1. A partir dos finais dos anos 60 do século
passado, os militantes dos movimentos cristãos eram bombardeados com repetidas
afirmações marxistas: a fé é a alienação
da vida humana, a Igreja é o secular instrumento
da alienação e os padres são os
intelectuais orgânicos desse processo alienador.
A liturgia e a mística eram consideradas
formas de fuga do mundo. Nesta perspectiva, a mística era rejeitada como
expoente máximo do medo à realidade material, da fuga das responsabilidades
sociais, da alienação na sua forma extrema. Era também recusada por ser uma
mística de olhos fechados perante a história, sem ligação com as tarefas
humanas[i].
Muitas atitudes e práticas religiosas, do
passado e do presente, merecem bem esta crítica, mas diante do texto do domingo
passado, e que desejo continuar hoje, essa crítica faz-nos sorrir. Não foram
poucos os marxistas da época que se emburguesaram. Muitas pessoas da Igreja – e
muitas que não se reconhecem em todas as suas expressões -, lideradas pelo Papa
Francisco, vêem o mundo a partir dos excluídos e vivem em função da
transformação da sociedade, como ficou claro no 3º Encontro com os
participantes dos Movimentos Populares.
As organizações dos excluídos - e de tantas
outras de diversos sectores da sociedade - estão chamadas a revitalizar e a
refundar as democracias que atravessam uma verdadeira crise. Não devem ceder à
tentação de se deixarem reduzir a agentes secundários ou, pior, a meros administradores
da miséria existente. Nestes tempos de paralisia, desorientação e propostas
destruidoras, a participação como protagonistas dos povos que procuram o bem
comum pode vencer, com a ajuda de Deus, os falsos profetas que exploram o medo
e o desespero, que vendem fórmulas mágicas de ódio e crueldade ou de um
bem-estar egoísta e uma segurança ilusória.
Como vimos no Domingo passado, Bergoglio não acredita na fórmula beata: vai-se fazendo o que se pode e depois se
verá. Para revitalizar a democracia é preciso não fechar os olhos e
alimentar ilusões. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas
dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação
financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se
resolverão os problemas do mundo nem problema algum. A desigualdade é a raiz
dos males sociais[ii]. Por isso, o Papa
Francisco disse e repetiu: o futuro da humanidade não está unicamente nas mãos
dos grandes dirigentes, das grandes potências e das elites. Está fundamentalmente
nas mãos dos povos, na sua capacidade de se organizarem e orientarem este
processo de mudança com humildade e convicção[iii]. Não
devem consentir em serem excluídos da Política, com letra grande, e reduzir
cada um dos movimentos à sua pequena horta.
2. O velho argentino tocou num segundo risco
dos Movimentos: deixar-se corromper.
Assim como a política não é uma questão de “políticos”, também a corrupção não
é um vício exclusivo da política. Há corrupção na política, nas empresas, nos
meios de comunicação, nas igrejas e, também, nas organizações sociais e nos
movimentos populares. Há corrupção radicada nalguns âmbitos da vida económica,
em particular na actividade financeira. É menos noticiada do que a corrupção de
âmbito político e social.
Importa, no entanto, realçar o seguinte: aqueles que escolheram uma vida de
serviço têm uma obrigação acrescida de honestidade. A medida é muito alta: é
preciso ter vocação para servir com um forte sentido de austeridade e humildade.
Isto é válido para os políticos, para os dirigentes sociais e para nós
pastores.
Disse «austeridade» e gostaria de esclarecer que esta palavra é equívoca.
Refiro-me à austeridade moral, no modo de viver, pessoal e familiar. Não estou
a falar daquela que é imposta pelas leis e astúcias do mercado…
3. A qualquer pessoa que seja demasiado
apegada às coisas materiais e que ama o dinheiro, banquetes exuberantes, casas
sumptuosas, roupas de marca, carros de luxo, aconselharia que compreenda o que
está a acontecer no seu coração e que reze a Deus para que o liberte destes
laços. Mas, parafraseando o ex-presidente latino-americano que está aqui, todo
aquele que seja apegado a estas coisas, por favor, que não entre na política,
não entre numa organização social ou num movimento popular, porque causaria
muitos danos a si mesmo, ao próximo e sujaria a nobre causa que empreendeu. E
que também não entre no seminário!
Peço aos dirigentes que não se cansem de praticar esta austeridade moral,
pessoal, e peço a todos que exijam dos dirigentes esta austeridade, que — de
resto — os fará sentir-se muito felizes.
É no Advento que estou a ler este longo, belo e exigente discurso do Papa. Não
é para preparar o nascimento de Jesus. Essa questão está resolvida há mais de
dois mil anos. Para o Natal que interessa, a grande narrativa é a conversa
nocturna de Jesus com Nicodemos: precisas de nascer de novo e não perguntes
como, sendo já velho[iv].
Boa receita!
11.12.2016
[i] Olegario González de
Cardedal, Cristianismo y mística. Teresa
de Jesús de la Juan de la Cruz, Educa, Buenos Aires, 2013, pp.215-216.
[iii]
Discurso
no segundo encontro mundial dos movimentos populares, Santa
Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015
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