1. Segundo
a teologia católica mais corrente, os sacramentos cristãos não são de anjos nem
para anjos. A Irmã Lúcia, nas suas Memórias, abalou essa opinião. Contou que, entre
Abril e Outubro de 1916, já tinha aparecido um anjo aos três pastorinhos, por três vezes, convidando-os à oração e à penitência. Identificou-se
como o “Anjo da Paz, o Anjo de Portugal”.
Apresentou-se como ministro da comunhão eucarística sob as duas espécies. Não disse onde as
teria ido arranjar.
À
distância de um século, é uma poderosa narrativa surrealista, indiferente à
disciplina romana, de então, sobre a Eucaristia. Ver aí uma precoce antecipação
portuguesa do Concílio Vaticano II que, em 1916, ainda ninguém podia prever,
condiz bem com a nossa imaginação delirante, compensatória da frustração de não
termos contado para nada no maior acontecimento da Igreja Católica do séc. XX.
Com
anjos ou sem anjos, os sacramentos movem-se sempre no mundo simbólico que só
fala à inteligência a partir dos sentidos mergulhados nas realidades terrestres
mais elementares. Ao se tornarem manifestações rituais e litúrgicas exprimem,
em gestos e palavras, a identidade partilhada da fé e a sua transmissão. É a fé
subjectiva e manifestada que constitui a alma e o motor de todas as formas da
ritualidade cristã. Por tudo isso, petrificar os ritos, considerá-los estáticos
e imutáveis é trair a condição incarnacionista do cristianismo. Ritualidade e
criatividade não se excluem, exigem-se mutuamente. As celebrações litúrgicas
que se limitam, ano após ano, a reproduzir um ritual fixo, tornam-se ritos de
sepulcros vazios. Como escreveu S. Tomás de Aquino, a graça não substitui a
natureza, não evapora o tempo, a mudança.
Por
enquanto, – aproxima-se a era do
pós-humano! - os rituais têm a sua raiz na condição corporal do ser humano
e, portanto, na sua composição biogenética, ecológica – natural e cultural – e
bio psíquica.[1]
Existem
em qualquer sociedade, não são um exclusivo das religiões nem a sua eficácia
simbólica está reduzida aos sacramentos cristãos. Não esgotam a liberdade de
Deus nem a presença de Cristo na vida humana. Somos nós que precisamos de
celebrar a fé, na transformação da nossa história, para nos darmos conta de que
o Espírito de Deus actua onde quer, quando quer e como quer, sem nos consultar,
mas com gosto de nos associar à sua criatividade. Os gestos e as palavras da
liturgia não caíram do céu. No seguimento de Cristo, são responsabilidade de
toda a Igreja para estabelecer um vai-e-vem contínuo entre a complexidade da
vida pessoal, familiar, profissional, cultural, política e o tempo dedicado à
festa da sua reconversão permanente, metamorfose pascal.
Neste
sentido, as expressões litúrgicas da Quaresma, têm de evitar dois extremos: não
cair no contínuo improviso – algo desumano – nem se reduzirem à eterna
repetição do mesmo. As simples exortações moralistas à oração, ao jejum e à
esmola não bastam para criar uma nova consciência das nossas alienações nem
provocam movimentos de transformação significativa na sociedade e na Igreja.
2.
Já me perguntaram, várias vezes, se o pedido de Jesus Cristo, na chamada Última
Ceia, repetido em todas as missas – Fazei
isto em memória de Mim –, não seria a manifestação de uma grande solidão,
de pouca confiança nos discípulos ou até de um certo narcisismo, como o dos
grandes líderes ou pessoas ilustres que desejam uma estátua, o nome numa rua ou
numa praça?
Se
a expressão Fazei isto em memória de Mim
manifestasse Jesus preocupado com ele próprio, com o seu futuro na memória do
mundo, estaria a renegar-se e em contradição aberta com o que foi o testemunho
da sua vida. O que nesse testemunho é indelével é, precisamente, a despreocupação com ele mesmo. A sua
causa era o reino de Deus, como alegria do ser humano. Segundo os Actos dos
Apóstolos, passou a vida fazendo o bem. Nunca
andou a tratar de interesses pessoais, mas da vida que tinha sido negada aos
doentes, aos excluídos da sociedade e da religião.
Na
noite em que foi traído, deixou aos discípulos o encargo que deve ser o de toda
a Igreja e para sempre: não atraiçoeis o que procurámos viver juntos em função
do mundo inteiro, a partir dos mais ofendidos.
3. Um
belo poema de Eugénio de Andrade termina assim: Eu sei: tu querias durar. / (…) Paciência, querido, também Mozart
morreu./ Só a morte é imortal.
O
tema deste Domingo é a ressurreição de Lázaro[ii]. A longa narrativa do
quarto Evangelho mostra, pelo contrário, que também a morte é mortal. Diante do
túmulo, Jesus gritou em voz alta: Lázaro sai
cá para fora! O morto saiu, com os pés e as mãos enfaixados e o rosto recoberto
por um sudário. Jesus disse-lhes: Desatai-o e deixai-o andar.
Surge,
aqui, um novo paradoxo: a partir desse dia, o Sinédrio resolveu matar Jesus,
que teve de passar à clandestinidade. Os sumos sacerdotes e os fariseus tinham,
por isso, ordenado que quem soubesse onde Jesus estava, o indicasse, para que o
prendessem.
O
Sumo Sacerdote daquele ano tinha encerrado toda a discussão com a sentença
radical: acaba-se com esse homem e fica salva a nação. Sem querer, comenta o
narrador, Caifaz “ profetizou que Jesus iria morrer pela nação – e não só pela
nação, mas também para congregar, na unidade, todos os filhos de Deus
dispersos.”
Temos,
aqui, uma extraordinária descrição do sentido universal da missão de Jesus
Cristo: fazer da vida um dom ao mundo, sem restrições.
Resta
a questão que junta os paradoxos da vida e da morte, aos quais nem Jesus
escapou e que talvez possa ser formulada assim: qual deve ser hoje o papel inovador dos discípulos de Cristo, de
toda a Igreja, de cada um de nós na reunião dos filhos de Deus que se ignoram
ou guerreiam por causa da dominação política, económica, étnica, cultural e
religiosa?
Conformar-se
com o estado actual do mundo é a grande traição que diariamente nos tenta. A
resignação é o nosso pecado.
A
Quaresma ainda não acabou.
Lisboa,
02.04.2017
[1] Cf. Eddward Schillebeeckx OP, L’économie sacramentelle du salut, Academic Press Fribourg, 2004,
pp. 545-573.
[ii] Jo
11, 1-54
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