O Cais do Pijiguiti, com a estátua de Amílcar Cabral ao centro, o punho socialista muito estilizado, o edifício da Marinha, a Rádio Nacional, uns jardins mal cuidados, calcorreámos a marginal. Cercado por correntes, o monumento ao 3 de Agosto de 1959, a revolta do Pigiguiti, a ferro e fogo… que incendiou a febre de independência cuja guerra se orquestrou durante meia dúzia de anos… e veio a durar mais dez. Quanto sofrimento, quantas mortes de parte a parte, quantos ais, quantos suspiros, as saudades, tanto ódio, tanta bomba, tanto carro de combate, tanto armamento… ali tudo desembarcava, soldados aos milhares, materiais de manutenção, armamento, ali embarcavam urnas às dezenas, às centenas, milhares sem dúvida, ali se chegava à incerteza duma comissão de dois anos, ali se pisava solo africano duma quentura inaudita e humidade e paludismo e lica e febres… Mais tarde eram os aviões em Bissalanca… Para quê? Como está tudo hoje? Quem (se) aproveitou? Quem forçou? Quem (não) negociou? Em nome de quê uma tragédia assim? As reflexões vêm ao espírito em catadupa. Ao tempo era o medo, era o ambiente, era a incerteza, era o desconhecido, era o aparato militar, as mortes, era a guerra! Hoje é a pena, a nostalgia, os sofrimentos de outra ordem, a inutilidade de vidas jovens forçadas a comissões perigosas, as saudades, a barbaridade, o som dos rebentamentos, as crateras das bombas e dos mísseis, as urnas, os choros e as lágrimas… um recordar mórbido e doentio de tanto desencanto!
Avançámos pelas bermas degradadas, um casco de navio a apodrecer, junto à amurada, um cais ocupado com casebres infectos, entulho, pneus, lixo, muito lixo, aos montes e espalhado, mau cheiro e abandono. As bermas estão imundas, abandonadas, uma via marítima esburacada, candeeiros tortos, linhas dependuradas e fios a monte, enrolados, nas bermas do cais, lama entulho, papéis, pneus, toda a espécie de imundície e escória. Topámos com dois ou três anúncios, muito elucidativos: I.M.P. C.M.B – É PROIBIDO URINAR E VAZAR LIXO. Sintomático e esclarecedor!
Uma tábua, de duvidosa durabilidade e imprevisível resistência, serve de passagem-ponte a um corte longo e profundo do passeio, onde a cloaca escorre imundícies para o cais. E, preso a um poste, candeeiro, pachorrento e acorrentado, um bode branco, de serviço público, à espera de clientes! E o dono por perto para a cobrança.
Há algum movimento de camions, e alguns contentores mostram alguma azáfama de carga e descarga. Poeiral imenso, que o alcatrão derreteu. Subimos à esquerda. É a Amura, forte dos primórdios da ocupação portuguesa, hoje local oficial, sede do mausoléu de Amílcar Cabral. Oficialmente inacessível. Que o diga o Júlio que ali viveu dois anos e que queria ir matar saudades! Nenhuma tentativa resultou, mesmo com a chegada do Maior das Forças Armadas.
Mais acima, logo à direita, o cemitério (enterramento). Logo à entrada, dum lado e doutro, muito bem cuidadas, as campas de militares portugueses e alguns guineenses. Inscrições ainda visíveis, poucas nas campas brancas, anotam os nomes de soldados portugueses tombados na guerra nos anos de 64 e 65… Porque não repatriados? Hoje, cuidadas por um africano contratado pela Embaixada portuguesa, não foram repatriados porque, na altura, o estado português não se encarregava dos gastos da transferência, e os familiares, pobres na generalidade, estávamos em 64-66, não tinham posses… Ali restam esquecidos, embora cuidados, bem como um talhão ao centro que acolhe as ossadas dos mortos no início do séc. XX. Tudo bem cuidado.
Descansem em paz!
AO (Alferes capelão)
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