1. Insisto neste longo e interrogativo título.
Tanto no passado como na actualidade, o uso destas palavras está carregado de
sentidos contraditórios. Existem muitas Igrejas. Quando se fala da Igreja
Católica, muitos teimam, esquecendo o Vaticano II, em referir-se, apenas, à
hierarquia eclesiástica: Papa, Cúria Romana, Cardeais, Bispos e Padres,
deixando de fora a quase totalidade da Igreja. Aconteceu, entretanto, algo de
muito estranho: chegou um Papa a mostrar que isso está completamente errado.
Como a Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium, (A Alegria do Evangelho, 2013), do Papa
Francisco, é muito incómoda, procura-se fazer de conta que é um desabafo
irrelevante, sem consequências. Mas ele quis deixar escrito que se trata de um documento programático e de
consequências importantes, dirigido a cada cristão.
Não se trata de uma vontade de poder, de
auto-afirmação, de quem quer, pode e manda, apoiado na infalibilidade
pontifícia. É precisamente essa mentalidade que ele procura desterrar. A Igreja
é o NÓS de todos os cristãos e é precisamente isto que Bergoglio lembra, em
todas as circunstâncias, a todas as pessoas e grupos, combatendo, sem tréguas,
o clericalismo sempre renascente.
Sabe que é preciso um longo caminho para uma
Igreja de saída dos seus hábitos inveterados. “Saiamos, saiamos para oferecer a
todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a igreja aquilo que muitas
vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja
acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja
doente, fechada, comodamente agarrada às próprias seguranças. Não quero uma
Igreja preocupada em ser o centro. Acaba presa num emaranhado de obsessões e
procedimentos.”[1]
Tem o cuidado de avisar que se alguém se sentir
ofendido com as suas palavras “saiba que as exprimo com estima e com a melhor
das intenções, longe de qualquer interesse pessoal ou ideologia política. A minha
palavra não é a de um inimigo nem de um opositor. A mim interessa-me apenas
procurar que quantos vivem escravizados por uma mentalidade individualista,
indiferente e egoísta, possam libertar-se dessas cadeias indignas e alcancem um
estilo de vida e pensamento mais humanos, mais nobres, mais fecundos, que
dignifiquem a sua passagem por esta terra.”[2]
2. Ao partilhar as suas preocupações sobre a
dimensão social do Evangelho, recorda que os ensinamentos da Igreja acerca de
situações contingentes estão sujeitos a maiores ou novos desenvolvimentos e
podem ser objecto de discussão.
Sem pretender entrar em pormenores, não pode
evitar ser concreto e ficar, apenas, nos grandes princípios sociais, em meras
generalidades que não interpelam ninguém. É preciso tirar consequências
práticas, para que também possam incidir, com eficácia, nas complexas situações
actuais.
Ninguém pode exigir que se relegue a religião
para a intimidade secreta das pessoas, sem qualquer influência na vida social e
nacional, despreocupada com a saúde das instituições da sociedade civil e sem se
pronunciar sobre os acontecimentos que interessam os cidadãos. No entanto, Francisco
sublinha que nem o Papa nem a Igreja possuem o monopólio da interpretação da
realidade social ou da apresentação de soluções para os problemas
contemporâneos[3].
3. Não se esqueça que a referida Exortação
Apostólica se dirige aos membros da Igreja. Nesta, ninguém se pode manter longe
dos pobres, em nome de outras incumbências, mas é a desculpa mais frequente nos
meios académicos, empresariais e, até, eclesiais.
O capítulo dedicado à dimensão social da
evangelização, não pode ser aqui resumido, mas o Papa quis ser muito concreto: não
se pode continuar a confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado. O
crescimento equitativo exige algo mais do que o crescimento económico, embora o
pressuponha. Requer decisões, programas, mecanismos e processos especificamente
orientados para uma melhor distribuição dos rendimentos, criando novas oportunidades
de trabalho, que superem o mero assistencialismo.
Adverte que não propõe um populismo
irresponsável, mas a economia não pode recorrer a remédios que sejam um novo
veneno, como quando pretende aumentar a rentabilidade, reduzindo o mercado de
trabalho e criando assim novos excluídos[4].
A proposta de Francisco é directamente
política: peço a Deus que cresça o número de políticos capazes de entrar num
autêntico diálogo que vise, efectivamente, sanar as raízes profundas e não a
aparência dos males do nosso mundo.
A política, tão denegrida, é uma sublime
vocação. É uma das formas mais preciosas da caridade, porque busca o bem-comum.
Neste ponto, o Papa citava um documento dos Bispos franceses sobre a reabilitação da política (1999).
Entretanto, muita coisa mudou em França e no mundo o que provocou outro documento
sobre a urgência em reencontrar o próprio sentido
da política. A laicidade francesa também está em evolução. O Conselho de
Estado recomenda a autorização de Presépios nas Câmaras Municipais, não como
culto, mas como cultura.
A reforma que Francisco propõe para a Igreja
poderá deixar a política indiferente?
06.11.2016
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