necessário estarmos atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição“.[5]

Já não há muitas famílias católicas quimicamente puras. Que espiritualidade cultivar, nestas situações complexas, para encontrar os caminhos da alegria do Amor?



01.05.2016





[1] Jo 1,18
[2] Quero que tu sejas!, Podemos Acreditar no Deus do Amor?, Paulinas, 2016, pp 15, 61-62; 45
[3] 1Jo 1, 1-4
[4] Jo. 10, 10
[5] Amoris Laetitia, Paulus, 2016, nº 296, cf. todo o cap. VIII

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