1. O Ano litúrgico
terminou com a carta apostólica Misericordia et Misera[i], do
Papa Francisco, que marca o encerramento do Ano Jubilar da Misericórdia, mas
não da misericórdia. Aproveitou para afirmar: “Quero reiterar, com todas as
minhas forças, que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida
inocente, mas, com igual força, posso e devo afirmar que não existe nenhum
pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando
encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai. (…) Para
que não exista qualquer obstáculo entre o pedido de reconciliação e o perdão de
Deus, concedo a partir de agora, a todos os sacerdotes, em virtude do seu
ministério, a faculdade de absolver todas as pessoas que tenham incorrido no
pecado do aborto."
É normal que os
grandes meios de comunicação tenham realçado esta coroa da misericórdia. Mas
Bergoglio procura integrá-la numa perspectiva mais envolvente, destacando
acontecimentos, mensagens e figuras que são a própria respiração dos Evangelhos.
Se ficasse por aí, continuávamos a olhar para a beleza de há dois mil anos: uma
galeria da misericórdia do passado. Se ficássemos, apenas, com as expressões
devocionais e sacramentais do Ano Jubilar não saíamos dos espaços e dos ritmos do
culto católico. A misericórdia não se exerce apenas, nem sobretudo nas missas,
em resposta à carinhosa exortação saudai-vos
na paz de Cristo!
2. Nesta carta, Bergoglio assume todas
as dimensões do que tem sido a sua intervenção desde que foi eleito Papa, a
começar pelo salto que é preciso dar desde a prática de Jesus até aos nossos
dias: ”Ainda hoje, populações inteiras padecem de fome e sede. Imagens de
crianças que não têm nada para se alimentar percorrem o mundo. Multidões de
pessoas continuam a emigrar à procura de alimento, trabalho, casa e paz. As
doenças são um permanente motivo de dor e aflição que requerem ajuda,
consolação e apoio. Muitas vezes, os estabelecimentos prisionais, além da pena
de privação da liberdade, devido às suas condições, são fonte de desumanidade.
O analfabetismo ainda é enorme. Impede as crianças de se formarem, expondo-as a
novas formas de escravidão. A cultura do individualismo exacerbado, sobretudo no
Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e responsabilidade para com
os outros. O próprio Deus continua a ser hoje um desconhecido para muitos; isto
constitui a maior pobreza e o maior obstáculo para o reconhecimento da
dignidade inviolável da vida humana. Por isso, as obras de misericórdia constituem
um evidente valor social. Impelem a arregaçar as mangas para restituir a
dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs».
Somos, por
isso, chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia, uma
cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara
quando vê o sofrimento dos irmãos. As obras de misericórdia são
«artesanais»: nenhuma delas é cópia da outra, são a possibilidade de criar
uma verdadeira revolução cultural.
Pelos vistos, o
Papa continua fiel às exigências dos seus três
tês: terra, trabalho e tecto. São as
condições mínimas de respeito pela dignidade das pessoas, mas não só. A sua
criatividade simbólica encontra sempre gestos realistas para abrir o futuro.
Como ele próprio diz, à luz do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente»,
celebrado quando já se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as
catedrais e santuários do mundo, intuí
que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário, se deve
celebrar, em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum,
o Dia Mundial dos Pobres.
3. Tudo isso e muito mais, que não cabe
nesta crónica, foi escrito na Solenidade
de um Rei, coroado de espinhos e cruxificado, imagem do mundo, no Ano do Senhor
de 2016, quarto do seu pontificado.
O profeta
Isaías, a grande figura profética do Advento, lançou um novo desafio ao Papa
Francisco: convocar a Igreja, as Igrejas, as outras religiões, os sem religião,
os agnósticos e os ateus para acabar com as indústrias da guerra. Diz o
profeta: converterão as espadas em relhas
de arado e as lanças em foices. Não levantará a espada nação contra nação, nem
mais se há-de preparar para a guerra[ii].
Nada disto
acontecerá só porque se sonhou, nem por qualquer decreto das Nações Unidas. Mas
quando se deixar de sonhar, quando se deixar de responsabilizar as Nações
Unidas e cada um dos países do mundo, quando se deixar de apelar à conversão das
pessoas, de cada um de nós, por se julgar que tudo isto são utopias, é porque
já desistimos da humanidade, dos seus pequenos e grandes passos e, os cristãos
ter-se-ão perdido de Cristo, nossa Paz, esperança do mundo.
Começou hoje o Advento, recomeçaram os
trabalhos do futuro.
27.11.2016
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