1. A
incerteza, sublinhada pelo Papa Francisco, acerca da sua vinda a Fátima, em
2017 - “Um momento, ainda não disse que vou, mas que gostaria de ir…” - não
ajuda o apetecido desenvolvimento comercial da preparação de um evento marcante
nos anais do Santuário mais rico do país. O investimento exige um quadro
estável para os negócios. Fátima, com 55 hotéis disponíveis, não deixará os seus
peregrinos sentir o que eram as agruras e privações de há cem anos!
O bispo de Leiria-Fátima está, no entanto,
absolutamente convencido que o argentino virá, a menos que problemas com a
saúde o impeçam[1].
Nesta vinda ainda não se fala de um programa para pôr a
Igreja portuguesa a mexer, acusada, em alguns sectores, de estar muito parada e
só reagir quando vê os seus interesses corporativos ameaçados. Como, porém,
dispomos da imagem de Nossa Senhora a viajar pelo país e pelo mundo,
compreende-se que os católicos lusitanos, no geral, não sofram de ansiedade com
as propostas da nova evangelização. Esperam que a “debandada da juventude” se
cure com a idade.
Oiro sobre azul seria que a
presumível visita papal coincidisse com a canonização dos pastorinhos e a
beatificação da Irmã Lúcia, embora haja outros casos bem colocados na fila de
espera.
Quanto a canonizações, como
a de Frei Bartolomeu dos Mártires parece garantida, não escondo que gostava
muito que o Padre Américo, da Obra do Gaiato, viesse juntar-se a S. João de
Deus. São duas figuras do catolicismo português que fizeram da fé uma vitória
sobre a alienação religiosa e a exclusão social. Os meninos da rua encontraram
no Padre Américo um caminho inédito para a alegria de viver. S. João de Deus, o
louco de Montemor-o-Novo e de Granada, experimentou, ele próprio, no corpo e no
espírito, o que não aceitou nos abandonados, nos pobres e nas vítimas de todas
as doenças. Pelo que viveu, sofreu e criou é reconhecido como padroeiro dos
hospitais, dos doentes e dos enfermeiros.
Estas são incarnações
cristãs, em épocas diferentes, que abalam os muros ideológicos e pseudo
religiosos das Igrejas. São pessoas que partem para as periferias mais
assustadoras, sem medo de serem surpreendidas pelo bem ou pelo mal. Cada passo
pode tornar-se uma oportunidade para encontrar a vida heroica e humilhada,
entrelaçadas, onde menos se espera. Sabendo também que cada instituição, por
mais santa que se diga, é sempre uma decepção.
2. Descobrir
que a vida humana é “sem repetição, sem paralelo, sempre uma atribuição nova,
uma concessão do divino, uma excepção em cada uma das suas formas, cânticos e
ultrajes”, é uma graça inesperada. O romance, Os Incuráveis, de Agustina Bessa Luís, é uma das obras portuguesas
de ficção que revela, aos solavancos, o mais sublime nas situações mais
abjectas. Ao criar, na figura da miséria extrema, a existência digna de
adoração, aponta para o verdadeiro modelo de vida que vale a pena canonizar,
pelo menos segundo os critérios do Evangelho.
“ (…) Uma mendiga, a Perdiz, abusada de mil formas ao
longo dos anos, arrastando-se de um lado ao outro da estrada sobre umas
joelheiras de pneu, coçando as pústulas das pernas, que pareciam decepadas e à
parte da sua existência, (…) é surpreendida pela voz de Maria .
- Ainda és viva, Perdiz?
- Já devia ter ido que não faz falta a ninguém, disse a
vendedeira das castanhas,
- “Mulher! A vida é só dos ricos? A vida é de cada um,
não é só dos que têm pernas para andar e pão para comer! “
A partir daí, Agustina escreve o hino mais belo sobre a
condição humana, que deveria figurar em todas as escolas do mundo.
“ (…) eu te digo, princesa, dona de todas as riquezas,
ó fabulosa, ó digna de todos os reinos da Atlântida e de Sabá – porque tu,
manchada, viciosa, cuspida, és o sacrário da vida, és alta e magnificente como
as sequoias, ou como o céu”.
3. Para
Agustina, não vivemos apenas para cantar a beleza da santidade humilhada. A
realidade responsabiliza-nos.
“ (…) Em vão pousamos as mãos sobre os olhos e
ouvidos, e dizemos não assistir, não comparticipar, não sermos responsáveis de
um simples cortejo fúnebre, dessa fisionomia carregada e alvar que o segue, não
acompanharmos nem a sua frieza, nem a sua dor, nem a fealdade desse corpo
mutilado, nem o rasto pimpão dessas botas negras e que reluzem. De facto, nós
estamos lá; em consciência, até ao fim do mundo, recusando ou aceitando,
negando três vezes como Pedro e chorando a nossa cobardia, pactuando com o
nosso não e o nosso sim. Todos nos viram lá não há trevas, em todos os crimes,
em todas as redenções nós somos cúmplices, e aliados, e irmãos. Eis que,
tremendo, muitas vezes forjamos um Deus que nos substitua nessa tarefa sempre
sem precedente que é estar vivo, contribuir com a nossa força, a nossa vontade.
Mas, enquanto que o homem é toda a linha condutora do passado e só ele, apenas
ele, Deus é o tempo anónimo que se converterá a nós”[2].
Deus nunca é desculpa!
22.05.2016
[1] Aura Miguel, Papa em Fátima para o ano. "Para nós, é uma certeza", 11.05.2016
[2] Cf. Maria Luiza Sarsfield Cabral, A dimensão religiosa na obra de Agustina Bessa Luís, in Frei Bento Domingues, Paulinas, 2012, pp
419-445
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