1.
Os textos do Novo Testamento (NT) não
foram encomendados ou ditados, relidos ou corrigidos por Jesus Cristo. Surgiram
em comunidades cristãs, depois da sua morte, para mostrar que o processo que O
vitimou não podia ser arquivado. A coligação das autoridades romanas e judaicas,
ao contrário das aparências, sob a capa de um julgamento, de facto, tinham decretado
o assassinato de um inocente em nome de
Deus e do Império[1].
Os autores do NT, ao reabrirem o processo, não pretendiam
rever uma questão jurídica do passado, mas testemunhar que estavam completamente
enganados os que julgavam que o Nazareno e as suas propostas tinham uma pedra
em cima, para sempre. Estava em curso, até ao fim dos tempos, a passagem
agitada para uma nova era.
Era difícil o caminho da realização da esperança. Mesmo
depois da ressurreição, até os discípulos mais chegados, continuavam a
alimentar concepções messiânicas que Jesus tinha expressamente rejeitado durante
a sua vida terrestre. O autor dos Actos dos Apóstolos começa a sua obra
narrando esse distorcido desejo pré-pascal: Estando
reunidos, perguntaram-lhe: «Senhor, é agora que vais restaurar a realeza em
Israel?»[2].
Jesus não lhes reconheceu competência sobre essa
questão. Precisavam de outra lucidez e de outra energia para enfrentar os novos
tempos: recebereis uma força quando o Espírito
Santo tiver chegado sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em
toda a Judeia e Samaria, até ao fim da terra[3].
Os Actos dos Apóstolos desenharam um cenário
espantoso desse acontecimento: de repente, veio do céu um ruído
semelhante a um vendaval, ficaram cheios do Espírito Santo, soltou-se-lhes a palavra
e cada um os ouvia na sua língua materna.
Ao espanto de
uns respondia a chacota de outros: estão com os copos. Coube a Pedro explicar o
que estava a acontecer e rematou o seu entusiasmado discurso com esta solene proclamação:
Que toda a casa de Israel tenha a certeza
de que esse Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo[4].
Ao ouvirem isto, diz o texto, trespassou-se-lhes o coração e disseram a Pedro e aos demais Apóstolos:
que devemos fazer? Precisavam de uma viragem completa mediante a conversão,
banho de Espírito Santo em nome de Jesus Cristo e partida para a missão
universal.
O profeta Joel já tinha escrito o poema para celebrar o
que estava a acontecer: derramarei o meu
Espírito sobre toda a carne. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de
profetizar, os vossos jovens terão visões e os vossos velhos, com sonhos,
sonharão[5].
2. A
pergunta subjacente a tudo o que foi dito é esta: quem tinha razão? Jesus ou aqueles
que o mataram?
Procurar, hoje, uma resposta a essa pergunta não é para
resolver um problema de há dois mil anos. Com o rodar do tempo e usando as
mesmas palavras podemos estar a falar de realidades opostas ou que perderam o
impacto que já tiveram.
Se Jesus foi
morto em nome de Deus, da religião e dos interesses do Império, é óbvio que importa
redescobrir qual era a concepção que Ele tinha de Deus, da religião e dos
interesses do império. Não é uma operação fácil.
Os escritos do NT estão configurados por formulações
teológicas, antropológicas e cristológicas muito diferentes. Nasceram de
percursos de comunidades cristãs em contextos diversos. Temos de resistir à
tentação de sistematizar ou enquadrar, numa visão unificadora, essas
concepções. No entanto, na sua diversidade, nasceram da urgência de confrontar
a vida pessoal e comunitária com as narrativas de experiências com Jesus Cristo,
na convicção de que Ele está vivo e o seu Espírito, se for acolhido com
fidelidade, suscitará atitudes criativas perante novas situações.
Passada a primeira febre apocalíptica paulina – a de
organizar e preparar os cristãos para o fim do mundo[6] – os textos destinam-se a
preparar os discípulos, para enfrentar, com fidelidade, os novos desafios:
acreditar e andar sem ver. Por isso, nunca poderão evitar a pergunta: Qual foi
o percurso do Mestre?
3.
Jesus levou muito tempo a encontrar o seu próprio caminho: teve de romper com o
amigo mais admirado, João Baptista; com as concepções e expectativas
messiânicas dominantes, expressas nas tentações que o assaltaram e nunca o
largaram até ao último momento.
Não se dá o devido relevo à luta que teve de travar para
romper com o caminho de João Baptista e sobretudo com as tentações messiânicas
dominantes. Os quatro Evangelhos não são textos escolares, didácticos,
professorais. São textos polémicos, precisamente, acerca da incompatibilidade
entre as concepções e atitudes de Jesus, as dos discípulos e as dos
adversários. Foram estas incompatibilidades que O levaram à cruz. Naquela
sociedade sacral, a grande incompatibilidade
nascia no seio da religião porque era ela que comandava tudo. Jesus não era um
ateu, um agnóstico ou um sem religião. Aquilo que o enervava não era só a
hipocrisia, que continuamente denunciou, mas verificar que o recurso às
observâncias religiosas, ao nome de Deus e à sua vontade servia para
classificar uns como santos e salvos e outros como pecadores e perdidos. Era
uma luta teológica por causa de uma questão antropológica. Um Deus que é o
consolo dos piedosos, dos ricos, dos poderosos e uma fonte de humilhação dos
classificados como pecadores, por aqueles que estabeleciam as leis da santidade
e as do castigo, era uma vergonha.
O caso permanente era a sua polémica com o Sábado, uma instituição civilizacional
fantástica – o ser humano não é só para trabalhar –, mas que foi transformada
no dia da opressão, em nome de Deus. A insistência de Jesus em violar o sábado
parecia uma actuação provocatória: escolhia, precisamente esse dia, para fazer
o que estava proibido. Tinha uma razão altamente teológica, coincidente com uma
razão profundamente humana: o dia consagrado a Deus tinha de coincidir com o
dia da libertação das vítimas da doença interpretada como possessão diabólica,
fruto do pecado. Um Deus que não é a alegria da vida, não é Deus. É um ídolo
criado para justificar a dominação económica, política e religiosa, como
veremos.
Páscoa para os nossos desejos distorcidos.
16.04.2017
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